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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.4 São Paulo out./dez. 2004

     

    APRESENTAÇÃO

    A RESPEITO DE UMA DAS TRÊS PROFISSÕES IMPOSSÍVEIS

    Marcio de Freitas Giovannetti

     

    Fala-se de Pico Della Mirandola como o sábio renascentista que foi capaz de registrar em seu espírito todo o saber de seu tempo. Curioso em relação a tudo, ele conhecia o latim e o grego, o árabe e o hebreu, estudou a Kabala e a filosofia de Averroés e, conhecendo os princípios de organização do conhecimento, sabia que existia unidade em toda pluraridade e pluralidade em toda unidade. Assim, "era capaz de inserir seu saber numa unidade, em vez de fazer deles elementos justapostos de um catálogo e, ao mesmo tempo, ele era capaz de não homogeneizar, de não unificar de maneira arbitrária".(1)

    Quase cinco séculos depois, um médico neurologista vienense vinha com suas novas idéias colocar em questão a idéia do saber e do conhecimento: ao escutar, ao dar ouvidos à fala da histeria e ao voltar sua atenção para aquilo que o establishment médico de então considerava uma atividade rebaixada do pensamento, os sonhos noturnos e as falas e atos diurnos que irrompiam de forma irracional e abrupta, os lapsos, Sigmund Freud inaugurava não apenas uma nova prática clínica mas um novo saber que trazia para o centro da problemática que envolve o conhecimento a questão da interferência de todo pesquisador em seu objeto de pesquisa. O desejo, os desejos infantis e ancestrais, a procura incessante por sua satisfação, são aquilo que caracterizam todo ser humano, interferindo diretamente em sua tão idealizada racionalidade. A conceituação do inconsciente e das pulsões redimensionava e limitava a possibilidade de qualquer um de nós se arrogar como portador de todo o conhecimento ou do todo do conhecimento, re-significando a animalidade humana.

    A partir daí já não mais poderiam existir novos Della Mirandola. Também a partir daí, a partir da escuta da histeria, aquela que criava sua própria anatomia, já não se poderia mais falar em uma anatomia universal para todos os seres humanos vivos: os tratados de anatomia serviam para o corpo inerte, sem vida. O corpo vivo, este se recriava na singularidade, em decorrência de suas dores e de seus amores. E a partir da validação dos sonhos enquanto ferramenta seminal para o desvelamento dos intricados descaminhos de nossa desrazão, o conceito de normalidade mental e o de loucura sofriam seu mais duro golpe. Não mais apenas "sapiens", o homem passava a ser aquilo que Morin veio a denominar, quase um século depois, de "homo sapiens demens".

    O campo de psicanálise é o das fronteiras: nem medicina, nem biologia, nem sociologia, nem filosofia, nem literatura, o campo psicanalítico é a somatória de todos eles e, como corpo de conhecimento, análogo ao corpo humano vivo, só apreensível a partir de suas relações com os outros corpos e com o mundo. Ele é, por assim dizer, específico, singular e único, mas, ao mesmo tempo, dialógico, necessitando sempre do trânsito dentro de outros campos para se constituir enquanto ele mesmo. E, portanto, necessitando sempre de ser vivificado através de sua encarnação no diálogo entre analisando, analista e cultura para se constituir em toda sua extensão. Sem essa encarnação é quase letra morta; ou, na melhor das hipóteses, mais um tratado de anatomia.

    Por tudo isso ele é amplo, vasto e, sobretudo, paradoxal. Pois como teoria ele precisa da prática para se constituir e enquanto prática ele coloca em cheque a teoria que o constituiu. Por tudo isso, Freud situou a psicanálise como a terceira das profissões impossíveis. Educar seria a primeira delas.

    Em seu livro A religação dos saberes – o desafio do século XXI,(1) Edgard Morin reúne textos de eminentes pensadores que realizaram um seminário cujo objetivo era repensar o ensino médio na França, há poucos anos. E é extremamente ilustrativo da idéia freudiana da impossibilidade da educação: notáveis matemáticos, biólogos, físicos, antropólogos, historiadores, geógrafos, literatos, médicos foram todos chegando à conclusão de que não havia como pensar apenas o ensino médio; trata-se de repensar a própria idéia de ensino a partir da fragmentação ocasionada pelo desenvolvimento do conhecimento ao longo de nossa história. Outro precioso livro – O confronto dos fundamentalismos (2), do historiador e literato Tariq Ali – vem também, na mesma esteira, denunciar os problemas decorrentes da cristalização de uma determinada perspectiva – a ocidental, no caso – quando se trata de pensar a construção e a transmissão do conhecimento.

    Para isso já apontava Freud, nos inícios do século passado. Como transmitir o conhecimento da psicanálise se a própria psicanálise denunciava os limites ou mesmo a falácia de todo ensino? Paradoxo que se constituía enquanto desafio prático a ser enfrentado pois tanto havia pacientes que necessitavam e queriam ser tratados pela "nova especialidade", buscando o "novo tratamento", quanto médicos e não médicos que queriam se tornar aptos para exercer a nova "técnica". Como não se tratava simplesmente de uma questão técnica e não acreditando na existência de novos Della Mirandola no século XX, indivíduos capazes de apreender a complexidade e a delicadeza da alma humana, ele instituiu o procedimento da transmissão do conhecimento pela via de desvelamento da experiência de descoberta da mente do próprio pesquisador, o psicanalista. Cientista e objeto de investigação estavam assim superpostos e algo de um novo conhecimento poderia se dar: o método psicanalítico só era passível de transmissão quando o aluno, o curioso, se submetesse ao próprio método. Não para que seu inconsciente fosse esclarecido ou decifrado, como se pretendeu de início, mas sim para que o postulante se deparasse com o contraste paradoxal entre a imensa pretensão – seu desejo de conhecer a mente humana – e sua ilimitada ignorância: nada mais deletério para qualquer ser humano que o desconhecimento tanto do poder da amplitude de seus desejos quanto da necessidade imperiosa e natural de sua busca de conhecimento, decorrente de seu desamparo diante da vastidão do mundo. Grande parte das grandes construções teóricas é nada mais que uma resposta automática e reflexa de nossa mente desamparada diante da angústia do desconhecimento tendo, assim, muito em comum com os delírios dos psicóticos e com as crenças dos religiosos.

    Assim, parecia que a transmissão da psicanálise tinha encontrado sua solução: um grupo seleto de intelectuais se reunia com Freud para discutir suas idéias, as idéias de grandes pensadores e escritores a respeito da alma humana e os primeiros achados clínicos das primeiras psicanálises. Todos eles tendo passado inicialmente pelo divã de Freud, pela experiência de ser analisado. Criava-se o primeiro grupo de psicanalistas praticantes. Alguns eram médicos, outros não, mas todos com séria formação intelectual e universitária. Duas décadas depois, a transmissão da psicanálise se institucionalizava com a criação dos institutos de psicanálise da Associação Internacional de Psicanálise. O modelo básico da formação, estruturado por Eitington, seguia o modelo do grupo original, configurando o hoje famoso tripé da formação do psicanalista: análise didática com um analista mais experiente, supervisão de casos em atendimento também com um outro analista e seminários teóricos. Uma formação que se mostrava longa, difícil e também elitista, decorrente da percepção das dificuldades da transmissão de tão complexo e delicado saber mas sobretudo respeitosa com relação ao objeto de seu estudo e práxis: o outro ser humano. Uma formação que procurava, ao mesmo tempo, fornecer as ferramentas básicas para o futuro analista e sobretudo se propor como salva-guarda para a onipotência religiosa tão característica dos grupos primitivos.

    A história da psicanálise, ao longo do século XX, nos mostra que nem sempre esse objetivo dos institutos de psicanálise foi atingido. Se por um lado a psicanálise como corpo de pensamento muito rapidamente ultrapassou as fronteiras de seu nicho original, estando as idéias freudianas e seus desenvolvimentos dentre aquelas que mais influenciaram o pensamento do século XX, por outro lado, houve também uma certa banalização do ato psicanalítico, decorrente do aumento de pessoas que se propuseram e se apresentaram como psicanalistas clínicos e praticantes nestes últimos cem anos sem uma formação adequada. Não foram poucas as "escolas de psicanálise" que se criaram ao longo do século que, de um modo ou de outro, vieram perverter a natureza da clínica psicanalítica.

    Se dentro da própria Associação Psicanalítica Internacional houve algumas sérias cisões – algumas delas mantendo, em seguida, o mesmo cuidado com a formação dos novos analistas – e se a área de influência da psicanálise aumentava de forma inquestionável e significativa, dando origem ao surgimento de uma multiplicidade de psicoterapias com maior ou menor respeito ao pensamento original, foram muitos os indivíduos que se apropriaram do método freudiano de forma inadequada e perversa num fenômeno bastante comum do século XX: a banalização mercantilista de todo e qualquer saber, de toda e qualquer práxis. Fenômeno este que atesta, de modo inequívoco, os descaminhos e desvios tomados pelas cabeças da maioria dos governantes da cena política contemporânea. A violência a que uma enormidade de seres humanos tem sido submetida aparece sob muitas faces e nomes, ao longo de toda a história da humanidade.

    A enxurrada de informação a que qualquer um de nós vem sendo submetido pela mídia desde os meados do século passado torna quase impossível, por outro lado, que se discrimine entre a informação fidedigna e genuína da informação falaciosa, tendenciosa e banalizadora dos fatos e dos saberes. Os psicanalistas com uma formação séria e ética têm sido muitas vezes confundidos com aqueles indivíduos que, numa apropriação indébita e perversa do nome de uma profissão que ainda não é reconhecida oficialmente enquanto tal, cometem todo o tipo de mal-práxis clínica, violência insidiosa e disseminada sobre um outro ser humano. Muitos deles sem qualquer formação universitária como atestam as inúmeras propagandas de "cursos de psicanálise" que são oferecidos via internet à desavisada população.

    Nenhum instituto de psicanálise sério, seja ele ligado à Associação Psicanalítica Internacional ou a outra instituição igualmente séria, pode dar garantia de que o profissional aí formado exerce sua prática dentro daquilo que poderíamos definir como mínimos padrões éticos e técnicos da clínica psicanalítica, pois os desvios e descaminhos humanos estão para além da capacidade educacional de qualquer grupo formador. Da mesma forma que nenhuma universidade pode se responsabilizar totalmente pela práxis do profissional aí formado. Daí, também, o educar como profissão impossível. Sermos "homo sapiens demens" é nossa grandeza e também nossa perdição, paradoxo inerente à condição humana.

    A outra das três profissões impossíveis? Governar. Não estão aí três dos maiores governantes deste início de milênio reunidos em uma fotografia que circulou nos principais jornais e televisões do planeta no início do ano passado – todos eles vestidos com terno azul-marinho, camisa azul claro e gravata azul real – exibindo um sorriso nos lábios e declarando não a abertura dos jogos olímpicos, mas sim a invasão conjunta das terras da Mesopotâmia, comprovando com isso a impossibilidade de governar e também a insanidade presente em nossas culturas e em cada um de nós?

    Inegavelmente, o homem-bomba é a representação mais radical que o mundo de hoje dá do homem pulsional freudiano. Mais do que nunca há que se seguir trabalhando dentro e com as impossibilidades.

    Os textos que integram este Núcleo Temático pretendem ser uma amostragem de como alguns psicanalistas brasileiros procuram pensar a psicanálise neste momento. Os artigos de Elias Mallet da Rocha Barros, Fabio Herrmann e Antonio Sapienza delineam o campo do método investigativo. Os de Henrique Honigsztejn, Leopold Nosek , Luiz Carlos Uchoa Junqueira Filho e Yusaku Soussumi, o de suas interfaces. E, finalizando, Cláudio Cohen e Gisele Gobbetti , partindo do entendimento de "que nós seres humanos, não nascemos nem éticos e nem competentes para com as nossas funções sociais", pensam a respeito da bioética das relações.

     

    Marcio de Freitas Giovannetti é psicanalista, membro efetivo e presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Preside o Comitê de Profissões Afins da Associação Psicanalítica Internacional

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Morin, E. A religação dos saberes – o desafio do século XXI. Editora Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. pag.567. 2002.

    2. Ali, T. O confronto dos fundamentalismos. Editora Record. 2003.