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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.4 São Paulo oct./dic. 2004

     

     

    O QUE É NEURO-PSICANÁLISE

    Yusaku Soussumi

     

    O objetivo deste trabalho é tratar da neuro-psicanálise, um novo método científico que consiste em combinar dois métodos já existentes, ou seja, um método que busca integrar, sobre uma base empírica, a psicanálise e a neurociência.

    O início de movimentos, ainda tímidos, por parte de psicanalistas que ousavam contrariar a orientação das instituições psicanalíticas de buscar estudar as possíveis correlações entre os conceitos, os achados da psicanálise com as descobertas da neurociência, ocorreu na Década do Cérebro. Data de 1994 a fundação do grupo de estudos de neurociência e psicanálise no Instituto de Psicanálise de Nova York, quando os psicanalistas, encabeçados por Arnold Pfefer, buscaram em neurocientistas da Universidade de Columbia como James Schwartz, os conhecimentos neurocientíficos que pudessem correlacionar com seus conhecimentos psicanalíticos. Iniciava-se um intercâmbio de informações e conhecimentos entre psicanalistas e neurocientistas. À essa época, em diversos pontos do mundo como em Frankfurt, Viena, Londres, Bruxelas e São Paulo, existiam psicanalistas que sozinhos ou em grupos buscavam estudar as possíveis correlações entre as duas ciências. Iniciei na década de 1980 investigações neste campo tendo tido, somente em 1994, a possibilidade de apresentar um trabalho sobre o assunto num evento psicanalítico, a Bienal da Psicanálise de 1994. Em 1996, Mark Solms, psicanalista inglês com formação em neurociência, que vinha trabalhando em Londres e publicando trabalhos sobre o assunto desde a década de 1980, foi convidado pelo Instituto de Psicanálise de Nova York para coordenar o grupo de estudos de neuro-psicanálise. Com o aumento de psicanalistas e de neurocientistas interessados nos estudos das correlações das duas disciplinas que beneficiavam as duas entre si, resolveu-se, sob a coordenação de Arnold Pfeffer e Mark Solms, fundar uma sociedade que congregasse esses psicanalistas, neurocientistas, solitários ou organizados em grupos, e que pudesse ser um pólo de orientação, atualização e de trocas. Assim, em julho de 2000, em Londres, durante a realização do I Congresso Internacional de Neuro-Psicanálise, um comitê fundador que foi constituído com as lideranças de diversos pontos do planeta, fundou a Sociedade Internacional de Neuro-Psicanálise. Fui o representante brasileiro no comitê fundador, criando o Centro de Estudos e Investigação em Neuro-Psicanálise de São Paulo que integrou o conjunto de grupos pelo mundo que compunha as bases da nova Sociedade.

    Para compreender a proposta metodológica da neuro-psicanálise é interessante esclarecer as razões pelas quais Freud, sendo neurologista, criou a psicanálise que, em essência, é um método psicológico para dar significados aos processos mentais sem, no entanto, perder o vínculo com a neurologia, e sem perder a esperança de que um dia a psicanálise voltaria a se unir à neurologia, quando esta tivesse alcançado um grau de desenvolvimento e oferecesse conhecimentos que faltavam naquela época.

    No tempo de Freud, a neurologia ainda era uma disciplina relativamente nova, e tinha incorporado da medicina interna o método anátomo-clínico, que consistia nos levantamentos dos sinais e sintomas clínicos das doenças para buscar a confirmação anátomo-patológica nas autópsias. Isto queria dizer que o clínico fazia as hipóteses diagnósticas das doenças através dos sinais e sintomas, e só tinha a comprovação quando o paciente era submetido à autópsia. Com o decorrer do tempo, em face das experiências anátomo-clínicas, os clínicos através dos sinais e sintomas inferiam as lesões anatômicas das doenças. A escola germânica privilegiava, acima de tudo, os achados anátomo-patológicos, e assim os sinais e sintomas não explicados pelas lesões anatômicas eram desconsiderados. Por esta época, os neurologistas estavam às voltas com algumas doenças como histeria, neurastenias que, apesar da exuberância dos sintomas – por exemplo, paralisias de membros – os patologistas nada encontravam nas autópsias para justificá-las. Trabalhando neste método, Freud se deu conta de suas limitações. A escola francesa, tendo Charcot como figura central, atraiu a atenção de Freud, que foi fazer um estágio com ele, em1885-86, para tomar contato com o que também era método anátomo-clínico, mas que privilegiava os sinais e sintomas, obtidos na observação meticulosa. Ou seja, estes não eram rejeitados, mesmo que não se encontrassem os substratos anatômicos na autópsia. Esta postura de Charcot teve uma influência marcante em Freud, que passou a praticar essa modalidade de método clínico quando retornou a Viena. Charcot tinha uma hipótese de que as lesões não surgiam nas autópsias porque eram de natureza fisiológica, e de origem hereditária, e que eram micropatologias que o desenvolvimento da técnica no futuro iria evidenciar.

    Com a experiência prática, e sob a influência do neurologista inglês Hughlings Jackson, Freud começou a se dar conta de que essas manifestações não apareciam nas autópsias por serem fenômenos de natureza psicológica e, por outro lado, não se encerravam em localizações restritas em centros no cérebro. A época marcava o auge do localizacionismo em face dos achados de Broca e Wernicke. Diferentemente do aceito, para Freud as funções ocorriam não em áreas localizadas, mas na interação dinâmica de diversas áreas que correspondiam a funções complexas. Freud deu-se conta desses aspectos ao estudar a afasia e as perturbações de movimentos voluntários e não funções psicológicas.

    Na medida que avançava nas observações da histeria e outros quadros mentais, mais fortalecia a convicção de que, na realidade, se tratavam de questões de funções de natureza psicológicas, que ocorriam na dinâmica de interações de diversas áreas cerebrais, que nunca seriam detectadas pela anatomia patológica. Em 1895, Freud fez com o Projeto para uma psicologia científica, sua última tentativa de construir um esquema dinâmico de funcionamento neurológico, com elementos que eram produtos de suas conjecturas, imaginações, pois as concepções neurológicas vigentes não tinham alcançado um desenvolvimento necessário para ancorar suas hipóteses funcionais. Por essa época, Freud se dava conta de que podia estudar as funções psíquicas pela observação clínica acurada, sem conjecturas e imaginações, buscando na dinâmica psíquica em si a explicação que a dinâmica neurológica não podia oferecer, mas deveria existir e seria conhecida com o desenvolvimento da neurobiologia. Aí surgiu a psicanálise com a sua metapsicologia.

    Hoje, a tendência natural tanto dos neurocientistas como dos psicanalistas, no primeiro momento, é buscar uma correlação isomórfica entre os conceitos psicanalíticos e neurocientíficos, o que causa uma simplificação errônea, que não leva em conta as características das duas ciências.

    A partir de 1939, principalmente com o trabalho de Alexander R. Luria, desenvolveu-se dentro do campo da neurociência do comportamento, a neuropsicologia dinâmica, cujos princípios se aproximam aos da psicanálise por aceitar que as funções da fisiologia cerebral ocorrem na interação dinâmica de diversas áreas espalhadas pelo cérebro, e não resultante de uma localização num centro. Nestes termos, podemos afirmar que a psicanálise se comporta como uma neuropsicologia.

    Luria quando escreveu seu último livro em 1976, parece que tinha esgotado os principais assuntos cognitivos, e se propunha a entrar num campo não abrangido pelo cognitivismo: motivação, emoções profundas e personalidade. Ele faleceu antes de iniciar seu projeto.

    Freud descobriu que os conteúdos subjetivos da vida mental não são facilmente acessíveis à investigação científica. Forças poderosas trabalham para se oporem às tentativas de investigação de conteúdos privados da mente individual. Freud classificou estas forças – que se expressam clinicamente como vergonha, culpa, ansiedade e outros – sob o nome de "resistências". Essas dificuldades ocorrem pelo fato de que as determinantes causais inferidas dos dados observacionais primários (acontecimentos mentais inconscientes que subjazem os processos de pensamento conscientes) não são conscientes por definição. Ele experimentou várias técnicas para vencer tais resistências (por exemplo: hipnotismo e técnica da pressão) e, com base nessas experiências, gradualmente desenvolveu a técnica psicanalítica definitiva da associação livre.

    Tanto Freud como Luria sempre insistiram que para descobrir a organização neurológica do aparelho mental humano como compreendemos na psicanálise é necessário, em primeiro lugar, dissecar a estrutura interna psicológica das várias mudanças na personalidade, na motivação e na emoção complexa. Assim, os múltiplos fatores subjacentes produzindo esses sintomas e síndromes podem ser identificados, e cada um correlacionado com sua "cena de ação" neuro-anatômica.

    Entretanto, devido às forças de resistência descritas, esses fatores não podem ser revelados pelas técnicas neuropsicológicas convencionais. Os testes psicométricos e técnicas de comportamento básicos, que os neuropsicólogos usam para acessar o estado mental dos pacientes neurológicos, foram destinados para a investigação das desordens das funções cognitivas de superfície. Para que possamos revelar a estrutura psicológica subjacente, profunda, das desordens da personalidade, motivação e emoção complexa que aflige o paciente neurológico, portanto, a técnica da associação livre deve ser introduzida dentro do método neuropsicológico de Luria.

    Este tem sido o método neuro-psicanalítico por excelência, que evita as correlações isomórficas da psicanálise com a neurociência, e evita o reducionismo que leva à anulação do que é fundamental no método psicanalítico e do significado mais profundo de seus conceitos.

    O que tem sido recomendado, e que se acredita proverá um pilar para uma consistente integração da psicanálise e neurociência, é uma plena investigação psicanalítica de pacientes com lesões neurológicas focais. Em outras palavras, o que se recomenda é o mapeamento da organização neurológica do processo mental humano que a psicanálise revelou, usando a versão modificada do método de Luria da análise da síndrome, pelo estudo da estrutura profunda das mudanças mentais nos pacientes neurológicos que podem ser discernidos dentro do setting psicanalítico.

    Desde que as investigações psicanalíticas válidas só podem ser conduzidas no contexto do tratamento psicanalítico, o método investigatório que se recomenda tem um potencial de benefício secundário. Ele permite que se veja se e em que extensão o tratamento psicanalítico pode contribuir para a reabilitação de várias desordens de personalidade, motivação e emoção, que estão associados com o dano focal neurológico.

    Os trabalhos dentro dessa metodologia neuro-psicanalítica vêm sendo realizados no campo das memórias, das emoções, dos sistemas motivacionais, do inconsciente trazendo contribuições valiosas para as duas ciências. Um exemplo onde as contribuições psicanalíticas têm sido muito ricas é no campo dos estudos da regulação afetiva, orientando as pesquisas da neurociência do desenvolvimento e psicologia do desenvolvimento, campo em que as chamadas relações de objetos, tão estudados por psicanalistas como Melanie Klein, Fairban e Mahler têm contribuído de forma inegável.

    É no campo dos lesionados cerebrais onde mais se pode perceber a correlação e a complementação das duas disciplinas. Assim, por exemplo, os estudos dos estados conhecidos como de confabulação nos pacientes com lesão bilateral da região ventro medial no prefrontal ou na síndrome de Korsakof, têm permitido a investigação psicanalítica que se realiza além das investigações neuropsicológicas. Pelo método psicanalítico, têm-se podido evidenciar nessas manifestações confabulatórias as características especiais do sistema inconsciente em plena expressão, como trazidos por Freud, quais sejam: 1. a tolerância da contradição mútua; 2. ausência do tempo; 3. a substituição da realidade externa pela realidade psíquica; 4. o processo primário (mobilidade da catexia).

    Nas chamadas síndromes do hemisfério cerebral direito, que ocorrem nas lesões da região peri-silviana, geralmente por problemas de irrigação da artéria cerebral medial que provoca paralisia no lado esquerdo do corpo, ocorrem alguns sintomas exuberantes como: 1. anosognosia (inconsciência do déficit); 2. anosodiaforia (aceitação intelectual com negação emocional); 3. negligência (ignorância do lado esquerdo do espaço); 4. misoplegia (obsessividade e ódio pela lesão) e apraxia espacial (dificuldade de atuar o espaço) etc. Esse quadro, cujos sintomas são explicados coerentemente por teorias neuropsicológicas relacionadas com as perdas das funções do hemisfério direito e permanência das funções do hemisfério esquerdo, oferecem nas situações de investigações psicanalíticas a possibilidade de se descobrir motivações inconscientes, não acessíveis aos métodos neuropsicológicos comuns, que levam os indivíduos às manifestações de tais sintomas de negação da realidade dolorosa, sugerido que o hemisfério direito ausente tem a função psíquica de realizar o luto pelas perdas, superar a melancolia, e desenvolver a capacidade relacional do indivíduo dos estados narcísicos para relações de objeto, propiciando, conseqüentemente, a ampliação de suas relações espaciais.

     

    Yusaku Soussumi é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; membro fundador da Sociedade Internacional de Neuro-Psicanálise; e presidente do Centro de Estudos de Neuro-Psicanálise de São Paulo.

     

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Kaplan-Solms, K.& Solms, M. Clinical studies in neuro-psychoanalysis – Introduction to a depth neuropsychology, London, Karnac Books.2000.

    Luria, A.R. Human brain and psychological process, New York: Harper & Row. 1966.

    Luria, A.R The working brain: an introduction to neuropsychology. New York: Basic Books. 1973.