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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.4 São Paulo oct./dic. 2004

     

     

    DOM QUIXOTE E SANCHO PANÇA: A BUSCA DO EU NO OUTRO

    Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

     

     

    INTRODUÇÃO A psicanálise é um método de investigação da vida mental que utiliza como matéria-prima os elementos de vida emocional que surgem, inevitavelmente, quando duas personalidades se encontram. O encontro é, portanto, condição fundamental para o estabelecimento e a continuidade do processo psicanalítico. É necessário, porém, que esse encontro ocorra num setting específico, arquitetado com a finalidade de propiciar condições ótimas de observação da vida emocional, bem como de permitir as intervenções interativas inerentes ao processo de investigação.

    Classicamente, a psicanálise foi descrita como uma talking cure, uma cura pela fala, mas a experiência acumulada ao longo de sua curta existência já nos mostrou que esse rótulo não se sustenta. Não é viável, hoje, a entendermos exclusivamente como uma cura no sentido médico, e muito menos localizarmos o seu núcleo funcional só na palavra.

    O encontro entre o analista e o analisando reproduz em essência um encontro humano comum, no qual os participantes se enredam num torvelinho de experiências que inclui, naturalmente, a possibilidade do desencontro. A experiência emocional implica, necessariamente, na presença de pelo menos duas personalidades que, em última instância, podem concordar ou divergir. Desde seus primórdios, a psicanálise ocupou-se dessas nuvens de concordância e discordância que se formam nos consultórios, desenvolvendo recursos técnicos para promover as "precipitações pluviométricas" que nos colocam em contato com as partículas elementares da vida emocional.

    Esse processo, no entanto, sendo parte da natureza humana, deve ter existido desde tempos imemoriais, tendo interessado aos filósofos antes do surgimento dos psicanalistas como nos atestam, entre outros, os diálogos platônicos e a maiêutica socrática. O assunto continua a interessar aos filósofos contemporâneos, como Martin Buber e Emmanuel Lévinas, além de estar no centro da universalidade da boa ficção literária como a produzida por Shakespeare, Cervantes ou Dostoievski. Desde que formularam a dualidade sujeito-objeto, os filósofos têm insistido na interação dialética que determina não só a estrutura de cada termo, mas também o seu convívio. Coube, porém, aos psicanalistas e a seus analisandos encarnarem essas figuras conceituais, animando-as com o sopro da vida emocional e, a partir dessa experiência, revelarem as modalidades de mecanismos, e a multiplicidade de usos, subjacentes à constituição do Eu com a ajuda do Outro: foram eles, ainda, que revelaram que a verdadeira empatia se funda na percepção que o objeto é também um sujeito.

    Como tributo ao aprendizado que nós psicanalistas temos auferido com os inúmeros relatos literários da interação íntima entre duas personalidades, dispus-me a fazer uma leitura comentada do Dom Quixote de Miguel de Cervantes, para ilustrar a busca do Eu no Outro mediante o relacionamento entre os personagens de Dom Quixote e de Sancho Pança.

    Vali-me, para tanto, da edição publicada pela Editora Logos de São Paulo, em 1955, que nos oferece uma tradução dos Viscondes de Castilho e de Azevedo com as famosas ilustrações de Gustave Doré. Para facilitar a contextualização, apresentarei primeiro o trecho selecionado (seja na íntegra, seja de forma resumida) para oferecer em seguida o meu comentário: o número em algarismo romano refere-se ao volume, a primeira parte publicada em 1605 constitui o volume I, enquanto a segunda parte publicada em 1615 está contida no volume II.

    LEITURA COMENTADA

    I, pg. 28: [...] e que todos os Cavaleiros Andantes levaram as capangas cheias para o que desse e viesse, e que igualmente levaram camisas, e uma caixinha pequena cheia de ungüentos para curar as feridas que recebessem a não ser que tivessem por amigo algum sábio encantador o qual, quando estivessem feridos, lhes enviasse pelo ar, em alguma nuvem, uma donzela ou anão com alguma redoma cheia de tais poderes que, em provando de uma só gota, sarassem de suas feridas. Mas, se isto não fosse possível, todos os cavaleiros providenciavam que seus escudeiros trouxessem dinheiro, camisas e ungüentos.

    Essa passagem nos sugere que a magnitude da missão dos Cavaleiros Andantes, o seu significado ético e moral, o desprendimento de suas ações, tudo isto implica num interesse pelo semelhante e, num certo sentido, no abandono de seus interesses pessoais. Assim sendo, o Cavaleiro Andante tinha uma expectativa, e talvez até uma crença na existência de uma rede de mobilização social ou mesmo mística, no sentido de ampará-lo. Nesse trecho, são mencionados como personagens passíveis de vir em seu auxílio, as donzelas e os anões, quer dizer, figuras míticas cuja função precípua seria atendê-lo e assessorá-lo. Na ausência, no entanto, desses seres sobrenaturais, espécie de "gênios da lâmpada" que pudessem socorrê-lo mediante um estalar de dedos, restava-lhe a presença terrena de um fiel escudeiro. Esse escudeiro, curiosamente, deveria portar pelo menos três objetos, dinheiro, camisas e ungüentos, ou seja, elementos simbólicos do poder de troca, do poder protetor e do poder curativo. Está implícito aqui que o escudeiro é um mero "portador" desses objetos, sendo o seu uso e significado de competência exclusiva do Cavaleiro Andante, que poderia solicitá-los na medida das suas necessidades. Essa questão comporta, porém, uma sutileza já que sendo o escudeiro um "espírito prático" que se contrapõe ao "mundo da lua" do seu amo, ele possui uma sabedoria material a respeito do uso dos objetos sob sua guarda que lhe confere, de fato, uma opinião de valor.

    I, pg. 58: Neste meio tempo, Dom Quixote começou a persuadir um lavrador seu vizinho, homem de bem (se tal título se pode dar a um pobre), mas de pouca inteligência, a sair consigo como escudeiro: tanto lhe martelou, que o pobre coitado concordou. Dizia-lhe, entre outras coisas, que deveria ir de bom grado, pois poderia ocorrer de ter a sorte de ganhar uma ilha, da qual poderia ser governador.

    O "aliciamento" de Sancho na empreitada fantasiosa de Dom Quixote nos é descrita como fruto de uma manobra astuciosa, impingida a um espírito simplório e de pouca inteligência que se deixa enganar pela isca sedutora de ser presenteado, ao final das aventuras, com a governança de uma ilha hipotética. Parece-me interessante indagarmo-nos a respeito do significado dessa oferta. Por que uma ilha? Se o intuito verdadeiro fosse conferir-lhe um poder genuíno, o natural seria a outorga de algum feudo e não a posse de uma ilha, prontamente associável à idéia de exílio ou desterro. Fica-se aqui com a falsa impressão de que Sancho embarcará enganado nas aventuras e não, como me parece ser o caso, que ambos necessitam um ao outro, para encontrar-se.

    I, pg. 64: – E é verdade – respondeu Dom Quixote – e se me não queixo com a dor, é porque aos Cavaleiros Andantes não é dado lastimarem-se de feridas, ainda que por elas lhe saiam as tripas.

    – Sendo assim, já estou calado – respondeu Sancho – mas sabe Deus se eu não achava melhor que Vossa Mercê se queixasse quando lhe doesse alguma coisa. De mim sei eu, que, em me doendo seja o que for, hei de por força berrar, se é que a tal regra, de não dar mostras de sentir, não chega também aos escudeiros do Cavaleiro Andante.

    O próprio Dom Quixote, no entanto, encontra-se exilado num mundo irreal de sonhos e fabulações que o deixa alienado não só de seu grupo social e do momento histórico em que vive, mas também de seu próprio corpo, como explicitado nessa postura de "anestesia moral" que ele assume, colocando-se acima e a salvo das mazelas do corpo. Sancho, por seu turno, deixa explícito que, doendo-lhe alguma coisa ele não hesitaria em "botar a boca no trombone", reivindicando assim qualquer tipo de ajuda que pudesse lhe aliviar o sofrimento. Temos aqui dois sistemas de funcionamento: um estóico o outro hedonista; o mais significativo, porém, é que, permitindo-se sofrer a dor Sancho, em princípio, dava-se a chance de aprender com a experiência enquanto Dom Quixote negando a dor, anulava concomitantemente o valor da experiência, alçando-se a um universo idealista.

    I, pg. 76: Das graciosas argumentações que ocorreram entre Dom Quixote e seu escudeiro Sancho Pança:

    – Que bálsamo é este (Bálsamo de Ferrabraz) – disse Sancho Pança.

    – É um bálsamo – respondeu Dom Quixote – do qual tenho a receita na memória, com o qual não precisam ter medo da morte, nem pensar em morrer por qualquer ferimento; e assim, quando o tiver preparado e o entregar a você, se constatar que me partiram o corpo ao meio em alguma batalha, como muitas vezes pode acontecer, recolha o pedaço do corpo que tenha caído ao solo (com muito cuidado, antes que o sangue fique gelado) e a coloques sobre a outra metade que tiver ficado na sela assegurando-se que estejam bem encaixadas; a seguir, me faça beber só dois tragos do referido bálsamo e verás que eu estarei mais saudável que uma maçã.

    –Se isto for verdade – disse Sancho Pança – renuncio agora mesmo à governança da ilha prometida e nada mais quero em pagamento de meus muitos e bons serviços, do que receber de Vossa Mercê a receita desta bebida milagrosa, que tenho para mim se poderá vender a olhos fechados cada onça dela por mais de quatro vinténs. Não preciso mais para passar o resto da vida louvadamente e com todo o descanso. O que falta saber, é se não será muito custoso arranjá-la.

    – Com menos de 3 reais se pode fazer camada e meia – respondeu Dom Quixote.

    – Valha-me Deus! – replicou Sancho. E o que Vossa Mercê está esperando para me ensinar?

    – Cala-te, amigo – respondeu Dom Quixote – que maiores segredos penso lhe ensinar e com maiores favores lhe obsequiar; mas , por enquanto, vamos nos curar, pois minha orelha está doendo mais do que eu gostaria.

    O bálsamo de Ferrabraz, substância milagrosa cuja fórmula Dom Quixote guarda em sua "memória" tem não só o poder radical de afastar a morte, mas também o poder reparador de reconstituir o todo, mediante o rejunte de suas partes. As instruções que Sancho recebe para recolher a metade do corpo de Dom Quixote que possa ter caído ao solo, encaixando-a na outra metade que tenha permanecido na sela, acompanhadas por uma série de cuidados (presteza para impedir o congelamento do sangue e ministração de dois goles do bálsamo), ilustra com clareza a busca do Eu no Outro. De fato, a fórmula que Dom Quixote guarda na memória a respeito de sua unicidade, é algo teórico que para completar-se depende de um complemento prático a ser instrumentalizado por Sancho. Note-se que nessa divisão de funções do par humano, encontramos uma repetição da cisão artificial sofrida por um corpo que é dividido em dois por um golpe de espada. Mas, qual será o "bálsamo" que "cola" a parte fantasiosa da dupla (Dom Quixote) com a parte realista (Sancho Pança)? Socorrendo-nos aqui da psicanálise, diríamos que esse conectivo é o elemento subjacente a todas as teorias de intersubjetividade, que nos ensinam, em resumo, que a unidade funcional do ser humano é o par ou seja, o sujeito se constitui através do objeto, e o objeto através do sujeito.

    Na parte final do diálogo, observamos uma inversão na colaboração mútua: Dom Quixote aplaca a cobiça de Sancho inflada pela perspectiva de enriquecer com o elixir milagroso, advertindo-o de que não se deslumbrasse com o ganho fácil pois assim, diz Dom Quixote, "maiores segredos poderei lhe ensinar".

    A analogia entre o indivíduo reconciliado consigo mesmo, mediante a junção de suas partes, e a maçã, ilustra o cuidado simbólico com que Cervantes revestia as suas metáforas, se lembrarmos ser a maçã o fruto da liberdade e do conhecimento que garante a juventude, a renovação e o frescor eternos.

    I, pg. 82: Cena da refeição com os cabreiros onde Dom Quixote, emocionado com o espírito democrático do grupo, convida Sancho a sentar-se a seu lado:

    – Viva muitos anos – respondeu Sancho – mas devo dizer a Vossa Mercê que, se fosse para comer bem, eu preferia comer sozinho e de pé, do que sentado junto a um imperador. E para ser sincero ainda saboreio mais aquilo que como no meu cantinho sem cerimônias ou melindres, mesmo que não passe de pão e cebola, do que os perus de outras mesas com a obrigação de mastigar devagar, beber pouco, me limpar o tempo todo, não espirrar nem tossir quando me der vontade, nem fazer outras coisas que a solidão e a liberdade permitem. Portanto, meu senhor, as honras que Vossa Mercê quer me dar por ser eu ministro da cavalaria andante e seu escudeiro, troque-as por outras coisas que me sejam de melhor proveito pois, se bem que estas me agradem, dispenso-as desde já até ao fim do mundo.

    Apesar disso hás de te sentar, porque Deus celebra quem se humilha.

    [...] Dom Quixote: - Ditosa idade e afortunados séculos aqueles, a que os antigos puseram o nome de dourados, não porque nesses tempos o ouro (que nesta idade de ferro tanto se estima) se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque então se ignoravam as palavras teu e meu.

    Nesta cena, Dom Quixote emociona-se com a generosidade dos cabreiros que convidaram nossos heróis a compartilhar de sua frugal refeição e, num rompante de igualitarismo democrático, convida Sancho a sentar-se a seu lado. Sancho recusa o convite tirando da algibeira uma argumentação incontestável, segundo a qual não se pode abrir mão da sem-cerimônia natural em prol dos artificialismos da etiqueta à mesa. Sentindo-se acuado, Dom Quixote sai pela tangente prescrevendo a Sancho uma espécie de provérbio diagnóstico: "Apesar disso hás de te sentar porque Deus exalta quem se humilha"; sua finalidade é calar a boca do outro metendo-lhe goela abaixo uma frase feita.

    É preciso entender que, numa tal circunstância, a dispensa do outro é só aparente já que fruto de uma argumentação que incomoda o sujeito em função de sua veracidade, obrigando-o a interromper temporariamente a fonte contestatória, tendo em mente ou uma digestão posterior do incômodo, ou uma ilusória eliminação arrogante do mesmo.

    Atente-se que, ao final, Dom Quixote vale-se de uma bela imagem que não só exalta a ausência da possessividade, mas também implicitamente, a formação de um campo emocional comum entre quem oferece e quem recebe.

    I, pg. 120: Na estalagem que Dom Quixote imaginava ser Castelo, Sancho explica à empregada o que é um "Cavaleiro de Aventuras":

    Sancho: – Pois sabei, irmã, que cavaleiro de aventuras é um sujeito que num instante tanto pode ser desancado, quanto ser um imperador. Hoje é a criatura mais necessitada e desgraçada do mundo, amanhã terá duas ou três coisas reais para dar a seu escudeiro.

    O "Cavaleiro de Aventuras" surge aqui como a versão sanchiana do Cavaleiro Andante. Sua versão, como sempre, é concisa e expressiva: "É um sujeito que, num instante, tanto pode ser desancado, quanto ser um imperador. Hoje é a criatura mais necessitada e desgraçada do mundo, amanhã terá duas ou três coisas reais para dar a seu escudeiro".

    Sancho destaca de modo enfático, a instabilidade e a transitoriedade da condição do Cavaleiro Andante, preferindo assim caracterizá-lo melhor como um aventureiro, muito mais uma vítima do destino do que seu construtor. Ao puxar a sardinha para o seu lado, ele, no entanto, está também nos informando a respeito da sua consciência de que, na condição de beneficiado, sua situação também é instável e conjuntural.

    Eu me surpreendi quando, pesquisando o significado do termo "escudeiro" descobri que o verbo escudeirar, na sua acepção transitiva tem não só um sentido de suportar uma provação, agüentar um rojão, enfrentar sem vacilo ou recuo uma empreitada, mas também a conotação de colocar de pé, endireitar, fixar firmemente numa dada posição. O escudeiro, portanto, antes de ser uma figura passiva, submissa e dependente do fado de seu senhor, é mais um colaborador ativo, uma instância vigorosa de apoio e solidariedade, tanto o co-criador de um destino quanto o co-responsável por sua fixação.

    I, pg. 218: Sancho argumentando a impropriedade de Dom Quixote tomar as dores da Rainha Madasima, que fora injuriada pelo louco de Serra Morena ao descrevê-la como amancebada, optando por um princípio ético:

    – Eu cá não o profiro nem o penso – respondeu Sancho – os outros lá, se avenham: e se os maus caldos mexerem, tais os bebam. Se foram amancebados ou não, contas são essas que já dariam a Deus; venho da minha vida, não sei mais nada. Que me importam as vidas alheias? Quem compra e mente na bolsa o sente; quanto mais, que eu vim ao mundo e nu me vejo: nem perco nem ganho. E também que o fossem, que me faz isso a mim? Muitas vezes não mais as vozes que as nozes; mas quem pode ter mão em línguas de praguentos, se nem Cristo se livrou delas?

    – Valha-me Deus! disse Dom Quixote – que de tolices vais enfiando Sancho! Que tem que ver o nosso caso com os adágios que estás arreatando? Por vida tua, homem, que te cales; daqui em diante ocupa-te em esporear o teu asno, quando o tiveres, e não te metas no que te não importa, e entende com todos os teus cinco sentidos, que tudo quanto eu fiz, faço ou farei, é muito posto em razão e mui conforme as regras de cavalaria, que as sei melhor eu que todos os cavaleiros do mundo.

    Os princípios éticos de Dom Quixote estão pautados por regras apreendidas por ele nos romances de cavalaria, constituindo-se desse modo num conhecimento livresco, ou seja, enquadrando-o na concepção pura de pedantismo. Sancho, no entanto, nos oferece uma bela demonstração de humildade ao revelar ter aprendido, ao longo de sua vida que, tendo nascido nu como os demais, não lhe competia opinar sobre a vida alheia, muito menos emitindo juízos de valor. Para reforçar a solidez de sua argumentação, ele invoca dois provérbios sendo que o segundo ilustra com perfeição o poder injurioso das palavras conferindo precedência às vozes em relação às nozes, isto é, destacando que a palavra pode ser manipulada de tal modo a deturpar a realidade que ela representa (a calúnia que o louco imputara à Rainha Madasima).

    I, pg. 446: Reencontro de Dorotéia com D. Fernando na estalagem:

    Dom Quixote: – Partamos pois, o quanto antes. Sancho, vai selar o Rocinante, aparelha o teu jumento e o cavalo da rainha, e depois de nos despedirmos do castelão e destes senhores, partamos sem demora.

    Sancho que participara de tudo, disse abanando a cabeça: Ai, senhor, senhor! Nem tudo o que reluz é ouro; com perdão seja dito do ouro verdadeiro [...]. Se o senhor se irritar, eu me calarei, deixando de dizer aquilo a que sou obrigado, como leal escudeiro e bom criado, a seu amo.

    Dom Quixote: – Dize o que quiseres, conquanto que suas palavras não visem me atemorizar; assuma o seu medo, se o tiveres, que eu procederei como quem não tem, se for o caso.

    Sancho: – Não se trata disso; cruz credo! – respondeu Sancho – mas sim de que tenho certeza de que esta senhora que diz ser a rainha do grande reino de Micomicão, não o é mais do que minha mãe; se ela o fosse, não andaria distribuindo olhares amorosos e ternos, para um dos aqui presentes.

    Ah! Deus santíssimo, que fúria teve Dom Quixote ao ouvir as palavras de seu escudeiro! Foi de tal monta que, com voz atrapalhada, gaguejando e lançando fogo pelos olhos disse: - Oh! Velhaco, vilão, atrevido, ignorante, desbocado, fofoqueiro e maledicente! Que palavras são estas que ousastes dizer em minha presença e destas senhoras, como é que ousastes por na tua imaginação semelhantes desonestidades e atrevimentos? Vai-te da minha presença monstro da natureza, depositário de mentiras e embuste, inventor de maldades, publicador de sandices, inimigo do respeito que se deve às pessoas reais; vai-te, e não apareças diante de mim sob pena de minha ira.

    Ao longo da história, Cervantes vai tecendo uma sutil dialética comunicativa entre Dom Quixote e Sancho Pança caracterizada pela fala desassombradamente épica do primeiro, em contraposição à fala espontaneamente crua do segundo, a qual, por saber-se portadora da verdade incômoda e antecipando a reação irada de seu amo, freqüentemente se cala atemorizada.

     

     

    Ora, Dom Quixote como todo bom sujeito que tem sua curiosidade aguçada pela insinuação de um interlocutor de que possui algo a dizer, mas não o faz por temer represálias, lança a Sancho um repto, desafiando-o a "assumir o seu medo, se o tiveres, que eu procederei como quem não o tem se for o caso" e, além do mais, advertindo-o para que "suas palavras não visem me atemorizar".

    Vislumbramos, aqui, o mecanismo psicológico da projeção na medida em que Dom Quixote transfere a Sancho o seu próprio medo de não suportar a verdade, sem debitar a este estratagema sua pseudo-habilidade de "proceder como quem não o tem". O interessante a observarmos é que, sendo a mentira um poderoso veneno para a vida mental, a personalidade reage vigorosa e involuntariamente a ele, do mesmo modo que sendo atingido por um gás tóxico o organismo tosse, lacrimeja e se debate.

    Foi esta, exatamente, a reação de Dom Quixote: em vez de admitir a identidade plebéia de Dorotéia, ele se insurge furioso contra a insinuação caluniosa de Sancho de que ela estaria lançando olhares langorosos para um homem que, afinal de contas, não passava de seu próprio marido. O jorro de impropérios, a variedade de sentenças condenatórias, a denúncia do perigo público encerrado nesse "monstro da natureza" nos atestam o quanto Sancho tinha razão em duvidar da capacidade de seu amo de lidar com a verdade, comprovando assim, mais uma vez, que tal capacidade deveria ser exercida pelo escudeiro, instância, como vimos, apta a suportar a frustração que sempre nos é imposta pela realidade.

    I, págs. 462-501: No capítulo 47 da edição ilustrada por Gustave Doré vemos um desenho onde Dom Quixote está recostado com ar sorumbático no interior da gaiola onde o colocaram, enquanto por fora da grade um risonho Sancho Pança espreita em segundo plano com tal grau de alegria, que sua imagem expansiva "salta" a imagem retraída de Dom Quixote, impondo-se assim a nós, malgrado estar na posição de fundo e não de figura.

    Destaco essa imagem como uma metáfora poderosa da relação entre Dom Quixote e Sancho Pança. De fato, podia-se dizer que o Cavaleiro da Triste Figura está preso permanentemente num universo visionário onde, sendo a sombra de Cavaleiros Andantes, torna-se-lhe impossível experimentar uma identidade própria. Seu escudeiro, no entanto, apesar de ser, por definição, a sombra de seu Senhor, exerce sempre essa função a partir de sua "visão de mundo" destilando sempre com naturalidade seus desejos e valores.

    Tomando como marco o episódio do engaiolamento, a narrativa de Cervantes toma um rumo muito interessante, a meu ver, já que nos permite perceber, com clareza, a pobreza dos desejos e pulsões no Quixote em contraste com a riqueza destes elementos em Sancho.

    Dom Quixote contesta, inicialmente, sua condição de engaiolado invocando, como sempre, argumentos pseudo-racionais como a lentidão do carro de bois, incompatível com a "estranha ligeireza" com que os Cavaleiros Andantes costumam ser transportados seja por nuvens, carros de fogo ou hipogrifos. Sancho retruca, espontaneamente, que aqueles acontecimentos não eram nada católicos, deixando entrever sua suspeita de que o encantamento que gerara o engaiolamento, não passara de uma armação do grupo interessado em mandar Dom Quixote de volta para sua casa sem outras trapalhadas. Foi o bastante para Dom Quixote instaurar uma nova discussão, agora a respeito da imaterialidade dos demônios que o enjaularam, o que extraiu de Sancho comentários nascidos da observação prática como, por exemplo, a materialidade carnal daquelas pessoas ou a qualidade nada sulfurosa de seus perfumes.

    A seguir, no momento da partida, Dom Quixote se despede formal e cavalheirescamente das "damas do Castelo", em realidade, a vendeira, sua filha e a empregada, enquanto os demais homens estavam às voltas com os belos personagens femininos, as donzelas Lucinda e Dorotéia, e a sensual Zoraida.

    Parece-me oportuno a esta altura fazermos uma observação a respeito da ausência de erotismo e sensualidade no Quixote, para quem os atrativos femininos estão condenados ao amor platônico que ele devota à imaginária Dulcinéia del Toboso, cuja existência não ultrapassa as fronteiras de seu mundo mental. Sancho, em contraparte, exala não só a objetividade prática requerida pelas lides do cotidiano, mas também a aceitação do mundo dos desejos e das pulsões, o envolvimento passional com os apetites do corpo e do espírito.

    É importante ressaltar que a apreensão desse quadro não ocorre na narrativa ficcional mediante uma informação direta, mas sim por meio de descrições disseminadas ao longo do relato, que vão impregnando insensivelmente o leitor. Assim, por exemplo, contestando a reiteração estereotipada de Dom Quixote que informara a um grupo de transeuntes estar engaiolado por força de encantamento, Sancho retruca com os pés no chão: "[...] verdade é que o senhor Dom Quixote vai aí tão encantado como minha mãe que Deus haja; ele está em todo o seu juízo, come e bebe e faz todas as suas necessidades, como os outros homens e como as fazia ontem antes que o engaiolassem". E, face à intimidação do barbeiro que o ameaça de engaiolá-lo também caso insistisse em denunciar o embuste que tinham armado para conter Dom Quixote, prossegue Sancho em defesa de seu direito de receber uma ilha para governar: "[...] ainda que pobre, sou cristão, velho e não devo nada a ninguém; e se desejo ilhas, outros desejam coisas piores; e cada qual é filho de suas obras; e sendo homem, posso vir a ser papa, quanto mais governador de uma ilha, podendo meu amo ganhar tantas, que lhe falte a quem as dê".

    Por outro lado, estabelece-se na seqüência um diálogo entre o Cura e o Cônego que por ali transitava, a respeito dos malefícios dos romances de cavalaria, por estimularem irrealidades e ilusões. Isto nos evoca, curiosamente, a conclusão formulada pelo establishment científico do final do século XVIII a respeito dos quadros de possessão demoníaca, sonambulismo e múltipla personalidade, todos entendidos como frutos de "doenças da imaginação". O Cura, entretanto, não deixa de reconhecer o outro lado da moeda, ressaltando a virtude de que Sendo isto feito com aprazível estilo e engenhosa invenção, que se aproxime da verdade tanto quanto possível, há de compor sem dúvida uma fina tela, entretecida de fios formosíssimos que, depois de acabada, se mescle tão perfeita e linda, que consiga o fim melhor a que se aspira nesses escritos que é ensinar e deleitar; porque a solta contextura destes livros dá lugar a que o autor possa mostrar-se épico, lírico, trágico, cômico, com todas as partes que encerram em si as dulcíssimas e agradáveis ciências da poesia e da oratória – que a epopéia tanto pode escrever-se em prosa como em verso.

    Ora, a ironia ressaltada por Cervantes é que Dom Quixote realiza suas façanhas "by the book", ou seja, tentando transpor a ficção para a realidade sem adaptações enquanto Sancho, por seu turno, consegue ser espontaneamente trágico, cômico e mesmo épico. Além do mais, quando se faz necessário, Sancho mostra-se criativo dando um xeque-mate em Dom Quixote no momento que o obriga a duvidar de seu encantamento pelo simples fato de ainda estar escravo de suas necessidades fisiológicas, exortando-o, inclusive, a sair da gaiola para poder evacuar.

    Esse contraponto reaparece nas cenas seguintes onde nos deparamos primeiro com um duelo intelectual entre o Cônego e Dom Quixote, a respeito da autenticidade das histórias de cavalaria e, por conseguinte, da sanidade mental de um e de outro. A dimensão de conhecimento que aqui está em jogo é aquela que, através de acumulações explicativas e sistemáticas, confunde o domínio das forças da natureza com a erudição livresca, em vez de localizá-la no aprendizado intuitivo que nos é fornecido pelas experiências da vida, dentre as quais a sexualidade é, com certeza, uma das mais significativas.

    Talvez por isso Cervantes encerra a tertúlia intelectual mediante a aparição da sexualidade animal, representada pelo pastor Eugênio e sua cabra. Ambos surgem em cena em função da inquietude do animal que fugia do seu dono, só estancando quando se deparou com o grupo que escoltava Dom Quixote. A fala do cabreiro para seu animal é elucidativa da eclosão da sexualidade, abstraindo-se o viés machista aí implícito: – Ah! Serrana, serrana; malhada, malhada; porque foges tu? Que lobos te espantam, filha? Não me dirás que é isto, linda? Mas que pode ser, senão que és fêmea, e não podes estar sossegada? Volta, volta, amiga, que, se não estiveres tão satisfeita, pelo menos estará segura no teu aprisco ou com as tuas companheiras, que se tu, que as há de guiar e encaminhar andas tão desencaminhada e tão sem juízo, onde pararão elas?

    A irrupção dessa energia procriativa das entranhas do vale bucólico onde se encontravam ressoou também no próprio Cônego, só que agora depurada da distorção preconceituosa: Sossegai um pouco irmão, disse ele ao cabreiro, e não vos azafameis a fazer voltar tão depressa a cabra para o rebanho que, se ela é fêmea, como dizeis, há de seguir o seu natural instinto, por muito que vos ponhais a estorvá-la.

    Considerando-se que o cabreiro conta a seguir a sua história, que se resume a uma desilusão amorosa em função de sua amada ter sido enganada por um sedutor interessado mais em seu dinheiro do que em sua sexualidade, torna-se patente que ele e sua cabra representam a "sabedoria instintiva natural" com a qual Sancho está identificado. A comprovação disto nos é dada, dentre múltiplos exemplos, pela fala onde o escudeiro destaca a importância da libido oral: [...] vou com esta empada para a beira daquele regato, onde tenciono fartar-me por três dias, porque tenho ouvido dizer ao meu senhor Dom Quixote, que um escudeiro de Cavaleiro Andante deve comer quando se lhe oferecer ocasião, até não poder mais, porque às vezes, tem de se meter por uma relva tão intrincada, que não podem sair dela nem em seis dias, e se um homem não vai farto, ou de alforges bem fornecidos, ali poderá ficar, como muitas vezes fica, mudado em esqueleto; já a importância da libido genital está implícita na primeira indagação que sua esposa Teresa Pança lhe faz após sua longa ausência: Louvado seja Deus – redargüiu ela – que tanto bem me tem feito; mas conta-me agora, que lucrastes com as tuas escuderices? Que saiote me trazes?

    Dom Quixote, por seu turno, ao retornar para casa depara-se tão somente com duas figuras femininas sexualmente neutras, a sobrinha e a ama, que o acolheram com cuidados maternais, despindo-o e colocando-o na cama.

    II, pg. 105. Tomé Cecial: – Temos de certo, senhor Sansão Carrasco, o que merecemos; com facilidade se pensa e se acomete uma empresa, mas com dificuldade se sai a gente dela, pela maior parte das vezes. Dom Quixote é doido e nós somos ajuizados; ele vai-se rindo, são e salvo; Vossa Mercê fica moído e triste. Saibamos pois agora, quem é mais doido; quem o é porque se não conhece, ou quem o é por sua vontade?

    – A diferença que há entre estes dois doidos, respondeu Carrasco, é que o doido a valer há de sê-lo sempre, e, o que o é por vontade deixará de o ser logo que o queira.

    – Perfeitamente, respondeu Tomé Cecial, eu fui doido por vontade, quando me quis fazer escudeiro de Vossa Mercê; pois agora, por vontade também, quero deixar de o ser, e voltar para a minha casa.

    A temática da loucura verdadeira e da loucura fingida é parte essencial e fundante da narrativa cervantina no Quixote. Tomé Cecial, que se mancomunara com o bacharel Sansão Carrasco para forjar um falso combate com Dom Quixote, arrepende-se da empreitada já que o tiro saíra pela culatra, seu pseudo-amo levara uma surra e ele, cônscio de suas prerrogativas de falso-doido, reivindicava o seu direito de recuperar a lucidez e abandonar a farsa infeliz.

     

     

    II, pg. 136: Confrontada nossa dupla com o malfadado amor de Basílio por Quitéria, abortado pela interferência do pai da noiva que a preferiu casá-la com o abonado Camacho, expressa Sancho a sua opinião: Eu não desejava senão que o bom desse Basílio, a quem já vou me afeiçoando, casasse com a senhora Quitéria, e má peste mate os que estorvam que se casem os que se querem bem.

    A este comentário singelo de Sancho, Dom Quixote contrapôs sua rígida opinião eivada de moralismo:

    - Se casassem todos os que se querem, tirava-se aos pais a escolha e a jurisdição de casarem os seus filhos com quem devem e quando querem, e se ficasse à vontade das filhas escolher os maridos, haveria tal que escolheria o criado do pai, e outra o que viu passar na rua, no seu entender bizarro e jeitoso mancebo, ainda que fosse um espadachim valdevinos; que o amor e a afeição facilmente cegam os olhos do entendimento, tão necessários para escolher estado; e no matrimônio é muito perigoso o erro, e é mister grande tento e particular favor do céu para acertar.

    E, diante do temor de que o amante preterido pudesse se entregar à morte quando a noiva "proferisse o sim fatal", ponderou Sancho com sabedoria:

    Deus o fará melhor, quem dá o mal dá o remédio; ninguém sabe o que está por vir; tenho visto chover e fazer sol ao mesmo tempo; a gente deita-se são e acorda doente; e digam-me se há porventura quem se gabe do ter travado a roda da fortuna; entre o sim e o não da mulher não me atrevia eu a meter uma ponta de alfinete, porque não caberia; queria Quitéria de coração e deveras a Basílio, e pode este contar com um saco de ventura, que o amor, pelo que tenho ouvido dizer, vela de tal maneira que o cobre lhe parece ouro.

    Dom Quixote, ao que tudo indica, sentiu-se ameaçado com a lucidez de Sancho: Aonde vais parar Sancho, amaldiçoado sejas, que em tu começando a enfiar provérbios e contos, só te pode apanhar o diabo que te leve! Dize-me animal, que sabes tu de rodas, de alfinetes, nem de coisa nenhuma?

    – Pois se me não entendeu – respondeu Sancho – não me admira que minhas sentenças sejam lidas como disparates; mas, não me importa, eu cá me entendo, e sei que não disse asneira; mas Vossa Mercê, senhor meu, é sempre "friscal" dos meus ditos e das minhas ações.

    Apesar do ranço moralista, é sábia a ponderação de Dom Quixote de que "o amor e a afeição facilmente cegam os olhos do entendimento". A sabedoria do amo parece contagiar o escudeiro que nos brinda com uma réplica que desvela o outro lado da moeda, ou seja, que o amor também funciona como lubrificante da roda da fortuna, contribuindo desse modo para corrigir os desvios do destino. Sancho aventura-se, inclusive, a expressar seu bom senso metafísico, ao mencionar sua fé numa divindade justa que "dá o mal, mas também dá o remédio". Por estar impregnado das angústias terrenas, Sancho admite a sua insignificância diante de Deus-Todo-Poderoso, enquanto Dom Quixote, imaginando-se portador de um status sobrenatural, confunde-se constantemente com o poder divino "fiscalizador" da precariedade humana.

    II, pg. 271 – Carta de Sancho Pança a Teresa Pança, sua mulher: [...] A duquesa, minha senhora, beija-te mil vezes as mãos; retroca-lhe com duas mil, que não há coisa que saia mais barata, segundo diz meu amo, do que os bons comedimentos.

    O sistema fantasioso de Dom Quixote assemelha-se a um país cercado por fronteiras rígidas que só permite o acesso a seu interior mediante a apresentação de um passaporte diplomático que ateste a crença de seu portador na existência da Cavalaria Andante. No entanto, uma vez ultrapassada esta alfândega ideológica, adentra-se a um universo altamente organizado onde o viajante tem muito a aprender em termos de história, política, religião, e mesmo a respeito das coisas triviais que proliferam na vida cotidiana. Em momentos como estes, Dom Quixote trata a Sancho como a um filho dileto com quem compartilhamos fórmulas eficazes de convívio social, como este singelo lembrete de que "não há coisa que saia mais barata do que os bons comedimentos".

    II, pg. 393: Tendo abandonado a governança da "ilha" e tomando seu caminho de volta à sua vida regular, encontra-se Sancho com um antigo vizinho, um tal de Ricote, mouro foragido que voltara disfarçado à Espanha para resgatar um tesouro que escondera. Esse inesperado personagem oferece a Sancho uma parte de seu tesouro, caso ele se disponha a ajudá-lo na empreitada mas, escaldado por sua frustrada ambição de alçar-se a uma condição que não era a sua, ele recusa, dizendo: [...] Ricote, segue o teu caminho em boa hora e deixa-me seguir o meu, que bem sei que o que bem se ganhou, perde-se facilmente; mas o que mal se ganhou, perde-se ele e perde-se a gente.

    II, pg. 400: Sancho, ao ser salvo da cova por Dom Quixote e reencontrando os duques: Saí, como digo, da ilha, sem mais acompanhamento que o do meu ruço; caí numa cova, vim por ela adiante até que esta manhã, com a luz do sol vi a saída mas tão difícil que, a não me deparar o céu o senhor Dom Quixote, ali ficaria até ao fim do mundo. Assim, portanto, duque e duquesa meus senhores, aqui está o vosso governador Sancho Pança que nestes dez dias de governo, só lucrou o ficar sabendo que não serve de nada ser governador de uma ilha, nem governador do mundo inteiro. E com isto os não enfado mais e, beijando os pés a Vossas Mercês, dou um pulo do governo abaixo, e passo para o serviço do meu amo Dom Quixote que, enfim com ele, ainda que coma o pão com sobressalto, ao menos sempre me farto; e eu cá, em me fartando, pouco me importo que seja com feijões com que seja com perdizes.

    A frustrada experiência de "ser Rei por dez dias" funcionou para Sancho como um choque de realidade, convencendo-o, facilmente, que os seus recursos pessoais eram insuficientes para sustentar a ambição de ser rico e poderoso. Esta lição foi incorporada por ele com tal solidez que, tendo o destino promovido o seu reencontro com este Ricote que novamente lhe ofereceu um ganho fácil, ele recusa de modo peremptório, oferecendo como argumentação que "o que mal se ganhou", ou seja, o ganho corrompido, é fonte de envenenamento para o próprio eu.

    Esta sábia ponderação, fruto do aprendizado emocional recém-adquirido, prepara no fundo o retorno do filho pródigo o qual, estando mergulhado na escuridão do arrependimento, "vê a luz do sol", ou seja, a presença salvadora do pai-patrão Dom Quixote que veio ao seu encontro para recebê-lo de volta. Ao retornar, no entanto, Sancho traz consigo a fórmula redentora de como o ser humano pode aprender a modificar suas frustrações, garantindo assim a sua permanência no reino da realidade. Talvez esse tenha sido o fator crucial na recuperação da lucidez por parte de Dom Quixote, o qual, estando no leito de morte ditando seu testamento, readquiriu a identidade prosaica de Alonso Quijano, o Bom, a distribuir com bondade os seus bens entre aqueles que o amaram com lealdade, a começar, naturalmente com seu querido Sancho Pança.

     

    Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, filiada à International Psychoanalytical Association.