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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.1 São Paulo jan./mar. 2005

     

     

     

    MEIO URBANO

    Corpos blindados na cidade

     

    Pessoas dormindo, lendo, ouvindo música com fones de ouvido ou simplesmente olhando para fora, muitas vezes com olhos fixos no nada. Essas cenas corriqueiras nos transportes coletivos foram objeto de estudo para Ricardo Santos, psicólogo clínico e pesquisador do programa de psicologia social da Universidade de São Paulo (USP). Sua principal pergunta: o que estaria envolvido nessa situação, permitindo sua permanência e repetição em nosso meio social? Em seu trabalho, o pesquisador busca responder a questão.Voltou a debater o tema em outubro, no IV Encontro Internacional Giros na Cidade, realizado pelo Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp, traçando diferenças entre a conceituação psicanalítica de não-lugar, e o mesmo conceito na perspectiva antropológica de Marc Augé.

    O pesquisador explica que tanto os instrumentos de reprodução de áudio, livros e revistas, quanto o olhar perdido na paisagem em movimento, o silêncio áspero, marcado pelos ruídos da rua e dos veículos, o isolamento numa poltrona única e, até mesmo, o sono podem ser entendidos como recursos utilizados para proteger o sujeito em sua permanência no que ele denominou não-lugar, um lugar utópico onde cada um, a seu modo, busca permanecer. Apesar de idêntica, a expressão não-lugar diferencia-se do termo adotado por Augé. Para Santos, os dois conceitos – o psicanalítico e o antropológico – são fios de um mesmo tecido a entrecruzar o olhar sobre o transporte público em grandes centros urbanos, mas partem de pressupostos teóricos distintos, gerando diferentes conceitos.

     

     

    Na perspectiva do psicólogo, a idéia de não-lugar vem da literatura de Jorge Luis Borges, mais especificamente do conto "A utopia de um homem que está cansado", publicado em O livro de areia, de 1975. "É justamente para um lugar inexistente que, no conto, dirige-se o narrador. Ele vai parar no futuro, onde encontra uma pessoa que o esperava. Os dois conversam amistosamente e, pelas contraposições estabelecidas, vemos, naquele mundo futuro, o mundo ideal do narrador", diz Santos, que na época ainda não conhecia o trabalho de Augé. Em seu estudo, ele usa a literatura como interpretante para questionar o sentido rotineiro de lugar e, em Borges, vê a possibilidade de visita a lugares inexistentes.

    No transporte público, a permanência no não-lugar é conseguida por meio de instrumentos de blindagem do corpo, como livros ou walkmans, por exemplo. A blindagem corporal protege contra qualquer um disposto a conversar e, também, contra a cidade e suas demandas.

    No romance de Anne Tyler, O turista acidental, transposto para o cinema com o mesmo nome, o personagem principal dedica-se a escrever guias de viagens para executivos norte-americanos que desejam, igualmente, uma espécie de blindagem frente ao mundo em que são obrigados a circular. O escritor, ele próprio com séria dificuldade de relacionamento social, dá dicas para evitar a convivência em situações públicas, como viagens aéreas, e sugere recursos para reproduzir o ambiente familiar e acolhedor de seu lar, em qualquer paisagem que o viajante seja obrigado a transitar.

    Na caracterização do estudo de Santos, o sujeito mantém-se numa presença-ausente durante o trajeto, tornando também o espaço do transporte público em uma espécie de não-lugar propício a que outros recursos psíquicos atuem, como nossa capacidade de imaginar, de construirmos imagens, colocando o mundo como um nada. Para o psicólogo, o interior do transporte coletivo é um espaço com regras inconscientes que determinam as inter-relações entre os passageiros, aquilo que pode ou não ser pensado, aquilo que é permitido em seu interior. "Uma descrição do campo relacional entre corpos blindados, entre presenças ausentes, poderia ser a seguinte: ele está lendo, melhor não importuná-lo; está ouvindo música, melhor deixá-lo; aquele outro está calado e pensativo, deixemo-lo", diz Santos.

    O ingresso e a permanência nesse não-lugar podem ser entendidos, da perspectiva psicológica, também como uma forma de proteção da subjetividade. "Antes o espaço do transporte público era tido como um lugar unicamente de deslocamento, o sono relacionava-se ao cansaço e as leituras a uma grande disposição; agora, podemos pensá-lo como fruto de uma intensa produção intersubjetiva, cujas regras organizam relações marcadas por silêncio e isolamento enquanto imagens (e emoções) se constroem no íntimo de cada um, tendo como organizador o desejo, presente nesse não-lugar constituído psiquicamente", conclui Santos.

     

    Marta Kanashiro