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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.1 São Paulo jan./mar. 2005

     

     

    AS DIFERENTES MANEIRAS DE SE ESTUDAR A INVENÇÃO CIENTÍFICA*

    Carlos José Saldanha Machado

     

    Durante as duas últimas décadas do século XX, o qual poderíamos chamar, sem nenhum exagero, de século das turbulências, a questão da invenção científica passou a ocupar as preocupações do meio acadêmico, sobretudo europeu e anglo-saxão. À imagem das próprias ciências que se prestam a múltiplos usos e definições, em função das tradições histórico-culturais de cada país, as abordagens adotadas são as mais diversas. Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo dar uma visão de conjunto de algumas das diferentes maneiras de se estudar a invenção científica praticadas por filósofos, sociólogos, historiadores, antropólogos e psicólogos. O fio condutor da leitura dos textos dos autores escolhidos está centrado na identificação das respostas que são dadas para a seguinte questão: como se inventa uma idéia científica nova?

    Inicialmente, as diferentes tradições filosóficas procuraram definir em que consiste a especificidade do saber científico em relação às outras atividades humanas. Os filósofos basearam suas reflexões, com freqüência, nas teorias estabelecidas. Foi assim que, se apegando ao modelo da ciência da natureza, a revolução galileana, Descartes (1, 2) procurou construir sua Mathesis Universalis. O que o interessava nas matemáticas era o método que elas praticavam permitindo chegar à certeza. Refletindo, então, sobre as operações do espírito, por meio das quais o matemático alcança a certeza, Descartes chega a extrair os preceitos do método racional cuja ambição é a de chegar ao ponto mais impessoal do espírito. A única operação do espírito que nos assegura plenamente a verdade é a intuição evidente. A intuição é a própria visão de uma evidência, sendo a evidência o que salta aos olhos. A evidência é aquilo que eu não posso duvidar, de maneira que a dúvida torna-se o fundamento do método. É na subjetividade que Descartes encontra os fundamentos do conhecimento.

    Por sua vez, a questão fundamental colocada por Kant (3, 4), relativa ao status da metafísica – "a metafísica é possível como ciência?" – que determinará o critério de cientificidade do conhecimento, tem como referência a física newtoniana e seu sucesso. Kant atém-se a extrair da teoria de seu tempo os fundamentos operacionais que a tornou possível. Ao crer na verdade dessa nova teoria, ele identifica a estrutura de nossos espíritos à validade a priori de nossas teorias: o julgamento sintético a priori, estruturalmente conforme aos dados da experiência, garante o crescimento do conhecimento. Kant remete a possibilidade da ciência à racionalidade do sujeito. Esta concepção da ciência não coloca questões sobre a invenção no conhecimento porque invenção e conhecimento são dois conceitos superpostos. Inventar e conhecer são uma e única coisa. A reflexão sobre o conhecimento tem início a partir de teorias científicas novas (Galileu por Descartes, Newton por Kant). A possibilidade da ciência é procurada no espírito do sujeito.

    Antes de prosseguirmos, convém observar que a filosofia ignorou a questão da invenção por duas razões principais. Primeiro, porque a validade das teorias científicas é garantida pela pureza e racionalidade de sua origem. A ciência está inscrita na natureza do conhecimento racional, e a novidade ou a introdução por um ato de pensamento sobre qualquer coisa, ainda não presente, é impossível. Segundo, a dinâmica da ciência é pensável, mas uma ruptura é instaurada por Popper (5, 6, 7) entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação. O contexto da descoberta, impuro, é então colocado fora do campo da racionalidade científica e, por isso mesmo, fora de toda explicação racional. A invenção como processo intelectual é assimilada à imaginação, aos fantasmas e aos prejulgamentos de um indivíduo. Não obstante ser irracional e misteriosa, ela é o motor da mudança, mas precisa ser apagada para que a ciência se torne visível. A validade não tem mais nada a ver com a origem. Esta epistemologia dá, no entanto, à invenção um caráter de acontecimento singular, até mesmo heróico. Um ato fundador rompe com as normas estabelecidas e refunda a ciência. Mas esse ato permanece um mistério.

    Por sua vez, com a psicologia da criação (8), alguns estudos chegam a colar questões sobre o psiquismo de toda e qualquer pessoa ao invés do psiquismo "dos inventores" e, o "ato criativo", ao invés do "ato criador". Com os cognitivistas (9), o ato criador tornar-se passível de decomposição e reprodução ou, com os defensores da criatividade (10), ele se desloca à vontade. A aparição de uma idéia nova torna-se o fruto de um mecanismo intelectual, explicável e banal, sem nenhuma especificidade. A questão do porquê dessa pessoa inventar e aquela outra não, é respondida com um pergunta mais abrangente: por que todo mundo não inventa?

    Já a sociologia dos cientistas ou sociologia clássica das ciências (11) foca seus estudos sobre o meio e as formas de organização social da pesquisa, que permitem e favorecem a produção de novos conhecimentos. Esses sociólogos introduzem na cena acadêmica uma nova problemática, aquela que dá ênfase nos procedimentos, nas normas, no sistema de recompensa, nos mecanismos de distribuição e de reconhecimento constitutivos da invenção. Contudo, ficamos sem compreender como se inventa e por que este indivíduo inventa, ao invés daquele. Os indivíduos estão totalmente absorvidos no social e o conteúdo da ciência nunca é abordado. Em ambos os modelos, o da psicologia da criação e o da sociologia dos cientistas, o ato inventivo consiste em revelar o que já está objetivamente presente.

    Procurando dar conta da questão deixada de lado pela sociologia dos cientistas, emerge no final dos anos 1970, uma nova sociologia das ciências (12), cuja forma teórica mais acabada é a sociologia da tradução ou teoria das redes (13). Sociólogos e antropólogos passam a se interessar pelo processo da concepção científica habilitando o papel das práticas, do coletivo e dos procedimentos (14). Trata-se de estudar a ciência enquanto está sendo feita, e de rejeitar a origem das idéias novas por considerá-la fora de seus propósitos. Essa origem é um mito. As fontes da inovação são múltiplas e indeterminadas porque, uma vez que tudo é flutuante na dinâmica da história, é a própria questão do encerramento de uma controvérsia e do estabelecimento de um acordo que é problemática (15). A descoberta (a invenção que se torna "verdade revelada") é uma construção social. Para a nova sociologia das ciências, as operações intelectuais postas em ação pelos cientistas na elaboração de um fato científico fazem parte de um processo corriqueiro. Além disso, o pensamento individual resulta de uma forma particular de apresentação e de simplificação de toda uma série de condições materiais e coletivas. O que se chama "processos cognitivos" não é outra coisa senão um trabalho concreto sobre objetos construídos e exteriorizados, que são as inscrições literárias (16). O pensamento criativo individual torna-se uma narrativa particular ou o fruto de um processo de atribuição arbitrária. A invenção como o resultado de um momento histórico-geográfico localizado é igualmente um instantâneo arbitrário. Enfim, a qualificação da pessoa como sendo o inventor é problemática. É a rede ou as redes que a pessoa representa que a qualifica como tal (17). Um ator é um ponto na intersecção de dois movimentos: conectar, desmontar e associar novas redes. A realização desses movimentos torna-se o resultado de uma capacidade estratégica.

     

     

    De um certo modo, os sociólogos juntam-se, contra sua vontade, à perspectiva dos cognitivistas e de alguns "filósofos da criatividade". Contudo, as conseqüências decorrentes dessa relação são opostas. Para os primeiros, a dimensão banal e corriqueira dos processos cognitivos convida, por isso mesmo, a acompanhar o trabalho de construção das inscrições dos objetos científicos para compreender o processo de descoberta. Para os segundos, a banalidade dos processos cognitivos é suficiente para explicar as descobertas. Também, na perspectiva dos primeiros, a singularidade de um momento ou de um ato desaparece, ao mesmo tempo em que o estatuto do ator permanece problemático. Contudo, reabilitando o papel dos não-humanos no trabalho de criação da ciência e propondo uma nova definição do ator, em termos de ator-rede, cujas qualidades são construídas na prova, a sociologia da tradução nos convida a repensar o lugar do sujeito que conhece.

    Alguns historiadores anglo-saxões (18) passaram a se interessar pela nova sociologia das ciências, debruçando-se sobre a questão da invenção. Eles se fixaram, como desafio, interpelar as condições da descoberta e compreender, não mais como um indivíduo pode inventar uma teoria mais racional que as outras, mas por que um saber construído a um momento particular é mais eficaz que um outro. O material de suas análises é o estudo das controvérsias com base num mesmo princípio metodológico: a recusa de tomar o partido do mais forte e de aceitar, a priori, que o ponto de vista do ganhador seja imposto com base no argumento de que ele era o mais racional que os outros. Eles deixam a historiografia de lado e se lançam na compreensão, com os diferentes protagonistas, das razões de suas escolhas. Ao restituírem os diferentes pontos de vista dos atores, eles nos mostram a que ponto a produção de um saber é uma negociação no interior dos laboratórios e, ao mesmo tempo, segundo a intensidade da controvérsia, essa negociação é capaz de mobilizar um contexto social mais amplo. Mas, quem diz negociação, diz discussão e, quem diz discussão, diz múltiplas interpretações do real. Assim, se é conduzido a retraçar o continuum das interações que modelam os saberes. Como conseqüência dessa orientação teórico-metodológica, esses historiadores recusaram a adoção de um relativismo ampliado posto que, para eles, todos os saberes não se equivalem.

    Para concluir, podemos dizer que ao procurar uma resposta para a questão que nos preocupa, qual seja, como se inventa uma idéia científica nova, descobrimos com Descartes e Kant um sujeito purificado (a validade é em si ou encontra-se num jogo de correspondência com a natureza); com Popper, e também Bachelard (19-22), um sujeito esvaziado para se obter mais objetividade; com a psicologia, a criação de um sujeito lisonjeado – um gênio; com Merton, o sujeito numa comunidade; com Bourdieu, o sujeito num campo; e, enfim, com a teoria das redes, um sujeito relativizado ao nível dos não-humanos.

     

    Carlos José Saldanha Machado é doutor em antropologia pela Sorbonne, pesquisador e responsável pela Cooperação Técnica e Desenvolvimento de Projetos do Museu da Vida/ Casa de Oswaldo Cruz / Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Descartes, R., Discours de la methode-pour bien conduire sa raison et chercher la verite dans les sciences (plus) la dioptrique-les meteores et la geometrie qui sont des essais de cette methode, Paris Fayard, 1987.

    2. Descartes, R., Méditations métaphysiques, Paris, Flammarion. 1979.

    3. Kant, E., Critique de la raison pure, Paris, PUF, 1944.

    4. Kant, E., Critique du jugement, Paris, Vrin. 1928.

    5. Popper, K., La logique de la découverte scientifique. Paris, Payot. 1973.

    6. Popper, K., La connaissance objective, Paris, Editions Complexe. 1972.

    7. Popper, K., Conjectures et réfutations. La croissance du savoir scientifique, Paris, Payot. 1985.

    8. De Bono, E., Au service de la créativité dans l’entreprise: la pensée latérale. Paris, Entreprise moderne d’édition, 1973; Guilford, J.P., "Creativity" in The American Psychologist, pp. 444.454, 1950; Guilford, J.P.,"The structure of intellect" in Psychological Bulletin. vol. 53, n°4. 1956; Hutchinson, E. D., "Materials for the study of creative thinking", in The Psychological Bulletin. 28. pp.392.412, 1931.; Lemaine, G., "Quelques aspects d’une étude psychologique des milieux de recherche", Bulletin de Psychologie, 509. pp. 512-612, 1963; Maslow, A., The psychology of science, London: Harper and Row Publishers, 1966; Moles, A e Claude, R, Créativité et méthodes d’innovation. Paris: Fayard, 1970; Sol, J.P ., Techniques et méthodes de créativité appliquée ou le dialogue du poète et du logicien. Paris, Ed Universitaire, 1974; Vidal, F., L’instant créatif. Paris, Flammarion, 1984; Vidal, F., Savoir et imaginer, Paris, Robert Laffont. 1977; Wilson, R. C, Guilford, J.P, Christensen, P. R, "The mesurement of individual differences in originality" in Psychological Bulletin vol. 50, n° 5, pp.362.370, 1953; Simon, H., Models of discovery, Dordrecht, D.Meidel Publishing Compagny. 1977.

    9. Simon, H. A., "L’unité des arts et des sciences: la psychologie de la pensée et de la découverte", ACFET/INTERFACES, n°15, pp. 120-142. 1984; Simon, H., Models of discovery, Dordrecht, D.Meidel Publishing Compagny. 1977.

    10. De Bono, E., Au service de la créativité dans l’entreprise: la pensée latérale. Paris, Entreprise moderne d’édition, 1973; Guilford J.P., "Creativity" in The American psychologist, pp. 444.454, 1950; Guilford, J.P.,"The structure of intellect" in Psychological Bulletin. Vol. 53 n°4. 1956; Hutchinson, E. D., "Materials for the study of creative thinking", in The psychological Bulletin. 28, pp.392.412, 1931; Lemaine, G., "Quelques aspects d’une étude psychologique des milieux de recherche", Bulletin de psychologie, 509. pp. 512-612, 1963; Maslow, A., The psychology of science, London: Harper and Row Publishers, 1966; Moles, A e Claude, R, Créativité et méthodes d’innovation. Paris: Fayard, 1970; Sol, J.P ., Techniques et méthodes de créativité appliquée ou le dialogue du poète et du logicien. Paris, Ed Universitaire, 1974; Vidal, F., L’instant créatif. Paris, Flammarion, 1984; Vidal, F., Savoir et imaginer, Paris, Robert Laffont. 1977; Wilson, R. C, Guilford, J.P, Christensen, P. R, "The mesurement of individual differences in originality" in Psychological Bulletin vol. 50, n° 5, 1953, p.362.370; Simon, H., 1977, Models of discovery, Dordrecht, D.Meidel Publishing Compagny.

    11. Barber, B., "The social process of invention and discovery: the role of individual and society in scientific discovery", in Science and the social order, New York: Collier Books, pp. 252-271, 1962; Bourdieu, P., "Le champ scientifique", Actes de la recherche en sciences sociales, n° 2-3. 1976; Bourdieu, P., Le sens pratique, Paris, Editions de minuit. 1980; Kaplan, N., "The relation of creativity to sociological variables in research organisation", in Scientific Creativity. Its recognition and developpement, London: N.Y Wiley. 1963; Merton, R., "Resistance to the systematic study of multiple discoveries in science", Arch.Europ.Socio, IV, 237.282, 1963; Merton, R., The sociology of science, Chicago, University Press of Chicago, 1973.

    12. Callon, M. e Latour, B. (orgs.), La science telle qu’elle se fait. Une anthologie de la sociologie des sciences de la langue anglaise. Paris, La découverte. 1987.

    13. Callon, M., "Struggles and negociations to define what is problematic and what is not : the socio-logics of translation", in K.D. Knorr (Eds), The social process of scientific investigation, Dordrecht, D. Reidel Publishing Company, pp. 192-224, 1980; Callon, M., La science et ses réseaux, Paris, La Découverte, 1989; Latour, B., Science in action: How to follow scientists and engineers through society, Cambridge-MA, Harvard University Press, 1987.

    14. Clarke, A. e Fujimura, J. (eds.), The right tools for the job: at work in twentieth century life sciences. Princeton, Princeton University Press, 1992; Jasonoff, S., Markle, G. E. e Peterson, J. C. (eds.), Handbook of science and technology studies, London, Sage, 1995.

    15. Callon, M., "Struggles and Negociations to Define What Is Problematic and What Is Not : the Socio-Logics of Translation", in K.D. Knorr (Eds), The social process of scientific investigation, Dordrecht, D. Reidel Publishing Company. 1980.

    16. Latour, B., La vie de laboratoire, Paris, La Découverte. 1988.

    17. Callon, M., La science et ses réseaux, Paris, La Découverte. 1989; Pickering. A., "Against putting the phenomena first: the discovery of the weak neutral current", Stud. Hist. Phil. Sci, vol 15, n°2, pp.87-117. 1984.

    18. Rudwick, M., The great devonian controversy, the shaping of scientific knowledge among gentlemanly specialists, Chicago, The University of Chicago Press. 1985; Schaffer. S., "Glassworks: Newton’s prims and the uses of experiment", in Gooding, E., Pinch, T. e Schaffer, S., The uses of experiment, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 67.104, 1989; Shapin S. e Schaffer, S., Léviathan et la pompe à air. Hobbes et Boyle entre science et politique. Paris, La découverte, 1994.

    19. Bachelard, G., La formation de l’esprit scientifique, Paris, Vrin. 1983.

    20. Bachelard, G., La psychanalyse du feu., Paris, Gallimard. 1938.

    21. Bachelard, G., Le nouvel esprit scientifique, Paris, PUF. 1984.

    22. Bachelard, G., L’intuition de l’instant, Paris, Stock. 1992.

     

     

    * Esse artigo resume, de forma bem esquemática, as análises sobre esse tema desenvolvidas mais detalhadamente no livro Invenção, descoberta e inovação científica: os olhares das academias, Rio de Janeiro, Editora E-Papers (no prelo).