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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.4 São Paulo oct./dic. 2004

     

     

    SAÚDE MENTAL

    A psicanálise frente aos "males sociais"

     

    Nas últimas décadas, os veículos de comunicação de massa identificaram e, de certa forma, promoveram algumas doenças como verdadeiras epidemias: síndrome do pânico, transtorno de estresse pós-traumático, anorexia, bulimia e, mais recentemente, a depressão. Pela complexidade do fenômeno, muitos pesquisadores se têm debruçado sobre o tema. Para o psicanalista Benilton Bezerra, professor do Instituto de Medicina da UERJ, "sofrer é universal no humano, mas a maneira de sofrer varia em cada contexto histórico".

    A subjetividade humana tem aspectos que são universais, que aparecem na experiência de indivíduos pertencentes a qualquer cultura. Segundo Bezerra, o fato de que somos em grande parte governados por impulsos e inibições que não dominamos - cuja força e sentido ultrapassa em muito a consciência - é um princípio que encontramos não só na experiência de gregos da época de Sócrates, em tibetanos medievais e nos românticos modernos. "Mas nenhum humano já nasce sujeito. É preciso tornar-se um sujeito, e isto se aprende com os semelhantes", afirma Bezerra.

     

     

    "O caso típico é o da histeria", diz o psicanalista. "Hoje já percebemos um deslocamento desse quadro. As depressões distímicas, os transtornos do pânicos, as adições e fenômenos compulsivos e os transtornos alimentares tomaram o lugar dos quadros histéricos da época de Freud", diz Bezerra. Essas doenças expressam a passagem para um novo cenário, uma nova formação social, na qual o sofrimento é mais vivido como falha de desempenho ou performance do que como conflito interior ou existencial. "As patologias são, num certo sentido, o espelho da cultura de uma época", conclui o psicanalista.

    SINTOMA SOCIAL Dados da Organização Mundial de Saúde apontam a depressão como forma de sofrimento mental que cresce de forma epidêmica, sobretudo nos países industrializados. Até 2020, se persistirem as tendências atuais da transição demográfica e epidemiológica, a carga da depressão subirá a 5,7% da carga total de doenças. Para a psicanalista Maria Rita Kehl, hoje vivemos sob o imperativo da felicidade e do prazer. As pessoas que estão atravessando fases de desânimo ou tristeza absolutamente normais, por contingências da vida, sentem-se logo muito sozinhas, muito erradas, e são tratadas como depressivas. "E ficam deprimidas mesmo, em função disso!", afirma Kehl.

    A psicanalista também aponta o consumo como um dos fatores de aumento da depressão: "o valor das pessoas tem sido medido, cada vez mais, pelo que elas podem consumir. E mesmo os que conseguem consumir e ostentar, não ficam livres de sentir a profunda idiotice desse ideal".

    Além da depressão, Kehl observa com preocupação o crescimento da drogadição entre os jovens: "não me refiro ao ‘uso de drogas’, mas às formas agudas de dependência de algum tipo de droga legal ou ilegal". Kehl acredita que talvez a drogadição faça parte do mesmo quadro da depressão, pois os viciados em drogas, lisérgicas ou medicinais - o que inclui a dependência dos psicofármacos - estão tentando com frequência preencher um vazio, uma falta de sentido na vida insuportável.

    Para o psiquiatra Rubens Coura, sob o termo depressão, a mídia e as populações vêm expressando outras tantas patologias psíquicas que não guardam relação direta com a própria depressão. O fato de antidepressivos serem, em geral, utilizados em diversas situações clínicas reforça a atual tendência de se falsear o diagnóstico. Coura diz que a patologia psíquica dominante é, na verdade, a neurose obsessiva, "que se manifesta pela própria preocupação obstinada com uma suposta depressão e com tudo o mais que também possa obstar a conquista da qualidade total, da boa performance profissional e social, da boa aparência, da juventude e da saúde ilimitadas".

    Para ele, essas preocupações traem desejos inconscientes muito intensos do oposto dessas virtudes todas e que são expressos, em termos coletivos, pela violência urbana que é o contrário da boa conduta social, pela falta de saúde que é o uso abusivo de drogas, pelo mau desempenho profissional que é representado pela "vadiagem" de tantos jovens, pela destruição da saúde ilimitada e da boa aparência trazida pela AIDS etc. Coura explica que este fenômeno é o mecanismo de anulação retroativa.

    Outro sintoma também presente na neurose obsessiva individual é o mecanismo do isolamento que, segundo Coura, aparece coletivamente no elogio da solidão pessoal, ou "privacidade": "isolamento no alto dos apartamentos, dos escritórios, na frente dos computadores, sob os walkie-man, sob o permanente medo de contágios por doenças, bem como no receio exacerbado de contatos com pessoas em geral".

     

     

    Alexandra Tavares