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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.4 São Paulo out./dez. 2004

     

     

    DESTRUIÇÃO DA CULTURA, DESTRUIÇÃO DE SIGNIFICADOS E REPRESENTAÇÕES*

    Leopold Nosek

     

    Os rituais e os mitos toleram poderosas doses de fantasia e deformações da realidade se cumprirem sua função de permitir o fluir da vida, a ordenação da experiência pessoal e o viver comum. Permitem que não necessitemos pensar a cada momento e a cada experiência. Encontramos um aparelho cultural já pré-existente que nos encaminha nas bênçãos do nascimento, nos trajetos de passagem para a vida sexual e adulta e para os cerimoniais da morte como também para as rotinas da reprodução social e encaminhamento de nossas necessidades subjetivas. Freud nos dizia em Totem e tabu como os cerimoniais de luto nos protegem da alegria, por termos sobrevivido, ou do ódio por sermos abandonados.

    Nada se encontra mais no lugar de costume e, se estávamos distraídos, o 11 de setembro e o 11 de março não nos permitiram mais a cegueira. Causaram um choque perceptivo que nos obriga à reflexão. Porém, a violência é apenas mais barulhenta. O que aconteceu na França quando oito mil idosos morreram pelo calor do verão de 2003? Foram afetados pelas altas temperaturas ou pelo abandono social e isolamento, ou pelo fato de terem-se tornado estrangeiros em sua cidade, bairro, rua, edifício e família? O número de idosos falecidos é três vezes o número de vítimas no atentado ao WTC. Realmente a reflexão não se realiza, obrigatoriamente, pois como a psicanálise ensina, poderemos reagir ao trauma repetindo indefinidamente as mensagens recebidas e, utilizando velhos recursos, rotinas, formas habituais de pensar, recusar o pensamento crítico e criativo e assim permanecer inalterados em nosso aparente saber. Buscamos nessa repetição atenuar o choque e fazer triunfar a permanência do consagrado. Em outro trajeto, podemos também demonizar o estranho ou, com um pouco mais de recurso, chamando a força e a polícia, podemos afastar de nosso campo de sensibilidades o que traz risco para a nossa sacralizada paz. Nada disso é muito obscuro, tudo faz parte dos recursos básicos do espírito para lidar com a vida pessoal desde muito precocemente. Vemos isso todos os dias em nossas salas de análise. Com um pouco mais de expediente, encontraremos explicações positivas e seguras, compreenderemos e tomaremos providências eficazes, ser científico é o apelo. O que não soubermos – e não suportamos tal inépcia – chamaremos de Deus, e mais uma vez retornaremos ao saber seguro, ao fundamentalismo.

    Mas, como Marlow, o narrador de O coração das trevas, de Joseph Conrad, gosto de pensar que:

    "The yarns of seamen have a direct simplicity, the whole meaning of which lies within the shell of a cracked nut. But Marlow was not typical (if his propensity to spin yarns be excepted), and to him the meaning of an episode was not inside like a kernel but outside, enveloping the tale which brought it out only as a glow brings out a haze, in the likeness of one of these misty halos that sometimes are made visible by the spectral illumination of moonshine".

    De fato não temos os diagnósticos e as soluções. Mas ainda assim a reflexão se impõe. Como a Marlow, apenas algumas reflexões espectrais se mostram a mim.

    O mundo se move e o espírito o persegue como Tântalo, sem nunca abraçá-lo. Otto Rauk dizia que a cultura é como o sonho da humanidade. Devemos dormir todos os dias para que possamos sonhar e assim darmos conta do traumático cotidiano ou, o que também é verdade, porque sonhamos, dormimos. Sabemos que poucos dias sem dormir bastam para que se instale a loucura. Dizendo de outro modo, a loucura, por ser carente de sonhos impede a percepção do novo. Podemos sobreviver por mais tempo sem alimento ou abrigo do que sem dormir. Aliás, alimentação e abrigo são o que necessita uma plantinha, acrescente-se afeto e estamos no campo do que requerem os animais domésticos. A cultura é, portanto, o sonho que nos humaniza. Aqui penso em cultura como a roupa que vestimos, o livro que lemos, a música que ouvimos, a maneira como saudamos nosso semelhante. São os mitos, os rituais que recheiam nossa vida de significado e sentido. O conjunto é como uma poética que elabora o passado, significa o presente e projeta o futuro. No entanto, este acervo é insuficiente para dar conta do movimento do mundo, para fazermos frente à individualidade, ao fato de termos um corpo, um sexo, amores, paixões e morte. Aqui estamos no campo do traumático. A simples existência de um porvir já é traumática.

    Eric Hobsbawn no seu livro Interesting times fala que a segunda metade do século XX foi um período inusitado da história da humanidade e que, a não ser por deflagrações e guerras localizadas, nunca a humanidade viveu um estado de paz e prosperidade tão evidentes. O ritmo de produção de mercadorias atingiu uma ordem universal com uma última afirmação triunfante marcada e simbolizada pela queda do Muro de Berlim. A economia de mercado se torna hegemônica, superando as tentativas de acumulação primitiva mediadas pela centralização do Estado.

    A acumulação por parte de empresas privadas é de tal monta que supera o poder do Estado causando, pela concorrência, não somente a falência do leste europeu, como gerando mudanças em toda parte, em toda a organização social, afetando, em última análise, as formas de organização de nossa subjetividade. A globalização não é a marca que distingüe nossa época. Ela já estava presente na transformação do mundo na época das grandes navegações. Assim, a chegada à Europa das riquezas provenientes do Novo Mundo acentua as transformações que são sua conseqüência. Os estados nacionais que surgem têm aí um fator de aceleração. A inflação que surge na Espanha, fruto da chegada de quantidades enormes de prata do Peru e da Bolívia é fator determinante na débâcle da grande armada de Felipe II e no surgimento de uma nova potência colonial – a Inglaterra.

    GLOBALIZAÇÃO A vinda de escravos da África ao Brasil entranha as estruturas sociais de ambas as regiões até hoje. Assim, globalização é um termo que ofusca mais do que ilumina as novas questões. Talvez o conceito de pós-modernidade também não seja esclarecedor, já que não há de fato uma mudança no paradigma do viver social, mas sim uma agudização e uma radicalização nas formas tradicionais de organização da sobrevivência e reprodução das estruturas sociais e econômicas.

    Continuamos a viver num mundo produtor de mercadorias e em busca do lucro. A acumulação para a produção é um problema tanto das economias liberais como das estatizantes. O que caracteriza nossa época é um salto tecnológico que é correlato à centralização de capitais. Esta é de tal ordem que empresas privadas têm um poder de investimento que supera o da maior parte dos Estados nacionais. O Estado deixa de ser um ordenador da economia e torna-se, inclusive, um empecilho para a livre circulação do capital. Perde seu poder de suprir educação, saúde, guarda de fronteiras e segurança aos seus cidadãos. Tudo se privatiza. O acúmulo de recursos torna mais eficiente a produção. O espectro da fome desaparece e a gama de produtos disponíveis ao viver, à comunicação, ao lazer, nunca foi tão ampla. Ao mesmo tempo, massas de pessoas são deslocadas de seu fazer habitual. O próprio trabalho requer crescente concentração de eficácia. Não basta a universidade, o MBA ou um PHD para ter a garantia de emprego.

    Porém, o desenvolvimento contém um paradoxo: as populações letradas aumentam, a liberdade individual se amplia mas a insegurança também aumenta. O ciclo econômico se acelera. A riqueza se avoluma, mas para indivíduos envolvidos em atividades de ponta na economia, não é nenhuma surpresa tornar-se obsoleto aos quarenta anos. Vivemos mais, mas nos tornamos anacrônicos mais cedo. Esse movimento social amplia as massas de lúmpens, a classe trabalhadora e a classe média se dissolvem. Ao lado do incremento da riqueza e das possibilidades é inevitável a explosão de massas de excluídos. A produção requer menos indivíduos envolvidos e o setor terciário se agiganta. A própria riqueza se apresenta mais explicitamente para ilustrar a exclusão: desenvolvem-se em condomínios e espaços exclusivos das cidades guetos de privilegiados. Além disso, essa acumulação ocorre também em pólos internacionais de desenvolvimento e assim se dá a marginalização e a lumpenização de culturas, civilizações e povos inteiros. Mas isto já é outra discussão.

    É neste campo de insegurança que vou introduzir uma reflexão psicanalítica. Terá como propósito como que uma microscopia do conceito de Durkheim de anomia, ou seja, a perda de valores morais e culturais, produto de mudanças da estrutura econômica e social.

    MUDANÇAS Minha geração ficou adulta no final dos anos 1960. Participou talvez da maior convulsão política e social que precedeu as mudanças a que assistimos hoje. Vou dar alguns exemplos do cotidiano para ilustrar as mudanças em jogo. Em 1970, o Brasil foi tricampeão mundial de futebol, enquanto muitos de minha geração eram presos ou éramos chamados de terroristas. Terrorista, então, era um termo genérico que se aplicava a todos que se opunham aos regimes militares na América Latina. Vejam que o termo hoje implica em formulações diferentes. Diferentes dos anarquistas do século XIX e dos de minha juventude.

    Mas, voltando ao futebol, o goleiro do Brasil passava a bola para o lateral que caminhava com ela até perto do centro do campo. Então, ele a tocava para Gérson, meio de campo genial que também não corria (sabia-se que ele fumava). Daí Gérson dava um passe de 40 metros para Jairzinho, este sim era excelente corredor, e só aí então apareciam no vídeo (pela primeira vez víamos uma copa do mundo pela TV) alguns adversários italianos como que a perscrutar o que o brasileiro estava a fazer ali perto do gol. Nós gostávamos quando a bola chegava a Pelé e ele, fazendo algum malabarismo fantástico, a colocava para dentro do gol adversário. Era o tempo do milagre econômico brasileiro.

    Hoje, quando o goleiro passa a bola para o defensor, este já está sob forte assédio dos marcadores. Corre-se hoje por todo o espaço, tudo está sob marcação. Como no futebol, que é popular como é porque mimetiza a vida. É o esporte que se caracteriza pela imprevisibilidade, onde a lógica e a justiça não predominam, pois o melhor não vence, necessariamente, o pior e, além disso, às vezes o juiz rouba. Tudo faz parte do jogo.

    Naquela época, para quem quisesse estar em forma havia o manual da força aérea canadense, que apregoava que doze minutos de ginástica diária asseguravam boa saúde física. A seguir, se torna popular a prescrição de Cooper de fazer três quilômetros de corrida em 14 minutos. Hoje, no entanto, se não se corre uma maratona o que se faz não é levado a sério.

    Como psiquiatra e terapeuta iniciante no começo dos anos 1970, vi dois casos de anorexia, nenhum de bulimia ou pânico, e epidemias de obesidade não estavam no horizonte. Discutia-se se a produção de alimentos acompanharia a explosão demográfica. Quando havia um roubo numa cidade pequena, se sabia onde morava o ladrão. O louco oficial era tolerado e as crianças brincavam com ele na praça. Como analista, tinha uma preocupação de ação próxima à da visão que se popularizou – a de que através da psicanálise o inconsciente se tornaria consciente.

    Eis o que eu fazia: procurava, a partir do que se manifestava, encontrar significados ocultos que, quando revelados, levariam a uma ampliação do recurso pessoal e desfariam os sintomas. Estes estavam de acordo com a formulação de Freud: "estas maravilhosas construções estéticas que são os sintomas". Eram plenos de mistério, engenho e significado. A consigna era "onde havia inconsciente para haver consciente".

    Hoje, as patologias e os fenômenos que vemos predominantemente nos consultórios têm outra organização. O que vemos é pobreza construtiva no que nos falam os pacientes de distúrbios alimentares, pânico, humores depressivos ou até mesmo os que apresentam queixas explícitas de falta de sentido. Não falam muito, pouco se estendem em suas formulações ou, quando o fazem, não abstraem sua apresentação, têm uma concretude dura, uma exterioridade densa, e pouca possibilidade de suspeitarem da existência de uma interioridade. Meu olhar foi mudando ou mudou a subjetividade com a qual nos deparamos? Acredito que encontramos a mente não mais em episódios desconstrutivos, mas sim em estado de não construção. Estaria então a psicanálise ultrapassada? Entramos na era das medicações e das variantes de velhas abordagens de condicionamentos?

    CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO A reflexão que se impõe, então, é como se constrói o espírito, tanto na vertente individual como a do indivíduo imerso na sociedade. A cultura fornece, com a lírica, conteúdo e conhecimentos, mas não apenas isso. Fornece pela sua forma, como vemos na arte, a estrutura do pensar. Funciona como o sonho da humanidade. Retomando a idéia de barreira de contato do psicanalista inglês W. Bion, podemos dizer que os sonhos, ou melhor, os elementos oníricos constroem o território do inconsciente e do consciente, dão a raiz associativa de múltiplo trajeto para o estar no mundo e para responder a ele. Por esta membrana criam a estrutura da intimidade. Vão dar, também, a forma que separa masculino do feminino, vivo do morto e interno e externo. Na construção dessa membrana constitui-se como que um aparelho de permeabilidade seletiva que nos protege do excesso de estímulos. Para tomar apenas um exemplo, sem a membrana onírica os nossos olhos nada veriam, ou a visão seria caótica e excessiva. Não poderíamos lidar com a luz, as formas, as texturas etc. O mesmo ocorre em qualquer órgão dos sentidos ou para a consciência de nossos desejos e emoções. Ou seja, a formulação central dessa reflexão é que os sonhos não somente povoam o espírito como também lhe fornecem sua arquitetura e possibilitam a vida de relação com as pessoas e com o mundo. Lembro Freud que, numa linda metáfora, nos dizia que os sonhos são como as estrelas, pois estão sempre aí. Mas para enxergá-los é preciso que se faça o escuro. Os processos oníricos não se interrompem na vigília, apenas passam desapercebidos.

    O Brasil de 1970 tinha 90 milhões de habitantes dos quais 45 milhões moravam nas cidades. No censo de 2000 tínhamos ao redor de 170 milhões, 80% vivendo nas cidades. Ou seja, nossas cidades foram palco de uma enorme migração, sofrendo uma explosão demográfica espantosa. Isso ocorre por ocasião do chamado milagre econômico brasileiro que foram anos de estupendo crescimento da economia. Beneficiado por aportes de capital estrangeiro, o PNB cresceu por anos seguidos a uma taxa aproximada de 10% ao ano. Com a entrada desses capitais no campo, a estrutura da agricultura se modifica rapidamente. Desaparecem os colonos, os meeiros, a agricultura de subsistência, e o trabalho se torna assalariado. Há, também, incremento dos modos de produção, que se torna maquinizada e concentrada. As populações deslocam-se para a periferia das zonas agrícolas e, ou conseguem trabalho na agricultura ou, dado o menor número de trabalhadores necessários para a produção, vão procurar novas formas de inserção social. Ao mesmo tempo, nas cidades grandes vemos também um crescimento da concentração de capitais e a revolução tecnológica que transforma poderosamente o modo de viver. Ocorrem mudanças no sistema sindical e, como em toda parte, o Estado perde seu poder de intervenção tanto como organizador da economia quanto como instrumento de garantia de segurança da população. Seu poder de investimento decai, o que resulta em atraso de obras de infraestrutura, educação, saneamento etc. Assistimos à privatização de todas as áreas. Uma crise crônica se instala e o Brasil, que no início dos anos 1980 chega a ser a 8ª economia mundial em termos da medida do PNB, atravessa a passagem do século ainda mergulhado na crise.

    Como podemos incorporar 80 milhões de novos habitantes urbanos? Não podemos. As favelas crescem, não se criam novos empregos, sobrevive-se de expedientes, há um crescimento vertiginoso da criminalidade e da violência urbana. Classes mais abastadas vivem em residências de muros altos, condomínios fechados, com cada edifício possuindo seu próprio sistema de segurança especializado. As ruas, as praças se tornam lugares de passagem e os shopping centers tomam o lugar dos espaços públicos. A mulher chega ao mercado de trabalho e, comumente nas classes mais desfavorecidas, ela se torna o eixo da sobrevivência pois, ganhando menos, tem acesso facilitado.

    Isso tudo ocorre vertiginosamente e não há tempo suficiente para se organizar socialmente: não somente um sistema de viver como, também, estruturas culturais para fornecer o meio específico, o tecido conjuntivo intersticial que liga as classes, os grupos sociais, os habitantes de uma mesma localidade, seja ela uma região, cidade, bairro ou quarteirão. Perdem-se os modos tradicionais e não há tempo de se organizar, o que seria mais compatível com os tempos que correm. Em Vinhas da ira, de John Steinbeck, vemos os plantadores de laranja tendo o tempo de adaptação na sua migração quando chegam à Califórnia.

    BARBÁRIE Hoje, o ciclo econômico é tão mais rápido que é de se pensar se essa adaptação vai ocorrer ou se teremos apenas ilhas de civilização cercadas de barbárie crescente. Isto ocorre no interior dos países como, por exemplo, o Brasil, e também entre regiões, na divisão internacional do capital e do trabalho. Como dito antes, o corolário desta dinâmica traz, ao lado do incremento de riquezas, a possibilidade de destruição do sentido e das representações necessárias para, por assim dizer, deixar a vida correr. No plano social há a destruição da cultura tradicional, o que leva a alterações na estrutura familiar: desaparece o tempo do lazer, do convívio, do flanar, do brincar, da interação criativa. Os adultos, mergulhados na questão da sobrevivência, as famílias desfeitas, as novas formas das relações entre os sexos não permitem que se estruture a relação que promove o acervo individual de sonhos. É comum encontrar numa família da periferia de São Paulo o pai desempregado, a mãe trabalhando fora e os filhos de 6 anos cuidando dos filhos menores. É também comum a gravidez entre adolescentes e todas as mazelas sociais imagináveis.

    Como disse antes, acostumamo-nos com a idéia da psicanálise como descobridora de significados ocultos que, ao serem revelados, desfariam os nós que causam os sintomas e os sofrimentos do espírito. Esta é, inclusive, a visão que a sociedade tem da nossa prática. Numa formulação freudiana, seria a nossa tarefa tornar o inconsciente consciente. Na formulação kleiniana clássica, seria encontrar a angústia, a defesa e as fantasias. Essas formas de encarar o trabalho clínico pressupõem que existe um território separado do outro, ou seja, que o inconsciente já está estruturado. Pressupõem que existe uma fronteira que separa os dois territórios. Há que cuidar que essa visão espacial é apenas uma metáfora para dar conta da compreensão do aparelho psíquico. No entanto, como é clássica, vou me manter nela.

    Vimos como as estruturas clássicas que encontramos nos consultórios foram se transformando. Não encontramos mais com freqüência a possibilidade confortável de trabalharmos com outra subjetividade, mantendo-nos com existência garantida. Encontramos ou pobreza associativa ou, o que é mais comum, a fala com função de ação ou de alívio. Se não houver a fala de livre associação também não há trajeto para interpretarmos o inconsciente. As subjetividades se misturam e isso deve ser permitido ou não há trabalho analítico, apenas uma espécie de doutrinação, de explicações psicanalíticas que podem oferecer, quando muito, um campo artificial de segurança.

    Assim, coloca-se imediatamente a questão da matéria de que são feitas as fronteiras. Como se organizam e se são apenas separação virtual entre instâncias psíquicas ou se essas membranas são elas mesmas estruturas em si. Vimos com Bion que, por justaposição de elementos oníricos, estabelecem-se duas faces – uma de conteúdos manifestos e outra de conteúdos latentes. A construção de sonhos permite a estruturação desses dois espaços do consciente e do inconsciente. O mesmo autor nos mostra como tal processo de construção é social. Uma subjetividade se encarrega de sonho impossível para a outra, e lhe fornece elementos mais simples para que a primeira possa organizar tanto sua capacidade de sonhar as experiências às quais está submetida como seu sonho individual específico. Esta entrega que, em geral, associamos a uma função materna, é a raiz de toda a ética, corresponde ao olhar absolutamente gratuito de um ser humano sobre outro. Num outro contexto talvez pudéssemos discutir a ética derivada do superego, mas de qualquer forma deixo isto aqui apontado.

    É nesse espaço que Bauman Z. diz ocorrer uma das rupturas mais radicais da pós-modernidade. Bauman retoma a idéia de Levinas E. da ética ser originária da entrega de um ser humano a outro não em função da eficácia social ou qualquer outra, apenas por ser uma face humana. Assim, o que é insuportável para alguém pode encontrar abrigo nas entranhas do Outro. O Estranho encontra hospedagem e o hospedeiro se fertiliza em sua essência. Desse encontro nasce o novo que é adequado ao tempo em que é concebido.

    É, sem dúvida, nesse universo microscópico que as rupturas na vida cultural se abatem. Onde não há possibilidade de a membrana onírica se instalar ou funcionar é o território do traumático, e aí retornamos a Freud, mas a outro Freud, aquele das formulações sobre o traumático e da descrição da vesícula que protege o aparelho psíquico tal como descrito em Além do princípio do prazer.

    Voltando um pouco, essa tela de sonhos é que vai também separar corpóreo de psíquico, masculino de feminino, morto e vivo. Traumático, então, se torna tudo o que não tem trajeto onírico a percorrer. O futuro é traumático quando carente de utopia, e para o traumático do presente cotidiano necessitamos dormir todos os dias para que os trajetos ocorram. De outra forma, apenas poderíamos usar mecanismos que impeçam que tenhamos a experiência do ocorrer da vida. Vivemos o momento do mundo como excessivo e intolerável. Temos a mesma experiência com as emoções. O mundo interno e externo se torna inóspito.

    Em outro contexto, autores que estudaram abusos de crianças encontram vazios construtivos do espírito. Shengold L. postulou o termo "assassinato de almas", para descrever a estimulação excessiva que sofre a alma infantil submetida ao abuso de intrusões sexuais ou privações extremas. Com alguma licença, não creio ser absurdo falarmos de genocídio de almas para as movimentações sociais e culturais que citamos acima. Numa experiência simples da minha prática hospitalar, era comum as famílias pobres dizerem que não deixavam as crianças brincarem na rua porque as pessoas da vizinhança não prestavam. Ocorre aí não somente a perda de vínculos de solidariedade como também o não reconhecimento no grupo que poderia ser seu espelho. Quando se pede para essas pessoas desenharem a figura humana é regra faltarem pedaços significativos da anatomia. Também se pode perguntar como se constroem espíritos como vemos em operários da construção civil. Há os que podem colocar tijolos uns sobre os outros, mas encontramos também os que não conseguem fazê-lo e que, na divisão do trabalho, apenas misturam cimento, areia e água. Mais surpreendente ainda é haver os que nem isso conseguem e que, então, só levam os materiais num carrinho de mão de um local a outro. Não há construção da mente que permita uma visão espacial ou temporal. Nesta miséria construtiva, passar do impulso para a ação é uma regra. E como socialmente faremos frente a ajudarmos a construir um espírito que não fez um patrimônio, um acervo mínimo de sonhos?

    Relembro um conto de Truman Capote, publicado quando tinha 17 anos, no livro A árvore da vida. Conta-nos de uma moça que vem para a cidade grande, Nova York, para fazer a vida. Mas suas tentativas vão resultando infrutíferas e ela passa a freqüentar um grupo de desocupados e marginais. Ela, então, descobre que estes para sobreviver, quando têm um sonho, vendem-no a um poderoso e interesseiro personagem por cinco dólares. Também ela começa a viver desse expediente. Depois de um tempo, porém, ao se dar conta que sua vida não tem sentido, pensa em voltar para sua cidade natal. Todavia não pode voltar, algo a prende onde está. Percebe que não pode voltar sem seus sonhos. Ela, então, arranja um trabalho e guarda o dinheiro para comprá-los de volta. Quando procura o poderoso cidadão e lhe propõe a recompra, ouve dele a surpreendente resposta: "Isto é impossível. Não posso vendê-los pois já os consumi."

    Que poderosa metáfora pôde um jovem escritor nos presentear. Ela ilustra bem o que estou lhes estou apresentando.

    Freud no Projeto para uma psicologia cientifica já nos dizia que a raiz de toda a ética é a dependência prolongada do ser humano em sua infância. É nessa dependência primária que se estrutura a capacidade para produzir sonhos, ou seja, é uma estrutura básica já de início dependente de outro ser humano, social, portanto.

    O conto de fadas que serve à elaboração do espírito infantil não é feito de matéria que possa ser vista simplesmente na televisão. Necessita do aconchego de alguém que conte a história. Assim é desde o nascimento.

    Finalizo, conjeturando: quem aconchegará o necessitado contador de histórias para que este possa receber o desamparo de quem precisa dessas histórias para crescer?

     

    Leopold Nosek é médico, psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

     

     

    * Este texto é uma versão da conferência dada no evento "Interdisciplinary conference on terror, violence and society", em Berlim, abril de 2004.