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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2005

     

    INTRODUÇÃO

    Márcia de Oliveira Teixeira
    Bianca Antunes Cortes

     

     

    A análise das sociedades ocidentais, de seus diversos padrões culturais e seus diferentes modos de sociabilidade envolve, necessariamente, a reflexão detida sobre as tecnociências. Forças produtivas essenciais para o atual padrão de acumulação das sociedades capitalistas industriais, as tecnociências não estão apartadas ou imunes às contradições do capital.

    As formas de trabalho e de deslocamento, os padrões de consumo e os modos de comunicabilidade estão sendo alterados por objetos e tecnologias marcados por sua base científica. Vi vemos em tempos curtos, em tempos acelerados e circundados por um ambiente e uma ecologia humana sociotecnicamente metamorfoseados. Vivemos em tempos de expansão de um determinado padrão (essencialmente sociotécnico) de existência, no qual se conhece em bases científicas, e a transformação do mundo assume a forma de uma inovação tecnológica.

    É possível tratar o espaço produzido pelas sociedades industriais no pós-guerra como efeito das tecnociências. Efeito, por conseguinte, da vizinhança entre as práticas científicas e as tecnológicas; entre a produção de conhecimentos tecnocientíficos, a produção de bens culturais e os movimentos político-sociais; entre a produção de artefatos tecnocientíficos e os processos de produção e de acumulação de riquezas nacionais. Esses sucessivos deslocamentos associativos redundaram em uma zona de contato pela qual circulam instituições, cientistas e engenheiros empenhados em mobilizar conhecimentos científicos tornando-os recursos tecnológicos e, mais além, políticos-econômicos. Nesse sentido, a impossibilidade e a esterilidade de se estabelecer uma grande divisão entre os processos tecnocientíficos e socioeconômicos no mundo ocidental produziu a análise sociotécnica.

    Destarte intensa identificação das tecnociências como forças propulsoras da modernização, associada ao bem-estar, paira a ameaça do risco tecnológico em grandes proporções. Novas armas de destruição, a possibilidade de produção de alimentos transgênicos, as turvas fronteiras entre humanos e sistemas técnicos encarregaram-se de disseminar dúvidas quanto ao futuro promissor de antes. As promessas embutidas na maciça tecnologização da prática médica, por seu turno, confluem com o aumento dos custos dos tratamentos e com as restrições à sua ampla massificação. O acesso de amplas parcelas da população mundial à medicina segue como uma promessa. O processo de produção de conhecimentos tecnocientíficos sofreu profundas alterações. O debate restrito aos pares permanece, porém cede, freqüentemente, diante da necessidade de as informações circularem por espaços mais amplos. As tecnociências flertam com os poderes legislativo e executivo, enquanto seus produtos potenciais são alvo de debates em organismos e fóruns multilaterais. Disseminam-se a formação de redes horizontais voltadas para o desenvolvimento de produtos e processos tecnológicos de alto valor agregado, visando à produção em escala inserida em cadeias produtivas internacionalizadas. Estes arranjos vêm sendo adotados (ou estão em discussão) por sociedades marcadas por diferentes processos de industrialização, por uma composição heterogênea de sua base científica, por uma diversidade cultural aguçada e com demandas sociais extremamente diversas.

     

     

    Os custos das atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico (P&D) se elevaram demasiadamente impingindo novas frentes de negociação com as instituições políticas e grupos de investidores. As etapas finais do processo de desenvolvimento tecnológico foram oneradas com a multiplicação de ensaios, a tecnologização da pesquisa e a pressão de uma legislação internacionalizada. A organização da P&D requer recursos que extrapolam a capacidade do principal dinamizador das ações de P&D - o Estado. Há reflexos nas instituições públicas de pesquisa (IPP), em especial as universitárias, premidas pela necessidade de buscarem algum tipo de articulação com instâncias privadas para a obtenção de financiamentos.

    A demanda por capitais e o valor dos produtos de base tecnocientífica atraíram capitais especulativos, inserindo as atividades de P&D no rol dos investimentos de risco. Essas dinâmicas aliadas à internacionalização das atividades acarretaram mudanças aceleradas nos instrumentos de regulação e de reconhecimento da propriedade intelectual. Timidamente controvérsias, antes restritas aos fóruns acadêmicos, ganharam as ante-salas dos tribunais. Essa gama de revoluções impulsionou as tecnociências para o debate público; conquanto haja diferenças significativas em relação ao modo como cada população experimenta suas influências, bem como a amplitude do debate. Em muitos países as práticas de popularização e de difusão das tecnociências passaram a ser tomadas como imprescindíveis para a formação de cidadãos competentes à discussão ampliada. A mobilização do potencial econômico concorre com a saliência da dimensão de bem público dos produtos tecnocientíficos.

    Todavia, a disseminação dessas práticas esbarra nas diferenças regionais frente aos processos e efeitos globalizados das tecnociências, bem como nas dificuldades de mobilização e constituição de fóruns de discussão. A internacionalização das tecnociências, como práticas legítimas para a produção de conhecimentos e insumos econômicos globalizados, embora exitosa, não é suficiente para alterar completamente a diversidade cultural e as especificidades das práticas políticas locais. Talvez pelo fato do processo de internacionalização dos mercados não ser suficiente para esgarçar e mutilar os processos locais de constituição do próprio merc a d o. Assim, as condições de produção, de legitimação e o acesso público aos conhecimentos tecnocientíficos nas sociedades ocidentais geram tensões e são fontes renovadas de problemas para estudos filosóficos e sócioantropológicos.

    Os textos reunidos nesse Núcleo Temático formam um breve panorama da produção nacional. O Brasil reúne elementos instigantes – industrialização tardia, uma sociedade produzida por um Estado autoritário, forte investimento na composição de uma base tecnocientífica estatal, além da intensa descontinuidade das políticas públicas. Salta, de imediato, a alta concentração da produção nas instituições públicas localizadas na região Sudeste, com destaque para eixo Campinas – Rio de Janeiro – São Paulo. Muito embora o Diretório de Grupos de Pesquisa (CNPq) nos permita identificar um incipiente e instigante movimento de grupos externos ao eixo supra citado – muitos dos quais instituídos em torno da análise e proposição de arranjos locais para as atividades de P&D – porém, algumas questões são comungadas por vários grupos de pesquisa, estando na base de muitos projetos. Destacamos a análise das estratégias para o adensamento da produção de conhecimentos certificados capazes de contribuírem, simultaneamente, para acelerar sua transferência para a sociedade e para o mercado.

    A presença da análise econômica no trato dos processos locais é marcante, decerto como efeito das fortes ligações entre as tecnociências, os processos de industrialização do pós-guerra e o desenvolvimentismo. Os estudos econômicos têm privilegiado alguns eixos: os mecanismos públicos de financiamento; os novos arranjos produtivos; as relações entre as universidades e as empresas públicas e privadas. A gestão, notadamente das IPPs, desponta como campo vasto de problematização e controvérsia. O intuito é a busca de estratégias para otimizar recursos, acelerando projetos e aumentando seu êxito no estabelecimento de conexões com o mercado e com a sociedade. As ciências sociais, por seu turno, sem abandonar temáticas clássicas como a análise das políticas públicas e dos processos de institucionalização, investem em outros rumos. Ganham relevo os estudos do processo de concepção científica, das práticas cotidianas da P&D, das negociações que antecedem a produção de um artefato. As estratégias para a difusão científica, suas conexões com os espaços formais e não-formais de educação e com a construção da cidadania também se destacam. Outro tema vasto e candente são as relações entre tecnociências e gênero.

    A história da ciência e das tecnologias afirmou-se como área central ou linha de pesquisa de muitos grupos. As análises da trajetória de cientistas e da instituição de centros de pesquisa e universidades possibilitam o mapeamento da constituição de nossa sociedade. É um outro modo de abordar as origens autoritárias de nossa sociedade, de nosso mercado, além da disputa entre diferentes projetos de nação. As questões éticas foram potencializadas pelos diferentes usos da genômica. É possível identificarmos uma produção, em grande medida interdisciplinar (direito, filosofia, antropologia), em torno das novas formas de manipulação de organismos biológicos (entre os quais os corpos humanos) e das práticas médicas, mormente as reprodutivas e estéticas. O campo de pesquisas agropecuárias também está se afirmando como um importante móbil das discussões sócio-filosóficas, estabelecendo intensas conexões com a análise dos impactos ambientais e do direito proprietário.

     

    Márcia de Oliveira Teixeira é doutora em ciências na Coppe/UFRJ, assistente de pesquisa da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
    Bianca Antunes Cortes é doutora em ciências na Coppe/UFRJ, pesquisadora adjunta da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz).

     

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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    Latour, B. Ciência em ação. SP: UNES. 2000.

    Deleuze, G. e Guattari, F. "Devir – Intenso, Devir – Animal, Devir – Imperceptível", in Deleuze, G e Guattari, F. (org) Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. volume 4. SP. Ed. 34: 11-113. 1997.

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    Machado, C. J. S. Tecnologia, meio ambiente e sociedade – uma introdução aos modelos teóricos. RJ: e-papers. 2003.

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