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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2004

     

     

    INTERFACE PSICANÁLISE-CULTURA

    Henrique Honigsztejn

     

     

    Interface implica em comunicação estabelecida entre os componentes que a originam. Utilizando o dicionário Webster, destaco as seguintes definições de cultura:

    a) o estado de ter sido cultivado; a iluminação e excelência de gosto adquiridas por um treino intelectual e artístico; refinamento de maneiras, gosto e pensamento.

    b) o padrão total de comportamento humano e seus produtos corporificados em pensamento, fala, ação e artefatos, dependente da capacidade humana para o aprendizado e para a transmissão de conhecimento às sucessivas gerações, por meio do uso de instrumentos, da linguagem e de sistemas de pensamento abstrato.

    Buscarei, no que vou desenvolver, sugerir em que medida e de que maneira a cultura pode refinar o gosto e o pensamento do analista. Para Freud, a psicanálise "não se propõe nem oferece nada mais além da descoberta do inconsciente"(1-pag 377), utilizando-se da atenção flutuante do analista, atenção essa que busca captar através das associações livres do analisando as chaves para essa descoberta. Essa descoberta se dá no campo emocional, que flui, ou não, no contato de dois indivíduos. Antes disse – refinar o gosto e o pensamento – mas diria melhor agora: o ouvido, o tato do analista. Para tornar mais claro o que quero dizer, e juntamente com Freud, usemos algo do Hamlet.

    Freud considera – em Sobre psicoterapia (2- pag.114) – que o instrumento da alma não é nada fácil de ser tocado e, a respeito disso, cita Hamlet que, diante de uma tentativa de dois cortesãos de obterem dele segredos, mostra-lhes uma flauta da qual, a seu pedido tentaram, mas não conseguiram emitir uma nota sequer: "Agora, vede, que coisa desprezível fazeis de mim. Quereis me tocar, quereis penetrar no coração de meu mistério; ...pensais que eu sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Tomai-me por qual instrumento vós quereis, vós podeis me desafinar, porém não usar-me".

    Da mesma forma, podemos nos questionar: Como a cultura pode ser útil ao analista para que ele não faça seu paciente sentir-se uma mísera coisa? E de que modo a psicanálise pode contribuir com a cultura?

    Carlos Fuentes, um grande escritor da atualidade, refere-se, de um modo dramático, ao efeito da cultura em sua sensibilidade e assim em sua criação, por meio da leitura anual de Dom Quixote "as minhas emoções ficam envolvidas na mágica desse livro", e acrescenta que aí estaria incluída a própria sexualidade. O que permite que tal efeito lhe ocorra, em contraste com a reação que a obra causa em tantos outros leitores que afastam essa obra, assustados pela sua vastidão, ou já a tomando de antemão como um cansativo desenrolar das loucuras de um velho? Para essa resposta vou utilizar Freud em sua concepção do narcisismo, e também Winnicott em suas concepções sobre o objeto transicional e o papel da ilusão. Além disso, também faço referência a contribuições importantes de outras figuras da cultura.

    A primeira figura a cultivar um ser humano é sua mãe, e desse contato fundamental quase tudo brota. Passagens de Freud iluminam muito esse campo:

    1) "O organismo humano é, em seu início, incapaz de levar a cabo a ação específica, realizando-a por meio da assistência alheia ao chamar a atenção de uma pessoa experiente sobre o estado em que se encontra a criança, mediante a condução de descarga por via da alteração interna. Esta via de descarga adquire assim a importantíssima função secundária de comunicação..." (3 - pag.431).

    2) "Há muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar. O que acontece é que a situação biológica da criança como feto é substituída para ela por uma relação de objeto psíquico quanto a sua mãe" (4-,pag. 278).

    3) "...devemos observar que a hipótese de que no indivíduo não existe, desde o início uma unidade comparável ao eu, é absolutamente necessária...Em troca os instintos auto-eróticos são primordiais. Para constituir o narcisismo deve agregar-se ao auto-erotismo algum outro elemento, um novo ato psíquico" (5- pag.44).

    Ligo essa última citação à primeira para aclarar o que seria o novo ato psíquico. A meu ver, esta seria a ação da pessoa experiente conectada às necessidades do bebê, essa pessoa que vai refazer para este o útero biológico perdido e permitir assim que prossiga o fluir de um desenvolvimento.

    Utilizo-me de Winnicott que, no meu entender, colocou lentes de grande aumento para detalhar as nuances da relação básica, permitindo entender assim o que Freud escreveu sobre Goethe: "Agora, bem: já dissemos em outro lugar que quando alguém foi o favorito indiscutível de sua mãe, conserva através de toda a vida, aquela segurança de conquistar, aquela confiança no êxito, que muitas vezes basta para lográ-lo. E assim, Goethe poderia ter encabeçado sua biografia com uma observação como esta: "Toda minha força tem sua raiz na minha relação com minha mãe" (6- pag.266). Winnicott – em Playing and reality (7- pag.11) – ilumina o processo pelo qual o bebê estabelece raízes na mãe:

    "A mãe, ao início, por uma adaptação quase perfeita, oferece ao bebê a oportunidade para a ilusão de que seu peito é parte do bebê. É como se ela estivesse sob o controle mágico do bebê...Onipotência é quase um fato da experiência. A tarefa final da mãe é, gradualmente, a de desiludir o bebê, porém ela não terá a esperança de sucesso a não ser que, inicialmente, ela tenha sido capaz de oferecer suficiente oportunidade para ilusão.

    Em outra linguagem, o peito é criado pelo bebê repetidamente a partir de sua capacidade para o amor ou (pode-se dizer) a partir da necessidade. Desenvolve-se no bebê um fenômeno subjetivo ao qual chamamos o peito da mãe".

    Se a mãe permite a ilusão, algo fundamental acontece:

    "Se a mãe pode participar disso por um longo tempo, sem admitir impedimentos (por assim dizer), então o bebê terá alguma experiência de controle mágico...

    Confiança na mãe cria uma área de brincar intermediária aquém da qual se origina a idéia de magia, já que o bebê em certa extensão vivenciou onipotência...Chamo a isso de área de brincar porque o brincar origina-se aqui. Essa área é um espaço potencial entre a mãe e o bebê ou de ligação mãe e bebê".

    Vai-se criando e ampliando a área intermediária, ou seja, a área do brincar, o playground que, segundo ele, "é a área que é permitida entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da realidade".

    Winnicott – (8 - pags.130-131) em suas considerações sobre a criatividade, presume que existe uma criatividade potencial e que o bebê na sua primeira mamada teórica já tem uma contribuição pessoal a fazer, e que essa criatividade é reconhecida antes de tudo pela sensação individual de realidade da experiência do objeto. Continuo a citá-lo após suas considerações acima: "O mundo é criado de novo por cada ser humano, que começa o seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento e da primeira mamada teórica. Aquilo que o bebê cria depende em grande parte daquilo que é apresentado no momento da criatividade, pela mãe que se adapta ativamente às necessidades do bebê. Mas se a criatividade do bebê está ausente, os detalhes apresentados pela mãe não terão sentido.

    Sabemos que o mundo estava lá antes do bebê, mas o bebê não sabe disso, e no início tem a ilusão de que o que ele encontra foi por ele criado. Esse estado de coisas, no entanto, só ocorre quando a mãe age de maneira suficientemente boa. O problema da criatividade primária foi discutido como pertencendo à mais tenra infância; mas, para sermos precisos, trata-se de um problema que jamais deixa de ter sentido enquanto o indivíduo estiver vivo".

    Winnicott permite que se possa acompanhá-lo em sua penetração em áreas tão obscuras, e com ele perceber como se vai estabelecendo a experiência de onipotência e a da ilusão como algo fundamental para que o mundo exterior ao eu possa ser encontrado com certa familiaridade, algo no qual se pode brincar. Winnicott, por suas obras, circula na área intermediária, no espaço potencial entre o indivíduo e o mundo externo, onde ocorrem os fenômenos transicionais que, segundo ele mesmo: "representam os estágios precoces do uso da ilusão sem os quais não há para o ser humano significado na idéia de relação com um objeto que é percebido pelos outros como externo a esse ser".

    No mundo transicional o mundo se torna familiar, circula-se nele com a segurança de alguém que participou e participa na sua criação e que continua aqui a desenvolver-se, apoiado na confiança e no fluir natural de um processo possibilitado pela mãe conectada (a que reconstitui o útero biológico perdido). O espaço potencial separa e ao mesmo tempo conecta mãe e bebê.

    Eu me estendo nas citações de Winnicott, pois é um prazer para mim que espero ser usufruído por quem estiver lendo estas linhas. É um brincar, onde idéias se encadeiam, despertam outras, e facilitam encontros de outras idéias, de outros autores. A ilusão firmando a onipotência como um fato da experiência põe a inveja ao largo e a familiaridade predomina. E, assim, se pode experimentar o contato com a cultura como fertilizadora. A leitura de Winnicott afinou meus ouvidos, clareou meus olhos para encontrar um pequeno ensaio de Schiller que toca na questão de um funcionamento mental favorecedor de maior sensibilidade no encontro com outro.

    O título envolveu-me de imediato: Sobre a utilidade moral de costumes estéticos. Transcrevo-o em alguns trechos: (9- pag.411)

    "Um sentimento vivo e puro despertado pela Beleza tem sobre a vida moral a mais feliz influência e disso vou tratar aqui".

    Entre muitos outros, que são um estímulo para pensamento e criação, destaco:

    "O instinto sensual não reconhece nenhuma lei moral e quer ver seu objetivo realizado, o que quer que a Razão possa dizer...Mentes cruas, às quais falta igualmente uma educação moral e estética recebem suas leis diretamente dos desejos, e agem meramente como agrada a seus sentidos. Mentes morais, a quem falta porém a educação estética, tem sua lei dada pela Razão e é apenas visando ao dever que elas vencem a tentação. Nas almas refinadas esteticamente existe uma instância a mais, que não raramente substitui a virtude onde ela falta e ilumina onde ela está. Essa instância é o Gosto. O bom gosto requer comedimento e decência, ele detesta tudo que é anguloso, duro, violento e se inclina para tudo que se encaixe suave e harmonicamente". Gosto (Geschmack) poderia se traduzir como: tato, sobriedade. Um exemplo que tem repercussão para mim como psicanalista é o descrito por Freud em seu ensaio autobiográfico:

    "Quando eu livrei um dia do seu sofrimento a uma da minhas mais dóceis pacientes, na qual a hipnose possibilitou os mais acrobáticos feitos..., ela ao despertar enlaçou meu pescoço. Eu era sóbrio (nüchtern) o bastante para não colocar essa situação por conta de minha irresistibilidade e acreditei ter captado o elemento místico que age pela hipnose" (10-pag.58).

    Freud foi sóbrio o bastante para não se arrastar por um impulso sensual do momento e ter a condição de perceber algo fundamental, subjacente, levando-o a uma experiência de expansão do self, pela descoberta. O que quero dizer com expansão do self? Em que se baseia? Novamente recorro a Winnicott, em Capacidade de estar só (11-pag.35):

    "Em uma pessoa normal uma experiência altamente satisfatória como a que pode ser obtida em um concerto ou em um teatro ou em uma amizade pode merecer o termo, tal como "orgasmo de ego" que chama a atenção para o clímax e a importância do clímax. Pode-se pensar como inadequado o uso da palavra nesse contexto, eu penso que mesmo assim há lugar para uma discussão do clímax que pode ocorrer em uma relação de ego satisfatório. É verdade que mesmo na brincadeira feliz de uma criança tudo pode ser interpretado em termos de impulso do id...No entanto nós deixamos de fora algo vital se não nos lembrarmos que a brincadeira de uma criança não é feliz quando complicada por excitações corporais com seus clímaxes físicos... Em minha opinião se nós comparamos a brincadeira feliz de uma criança ou a experiência de um adulto em um concerto com uma experiência sexual, a diferença é tão grande que não será prejudicial nos permitirmos um termo diferente para a descrição das duas experiências".

    E no final desse artigo, no sumário:

    "O tipo de relação que existe entre uma criança e a mãe sustentadora do ego, merece um estudo especial. Embora outros termos tenham sido usados, eu sugiro que relação egoica, possa ser um bom termo para uso temporário ...Gradualmente o ambiente sustentador é introjetado na personalidade do indivíduo, de modo que se origina a capacidade presente de estar só. Mesmo assim, teoricamente há alguém sempre presente, alguém que é igualado por fim e inconscientemente com a mãe, a pessoa que nos primeiros dias e semanas identificou-se temporariamente com seu bebê e, nesse tempo, não tinha interesse em nada a não ser o cuidado de seu próprio bebê".

    O quanto ao se contatar com uma obra de arte esse ser sente-se revivendo todo o cuidado de uma mãe dedicada, por meio do ritmo que a obra transmite, a concretização do ritmo vivido pelo criador na relação com sua mãe, o ritmo presente nos cuidados maternos em seu manuseio (handing) e suporte emocional (holding) de seu bebê e nas respostas deste (12-pags.29-31), e no campo emocional assim criado. Assim como o bebê sente-se o criador da mãe e assim se vai desenvolvendo, ao crescer ele sentir-se-á criador da obra com a qual se encontra e assim se expande.

    Desenvolve-se um ser que se sente em casa ao circular pelo campo cultural, cujos objetos não lhe objetam mas, ao contrário, lhe são familiares. A cultura torna-se, ou melhor, recria o espelho que foi para ele o rosto da mãe e que lhe permitiu começar a saber dele mesmo (Winnicott). Assim, como diz G. Simmel: "Para sair de sua anonimidade animal e imediata e começar a saber a seu respeito, a vida deve-se fazer conhecida por ela mesma e tornar-se objetiva nas e com as formas, que ela mesma cunha e descobre". (13)

    O mundo cultural seria assim o espelho pelo qual não apenas se aprende sobre si mas que leva à expansão, no exercício da criatividade, na confiança, na alegria. Cada objeto será encontrado como íntimo, pois já fez parte do sujeito que guarda o registro de ter sido o criador da mãe, podendo assim ser amado. "Ama o teu próximo, pois ele é como tu". Só dando-se conta de quem é, merecedor de amor, pode alguém estender-se para o amor ao outro. E, como um dos modos dessa extensão, está a criação cultural. Freud referiu-se, em uma das tradicionais reuniões das quartas-feiras, à importância do velamento da obra de arte em oposição a uma obra que se revela nua e crua e que seria assim a seu ver, um documento psicopatológico. A obra de arte pelo seu velamento permite ser desvelada na medida possível a quem a encontra. E penso que a grande obra de arte, fruto de um "criador de sua mãe", já por si traz o velamento da ilusão que o marca. Nesse espaço potencial, cito mais um criador, para dar mais ensejo à circulação de idéias:

    "Tudo que é vivo necessita em volta de si uma atmosfera, uma atmosfera plena de mistério; se alguém lhe tira esta camada protetora, se alguém condena uma religião, uma arte, um gênio, a circular como constelação sem atmosfera, não se deve admirar de seu rápido murchar, enrijecer, esterilizar"... e adiante: ... "Sim, o homem sente-se triunfante de que agora a ciência começa a dominar sobre a vida, é possível que o homem alcance isso, porém uma vida dominada assim é algo que não vale a pena, porque é muito pouca vida, e garante muito menos a vida para o futuro do que a vida dominada pelo instinto e pela ilusão" (14- pag. 298) . E junto a circular nesse espaço as palavras de um grande cientista:

    "...nossa experiência histórica nos ensina que, olhando por baixo da superfície das coisas encontramos mais e mais beleza...Para nós, também, a beleza das teorias atuais é uma antecipação, uma premonição, da beleza da teoria final". São palavras de um Prêmio Nobel da Física, Steven Weinberg, no livro Sonhos de uma teoria final.

    Essa beleza circulante ao fundo não seria a da bela mãe em sua harmonia de gestos e emoções, modulando e deixando-se modular pelo seu bebê? Alguém que não pôde desfrutar dessa beleza circula pelo mundo sem a camada protetora da ilusão, e será alguém que, conforme suas possibilidades, buscará trazer à cultura um rompimento dessa atmosfera (de ilusão).

    Configura-se o que chamo de cultura destrutiva, gerada pelas personalidades narcísicas destrutivas, personalidades que impossibilitadas de fluir confiantemente, movimentam-se em espasmos, descargas do ódio com o qual buscam se estruturar, como num exemplo: um paciente, sujeito a uma constante ameaça de desintegração do self, levantou-se numa sessão e, diante de mim, buscava estimular em si um estado de contração muscular e, após alguns momentos, referiu: "estou chamando meu ódio, ele faz com que meus músculos fiquem duros e assim sinto que sou forte e ninguém abusa de mim como se eu fosse um fraquinho qualquer". Esse paciente é um dramático exemplo de alguém que, pela falta em sua relação básica de uma possibilidade de experimentar a onipotência, cria como compensação a onipotência secundária que, segundo Winnicott, é a expressão de falta de esperança em relação à dependência (15). Em lugar da onipotência permitindo o fluir confiante, temos aqui um poder originado dos acompanhantes de uma desesperança não total: humilhação, fúria, inveja, ódio. Cria-se um estado contrário ao fluir de emoções e pensamentos, contrário à criatividade. Um médico filósofo, J.R. Elkinton, escreveu que o rim com seu mecanismo de concentração, retendo água no organismo, liberou o homem do oceano, razão pela qual chamou-o de "o pré-requisito da liberdade". Em analogia: a presença no mundo interno do bebê do objeto subjetivo "criado e recriado pelo bebê a partir da capacidade de amor deste ou (pode-se dizer) a partir da necessidade" seria seu meio líquido facilitador de intercâmbio, criações, recriações com os objetos e com seu próprio mundo interno; seria o pré-requisito à livre expressão de seu ser. A cultura nos permite encontrar, por meio de dois poetas, a descrição da melodia, do ritmo que flui no contato desse ser com o mundo:

    "....luego envia
    consonante respuesta,
    y entre ambos a porfia
    Se mezcla una dulcissima armonia
    Aqui la alma navega
    Por un mar de dulzura..."
      (Fray Luiz de Leon em Ode a Francisco Salinas)
     
    "...blest the Babe,
    Nursed in his Mother's arms, who sinks to sleep
    Drinks in the feeling of his Mother's eye
     
    Along his infant veins are infused
    The gravitation and the filial bond
    Of Nature that connect him with the world"
      (Worsdworth em The Prelude-III)

    Esses trechos de poemas estimulam e clareiam emoções e pensamentos, frutos de uma experiência de seus criadores, que os conectou às raízes da Natureza, lhes ofertada pela mãe suficientemente boa, e que, pela criação ofertam a quem os encontra, como Carlos Fuentes no seu contato com o "Quixote".

    A mãe possibilitadora da criação é aquela que possibilitou a seu bebê experimentar a contenção das mais fortes angústias, pelos seus cuidados, possibilitando a ilusão da onipotência ser vivida pelo bebê e assim fazê-lo ter um registro que o permite se aventurar no que seriam os mais arrojados esportes radicais no campo da alma humana. Freud escreveu numa carta a Stefan Zweig, em 2 de junho de 1932 (16), que Breuer tinha a chave nas mãos que lhe teria aberto o caminho para as mães, porém que a deixou cair, e que ele em seus dons espirituais não tinha o componente fáustico, ou seja, não tinha a confiança do conquistador que pode se lançar a áreas totalmente inexploradas, como o do reino das mães, descrito por Goethe no Fausto II, onde impera a escuridão e o silêncio total, e onde não há como saber onde irá pousar o pé que se lança para um passo.

    Freud revelou à cultura a importância da sexualidade, o dinamismo do inconsciente e suas leis, o conflito básico entre criação e destruição. Com essa revelação fertilizou-a possibilitando a novas fertilizações. Os grandes criadores, por seus mergulhos, passam a espelhar o que circula nos reinos subterrâneos do mundo do espírito, assim como os grandes cientistas revelam as leis que regem os fenômenos naturais. Na pseudo-cultura não há revelações e sim encenações que levam e buscam que se concretize o domínio dos que a organizam. Em lugar de favorecer ou melhor, fornecer o campo potencial possibilitador do brincar, e assim da expansão, essa pseudo-cultura leva a uma unificação de um grupo no qual os indivíduos se anulam: "Um povo, um Reich, um Führer" é o grito martelado. Essa pseudo-cultura, construída artificialmente a partir de líderes com o narcisismo destrutivo (tonificado, ou melhor, estruturado pelo ódio) não alimenta os que nela circulam pois não se conecta com as fontes naturais, entre elas: o inconsciente humano, ou melhor não se conectam com nada já que ela é construída artificialmente por pedaços que se juntam: um pouco de teoria da evolução aqui, a existência de uma pseudo-raça pura, (a ariana) acolá e assim por diante. Está claro que exemplifico aqui o nazismo com a sua Weltanschauung. Ao mesmo tempo, busco aclarar de que modo a psicanálise pode ajudar a entender, e assim ser uma das armas de combate contra as pseudo-construções culturais, que, visando ao domínio de uma sociedade, buscam a anulação do sujeito. Cabe aqui um trecho, datado provavelmente de janeiro de 1942 na Alemanha, de um escrito de Sophie Scholl, combatente católica do regime nazista e no qual se expressa o valor da real experiência cultural(17):

    "Na conversa sobre a fome da alma e sobre o alimento que poderia silenciar essa fome, começamos a falar de música... A música poderia aplacar a fome da alma? Algo que vem da alma poderia ser seu meio de alimentação?...

    Eu experimentara que um espírito duro sem um coração dócil devia ser tão infrutífero como um coração dócil sem um espírito duro. Eu creio, a frase vem de Maritain: Il faut avoir l’ esprit dur et le coeur tendre. Uma palavra não vivenciada pela alma é uma palavra morta, e um sentimento que não é o útero de um pensamento, é vão. Música porém faz o coração dócil; ela organiza sua confusão, libera sua contração e cria assim uma disposição para a ação do espírito na alma, na qual ele antes batia em vão, nos seus portões fortemente trancados. Bem, totalmente em silêncio e sem violência, a música abre as portas da alma. Agora elas estão abertas! Agora ela está pronta, a receber. Esse é o efeito último, que a música efetua em mim, a qual a torna necessária para mim nessa vida".

    E escrevendo sobre o que poderia ser a experiência de um público ouvindo um concerto numa vesperal, sob o regime nazista:

    "O gosto, o qual uma vesperal de concerto tem hoje em si, é o insosso, aguado gosto de burguesia. E porém não poderia ser que a música apesar de tudo tocasse um entre muitos e a vesperal assim ganhasse um sentido"?

    Esse efeito da cultura como contra-veneno a quem é útil? Será que só aos que já tem com ela um vínculo, possibilitado pela relação básica? Certamente a esses ela marca mais intensamente pois têm vias de acesso e vias de circulação, mas aos que não tem isto algo acaba por ser encontrado, e a meu ver, especialmente se há como veiculador uma presença que possibilita ao futuro receptor uma experiência de sentir-se reconhecido, validado. Aos poucos, a cultura por suas obras, vai sendo um objeto reconhecedor do sujeito e assim validando-o, chama-o a tomar posse do que é seu, assim como no caso específico do psicanalista torna-se um meio de afinar seu ouvido e apurar seu tato, por, a exemplo de Freud, deixar circular em si os ritmos, as emoções das grandes obras e "na mágica dessas obras se deixar", repetindo Fuente, "viver".

    Uma experiência minha ao ler Freud numa extensão maior do que a de uma simples consulta é a de me sentir uma pessoa melhor, uma experiência de expansão. Recordo palavras de Goethe: "Todo objeto bem contemplado abre em nós um novo órgão". Volto algumas páginas atrás, ao falar da intimidade de um ser com seu mundo, a intimidade com os objetos que não fazem objeções à sua existência, objetos que o contemplam bem – esse é o mundo cultural pleno de objetos que por nos contemplarem bem, nos abrem um órgão a mais para que por nossa parte possamos ver melhor. Certamente Freud na intimidade com Dom Quixote, com Fausto, abriu em si alguns órgãos a mais que lhe permitiram ver, naquilo que era considerado o lixo da psiquiatria: histeria e sonhos, um sentido e a chave do inconsciente e suas leis.

     

    Henrique Honigsztejn é psicanalista, membro efetivo e analista qualificado a analisar e supervisionar candidatos da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. É autor de A psicologia da criação (l990).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

    1. Freud, S. (1917). Vorlesungen zur Einfiihrung in die Psychoanalyse und Neue Folge – III Teil,24. Conferências introdutórias sobre psicanálise. parte III – 24 Band I – S. Fischer Verlag . Frankfurt am Main – 1969. (Ed. Standard Brasileira – vol. XVI (pag. 453). Imago Editora - Rio de Janeiro. 1976.

    2. Freud. S. (1904) Über Psychotherapie – Studienausgabe- 1904 (S.A) S. Ficher Verlag – Frankfurter am main. 1975 (Ed. Standard, Brasileira – vol. VII pag. 245 e sg.) 1989.

    3. Freud. S. (1895) Projeto para uma psicologia científica (1950) Ed. Standard Brasileira – vol. I Imago Editora Rio de Janeiro. 1990.

    4. Freud, S. (1926) Hemmung, symptom und angst – S. A. vol VI – Inibições, sintomas e ansiedade, pag. 162. Ed. St. Bras. Imago, vol. XX. 1976.

    5. Freud. S. (1914) Zur einführung der narzissmus –S.A vol. III. 1914. 1975; Ed. St. Bras Imago –vol. XIV pg. 93. 1974.

    6. Freud, S. (1917) Eine Kindheitserinnerung aus Dichtung und Wahreit – S. A . vol. X – 1969; Uma recordação de infância de Dichtung und Wahreit. Ed; St. Bras. Imago – vol. XVII. 1976.

    7. Winnicott, D. W. "Transitional objects and transitional phenomena" in: Playing and reality. Tavistock Publications, London. 1971.

    8. Winnicott, D. W. (1954) "Estabelecimento da relação com a realidade externa – criatividade primária" in: Natureza humana. Imago Editora Rio. 1990.

    9. Schiller, J.C.F.(1796) in: Schillers Werke – vol. VIII Meyers Klassker – Ausgaben – Leipzig und Wien s.d.

    10. Freud, S. (1925) Selbstdarstellung – Fischer Taschenbuch Verlag 1971 – Um estudo autobiográfico. Ed. St. Bras. Vol. XX. 1976.

    11. Winnicott, D. W. (1958) – "The capacity to be alone" in The maturational processes and the faciliting environment. The Hogarth Press, London. 1965.

    12. Honigsztejn, H. A psicologia da criação. Ed. Imago, Rio. 1990.

    13. Simmel, G. – citado no verbete Kultur da Historiches worterbuch der philosophie – Wissenschaftliche Buchgesellschaft – Darmstadt. 1976.

    14. Nietzsche, F. Unzeitgemässe betrachtungen II kritische studienausgabe – vol. I – Deutscher Taschenbuch Verlag – de Gruyter – Munchen, Berlin, New York. 1980.

    15. Winnicott, D. W. "Dreaming, fantasying and living" in: Playing and reality. 1971.

    16. Freud, S. (1932) – Briefe 1873 – 1939 – S. Fischer Verlag Frankfurt am Main. 1960.

    17. Scholl, Hans e Sophie – Briefe und aufzeichnungen. Fischer Taschenbuch Verlag – Frankfurt am Main. 1988.