SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.57 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.1 São Paulo jan./mar. 2005

     

     

    ENVELHECER OU NÃO ENVELHECER? EIS A QUESTÃO

    Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro

     

    Leva-se muito tempo para ser jovem. A frase é do conhecido pintor espanhol Pablo Picasso e expressa, no mínimo, uma aparente contradição. A idéia de juventude, normalmente, é associada a pouca idade, a questão meramente cronológica; assim, como se pode levar muito tempo para ser jovem? Juventude ou velhice são coisas vistas como independentes da vontade humana; são condições da própria vida. Mas há também um outro sentido, oculto, que subjaz à própria idéia aludida anteriormente: juventude ou velhice depende do tipo de vida que se leva, ou, melhor ainda, do desejo humano. Em suma, não estão alheias à antiga pretensão, que atravessa toda a história de nossa espécie, de se exercer o senhorio sobre a vida e a natureza.

    Atualmente, os avanços no campo da engenharia genética e da biotecnologia – na chamada tecnociência – sugerem que tal possibilidade de maior controle sobre a vida e o corpo seja realmente um fato: limites biológicos vêm sendo superados a cada dia, e novas descobertas apontam para um mundo inteiramente inusitado e repleto de conquistas no campo da medicina, da nutrição e da saúde, de modo geral.

    Quanto ao tema da longevidade, contudo, as controvérsias ainda estão muito ativas e nada indica que serão estabilizadas, em prol de algum consenso, seja este científico, ou mesmo moral. Afinal, o que fazer com tanto tempo em adição? Não envelhecer para quê, se a qualidade da vida não for minimamente aceitável, se a condição do usufruto em torno dos benefícios provenientes da nova onda científica e tecnológica ainda não está sequer encaminhada? Refiro-me, nesse contexto, ao tema da distribuição mais ampliada dos resultados das pesquisas geradas em laboratório; numa palavra, ao tema da eqüidade e do acesso da modernidade e do progresso às populações do planeta. Questão, esta, que coloca em cena, não apenas a longevidade, mas a própria sobrevivência de grandes contingentes, sob o risco permanente da desnutrição e da morte prematura, por absoluta falta de alimentos.

    Quer dizer, sem menosprezar a questão em foco – a respeito da possibilidade de aumentar o tempo de vida dos indivíduos, proximamente, mediante a aplicação de novos conhecimentos científicos e tecnológicos – cabe insistir na agenda, recorrente, dos grandes dilemas humanos, ainda, os da sobrevivência e, sempre mais em voga, os atinentes à problemática ambiental – também esta uma preocupação com a sobrevivência mais abrangente do planeta. Os riscos advindos da degradação ambiental constituem, por si só, o fulcro da preocupação com a longevidade, pois, para que envelhecer num mundo inóspito, degradado, vazio?

    Mas a discussão é de maior escopo. É também ética.

    O argumento que se quer acentuar diz respeito à legitimação da ciência e da tecnologia no mundo contemporâneo. É longo o debate entre os especialistas. A tese predominante alude à idéia de que a ciência e a tecnologia, em si mesmas, não são boas nem más; porém, é a sociedade e os indivíduos que conferem diferentes destinos à utilização dos resultados da prática científico-tecnológica.

    Ora, então, cabe perguntar: a bomba atômica é aceitável, em si mesma, uma vez que está comprovada e demonstrada, na prática, a sua eficácia? E o que dizer da geração de seres humanos programados em laboratório, criados para cumprir propósitos bem definidos na sociedade? Caso isto seja uma possibilidade real, como reagir diante do fato? Quais as conseqüências da redução da variabilidade genética de plantas e animais, para o futuro da vida no planeta? Como os diferentes ambientes culturais deverão responder a mudanças radicais em antigos hábitos alimentares e de trato com a agricultura? Enfim, são questões muito complexas e que ultrapassam consideravelmente o âmbito da pesquisa; ultrapassam, mas também o atingem e o condicionam diretamente.

    É inegável que novos recursos e autorizações para a pesquisa de ponta estão a depender, crescentemente, de aprovação dos parlamentos e de vários fóruns de discussão, que vão do mundo acadêmico aos partidos políticos e a todo um conjunto de movimentos sociais interessados em exercer maior controle sobre o curso dos acontecimentos científicos e tecnológicos.

    Ciência e tecnologia são, sim, passíveis de legitimação ou de aprovação moral. A pronta aceitação de seus resultados, fazendo parecer tratar-se de coisas neutras, é, na verdade, a grande ficção científica. Não bastam os cientistas e especialistas assim as defenderem, as pessoas não mais acreditam, necessariamente. O mundo científico perdeu sua ingenuidade aparente.

    Para um renomado sociólogo alemão, Jürgen Habermas, a técnica é autolegitimável, ou seja, seus critérios de aceitabilidade são estritamente racionais, de ajuste de meios a fins determinados, uma racionalidade do tipo técnico-instrumental. Entretanto, distintamente dessa posição, todo um lado obscuro e problemático passa a ser revelado, ao se abrir a "caixa-preta" da tecnologia, examinando-se todo o seu conteúdo social, seus aspectos de exclusão e sua seletividade implícita, como marcas humanas deixadas em todo um percurso, que vai da escolha do problema de pesquisa aos seus resultados finais, passando pelas inúmeras decisões tomadas no próprio âmbito do laboratório, envolvendo cientistas e não cientistas, técnicos, dirigentes de órgãos públicos e todo um conjunto de atores nem sempre evidenciados ao se falar de ciência e tecnologia. Isto é, são marcas das negociações, disputas de toda ordem e interesses prevalentes, colocados uns contra os outros, num extenso campo de conflitos os mais diversos. Não há como negar tais fatos, ao se examinar a história das descobertas científicas e da produção de determinados fatos, hoje tão consensuais, como a descoberta do DNA, como nos aponta, por exemplo, Bruno Latour.

    Assim, a própria eleição do tema – longevidade – é já uma escolha que contém um interesse humano e social, a prevalência de determinados objetivos em detrimento de outros. Em outras palavras, é também uma questão política. Com isto, não se trata, pois, apenas, de se saber se é possível ou não maior longevidade, se há razões técnicas que fundamentem essa possibilidade ou se um dia o mundo acordará com seres humanos vivendo 300 anos. Cabe sim, investigar, também, se este é um anseio legítimo e desejável, e por quem; se nas disputas no jogo do que é relevante e prioritário, as sociedades e os indivíduos têm minimamente participado de tais decisões. Ou se, ao contrário, assistiremos, impassíveis, ao descortinar de mais uma glamourosa e cansativa epopéia da aventura humana no planeta; que de tão desventurosa que seja venha a legar a raça dos novos titãs, num redivivo clone de Prometeu, sob o lema de novos impérios e dominações sobre uma humanidade deserdada.

    Fugir para que e para onde? Não envelhecer para que?...Ou envelhecer e não morrer, celebrar o gozo da conquista e o apreço de deuses sempre inquietos e ciosos de seus poderes?...Homens pálidos, triste futuro ou promissora conquista? Que novos impérios, que novos cenários nos reservam a ciência e a tecnologia contemporâneas?

    Para finalizar, utilizando conhecidas expressões de Max Weber, é sempre importante conciliar uma ética da convicção – aquela que, por exemplo, defende, a todo o custo, o direito da pesquisa e da curiosidade humana, mesmo que algum benefício geral não seja evidente de imediato, ou seja, o valor da autonomia do cientista – a outra ética, da responsabilidade, capaz de julgar as conseqüências eventualmente desastrosas de determinadas pesquisas realizadas nos modernos laboratórios de importantes instituições do mundo contemporâneo. O que é bem ilustrado, hoje, com o tema da longevidade humana.

     

    Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro é doutor em sociologia, professor do Instituto de Ciências Humanas, no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).

     

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Barreto, V. "Bioética, biodireito e direitos humanos", in Torres, R. Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro, Ed. Renovar. 1999.

    Biggart, W. A.; "Transfering biotechnology", in Portfolio Internacional Economic Perspectives, V. 12, Nº 1. United States Information Agency. 1986.

    Callon, M. "Society in the making; the study of technology as a tool for sociological analysis". in The social construction of technological system. Massachusetts: Institute of Technology. 1987.

    Callon, M. & Latour, B. La science telle qu’elle se fait. Paris, La Dècouverte. 1991.

    Callon, M. La Science et ses reseaux; genese et circulations des faits scientifiques. La Découverte, Paris. 1989.

    Freeman, C.; Clark, J. & Soete, L. Unemployment and technological innovation: a study of long waves and economic development. Londres, Frances Pinter. 1982.

    Galhardi, R. M. A. A. New technologies and developing countries: The case of biotechnology. Brasília: CNPq. 1989.

    Gibbons, M. et al. The new production of knowledge; the dynamics of science and research in the contemporary societies. Londres, Sage. 1994.

    Goldim, J.R. "Bioética e interdisciplinaridade", in Educação, Subjetividade & Poder, nº 4, pp. 24-28. 1997.

    Knorr-Cetina, K. "Scientific communities or transepistemic arenas of reserch? A critique of quasi economic models of science", in Social Studies of Science, nº 12, pp. 101-130. 1982.

    Knorr-Cetina, K. The manufacture of knowledge; an essay on the constructivist and contextual nature of science. Oxford, Perzaman Press. 1981.

    Latour, B. "Give me a laboratory and I will raise the world", in Knorr-Cetina, K.; Mulkay, M., Science Observed. London, Sage. 1983.

    Latour, B. & Woolgar, S. A vida de laboratório; a produção dos fatos científicos. Rio, Relume Dumará. 1997.

    Latour, B. Le métier de chercheur; regard d’un anthropologue. Paris: Ed. Inra. 1995.

    Latour, B. "The force and the reason of experiment", in H. E. Le Grand. Experimental Inquiries. Netherland, Kluwer Academic Publishers. 1990.

    Latour, B. Ciência em ação. São Paulo, Unesp, 2000.

    Lehman, V. & Lorch, A. "The race for the human genome", in Biotechnology and Development Monitor, nº 40, pp. 6-9. 1999.

    Lewontin, R. "It ain’t necessarily so. The dream of the human genome and other illusions". New York Review Books, New York. 2000.

    Nature Biotechnology, maio. 2001.

    Nicholas W. "Analysis of human genome discovers far fewer genes", in The New York Times, feb. 12. 2001.

    Porter, M. "Clusters and the new economics of competition". Harvard Business Review, pp. 77-90, nov./dez. 1998.

    Salles-Filho, S. "Disconnections between biotecnology policies and market reality: comments on the brazilian experience", in Science and Public Policy, 22(3), pp. 208-209, jun., 1995.

    Yoxen, E. "Life as a productive force: capitalising the sciense and technology of molecular biology", in Levidow, L. & Young, B. Science, Technology and the labour process. Marxist studies. Volume I. London, LSE Books. 1981.