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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2005

     

     

    CIÊNCIA, BIOTECNOLOGIA E NORMATIVIDADE

    Maria Claudia Crespo Brauner

     

    A partir dos novos conhecimentos tecnocientíficos no domínio vasto da genética e da tecnologia médica instaurou-se na agenda mundial a discussão e avaliação dos instrumentos normativos de proteção e de respeito à vida. A utilização das novas biotecnologias sobre o ser humano e, igualmente, sobre a fauna e a flora, comporta repercussões de toda ordem: interesses de mercado, interesses políticos e interesses sociais.

    Nos países em desenvolvimento, notadamente no Brasil, há a necessidade de promoção da biotecnologia por meio de capacitação e por políticas que orientem o aprendizado, o investimento e o financiamento, compartilhados por meio da organização e manutenção de redes de inovação (1).

    Por sua vez, o debate público relativo à elaboração de legislação, que regula as modalidades de intervenção da ciência sobre a vida, tornou-se imprescindível nas sociedades democráticas e pluralistas. O processo normativo revela-se como um momento complexo que se instaura desde a apropriação da nova tecnologia, passando pela elaboração de uma proposta de regulamentação, até a efetiva utilização da técnica, definindo-se na lei as responsabilidades e sanções pelo descumprimento das regras e princípios garantidores de uma justa distribuição dos benefícios da ciência.

    BIOTECNOLOGIA E PRODUÇÃO DO DIREITO A lei parece ser o instrumento privilegiado para orientar o desenvolvimento das ciências da vida. A recente formulação da disciplina denominada de biodireito representa um ramo novo e revolucionário cujo interesse repercute em todo o mundo, e requer um conhecimento transdisciplinar constantemente atualizado e dinâmico, de acordo com a evolução dos avanços científicos. O biodireito tem por objeto a vida em aspectos multiformes, com repercussões em várias áreas do direito público, civil, penal, ambiental, da saúde, da propriedade intelectual, e da família. Além de transdisciplinar, esse direito tem como fundamento vários textos internacionais (2).

    É preciso compreender que o processo de inovações biotecnológicas é caracterizado por muitas especulações e envolvem muitos interesses, o que vem a dificultar o acesso à informação segura da população. O desafio consiste em conceber uma visão comum e acessível das noções científicas, que deveria ser incorporada no direito para fundamentar regras bastante claras e objetivas.

    As leis nacionais devem estar estruturadas sob a base das regras e princípios de âmbito internacional estabelecidos através de convenções, abrindo-se um caminho na esfera dos direitos humanos para a criação de um direito internacional das ciências da vida, inspirado na proteção da dignidade da pessoa humana.

    O debate que alicerça a formulação do biodireito assenta-se, portanto, sobre o princípio da dignidade da pessoa humana. O reconhecimento e a afirmação da dignidade humana, conquanto seja esta um direito fundamental, sofre constante impacto das contingências dos interesses econômicos ou das transformações culturais.

    Os poderes da biomedicina conferem a possibilidade de transformação programada da vida planetária sendo que, todas as possibilidades que estavam no plano teórico ou potenciais, neste momento estão em fase de plena possibilidade de realização.

    A maior preocupação mundial é a questão da saúde e da qualidade de vida do homem. A discussão ecológica e a preocupação com o meio ambiente e a proteção dos recursos ecológicos vinculam-se diretamente à sobrevivência do ser humano e aos direitos humanos. Se a pesquisa genética avançou de forma incomparável nesses últimos anos é, justamente, porque objetiva encontrar soluções para pôr um fim a um número impressionante de doenças hereditárias raras e de doenças comuns e avassaladoras como diabetes, doenças cardiovasculares, doenças neuropsiquiátricas, câncer e Aids. Portanto, o avanço da ciência não pode ser contido por simples tabus ou preconceitos tendo em vista os grandes interesses sociais envolvidos. Entretanto, deve-se adotar um critério de prudência e de responsabilidade para a aceitação das novas intervenções sobre o ser humano e sua descendência.

    A base de sustentação que oferecerá condições para que o Estado intervenha nas pesquisas e descobertas científicas, será a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana, que fundamenta invariavelmente o debate filosófico, tendo sido incorporado pelo discurso jurídico e presente nas mais variadas legislações.

    Embora seja difícil elaborar um conceito jurídico de dignidade da pessoa humana, Sarlet apresenta-nos uma boa definição: "... a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos" (3).

    A RELEVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS A questão que reveste o debate sobre a biomedicina e os limites jurídicos a serem exigidos nas pesquisas genéticas deve ser tratada à luz dos compromissos jurídicos fundamentais, principalmente, o princípio da proteção à dignidade da pessoa humana, que atribui unidade e sentido à ordem constitucional.

    Nesta perspectiva, reitera-se a importância de fundamentar as discussões do biodireito sob o prisma dos princípios constitucionais que asseguram proteção ao ser humano, à biodiversidade, e que proíbem a comercialização de órgãos e funções do corpo humano, garantindo a proteção à vida e à liberdade de cada cidadão. O compromisso do Estado brasileiro para com a vida e a liberdade de cada um está assegurado pelo artigo 5º do texto constitucional. O dispositivo garante o direito à igualdade; o direito à vida; o direito à liberdade; o direito à segurança, que envolve o direito à integridade física e moral.Mais adiante, o artigo 196 reconhece a saúde como um direito de todos e dever do Estado, sendo que, para possibilitar a realização deste direito, deve o Estado criar políticas públicas para reduzir o risco de doença e de agravos e oportunizar o acesso universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. A proteção do direito à vida está assegurada pela Constituição Federal de 1988, de modo que, além de resguardar a dignidade da pessoa humana, protege-se o bem jurídico fundamental que é a vida, compreendida em seu sentido biológico, o direito de viver humanamente, e, num sentido transcendente, de desenvolver livremente sua personalidade. O texto constitucional não faz referência ao estágio da vida humana, definindo tutela ao embrião ou nascituro, por outro lado, a previsão da proteção à maternidade e a priorização dos direitos da infância são previstos pela Constituição.

     

     

    O corpo humano não pode ser objeto de atividade mercantil, pelo princípio da indisponibilidade do corpo humano, conforme prevê o artigo 199, parágrafo 4º da Constituição. A extra-comercialidade seria a garantia da realização do princípio da integridade e da dignidade da pessoa humana. Desse modo, a doação de órgãos, de sangue, tecidos, leite materno, deve ser estimulada, mas a prática remunerada de qualquer desses elementos do corpo humano deve ser considerada como um caso grave de ilicitude penal e civil, do mesmo modo que a remuneração pela cessão de útero, nos casos de maternidade por substituição. Com relação à doação de órgãos em vida, só é cogitável a autorização, no caso de órgãos duplos ou tecidos regeneráveis, parcial ou totalmente, que não comprometem as funções vitais, as aptidões físicas e que não provoquem deformação do corpo do doador.(4)

    A preocupação com o direito a um meio-ambiente ecologicamente equilibrado justificou a inserção do direito à biodiversidade e à integridade do patrimônio genético da humanidade na Constituição brasileira, em seu artigo 225, oferecendo um conjunto de princípios norteadores para a ação governamental.

    A proteção do patrimônio genético da humanidade representa a garantia de que não ocorrerão alterações que possam vir acarretar possibilidades de transferência a outras gerações das alterações implementadas nos genes, tendo em vista a impossibilidade de prever os riscos futuros destas intervenções. A possibilidade de melhoria dos genes não justifica, neste momento, o risco não calculável de que tais intervenções não acarretem prejuízos às gerações futuras. Esse direito está diretamente vinculado à idéia de proteção à biodiversidade e ao ambiente ecologicamente equilibrado, devendo dispor a humanidade de uma natureza íntegra e preservada das ingerências inconscientes do mundo científico.

    CLONAGEM HUMANA E DIREITO À IDENTIDADE A utilização da técnica que possibilitará a clonagem humana consiste em um dos temas de maior discussão dos últimos meses. Ela comporta diversos entendimentos e merece um maior aprofundamento do ponto de vista científico para estabelecimento de um consenso sobre a pertinência em proibi-la, aceitá-la com condições ou liberar as pesquisas sem constrangimentos. Na segunda hipótese, autorizando-se a clonagem para fins terapêuticos, a partir da utilização de células tronco-embrionárias pretende-se tratar doenças graves, produzindo-se, até mesmo, órgãos para aqueles que necessitem de transplantes. Se a clonagem terapêutica parece possível de ser aceita pelas promissoras perspectivas que se apresentam, entretanto, a clonagem humana sob o prisma reprodutivo, comporta um grande dilema, tendo em vista que a viabilidade da realização da duplicação do ser humano implica na possibilidade de se programar o nascimento de uma criança sob medida, negando-se a sua identidade, o que acarretaria sérios problemas na ordem das relações familiares com reflexos no âmbito psicológico.

    Nesse sentido, a inquietação sobre a condição humana a partir das possibilidades de clonagem, representa uma indagação necessária, sendo que nenhuma resposta deve ser definitiva, evitando-se o domínio ou a hegemonia de qualquer cultura sobre uma outra. As soluções devem ser construídas provisoriamente e a partir de concepções diferentes acerca da vida e do papel das intervenções da ciência na natureza.

    O direito à identidade faz parte integrante dos direitos personalíssimos, ou seja, têm importância intrínseca e pertence a todo ser humano, indistintamente. No que consiste especificamente à clonagem com fins reprodutivos, põe-se em discussão a afronta direta ao direito à identidade do indivíduo em conhecer sua origem, de reconhecer-se com ser único e "irrepetível". Se, pelo olhar da genética, o indivíduo clonado é idêntico ao seu clone, do ponto de vista da subjetividade, da personalidade, cada ser humano é único. Entretanto, a discussão que se estabelece é quanto ao direito do clone a sua identidade específica e o acesso a suas origens e a identificação do parentesco.

    Decorre do princípio da igualdade entre todos os homens não receber tratamento discriminatório e, no caso da clonagem reprodutiva, esse princípio é voluntariamente atingido por meio da instrumentalização do ser humano, concebido pela técnica da clonagem e que, pelos motivos acima descritos, não disporá dos direitos fundamentais assegurados a toda pessoa humana.

    Na técnica da clonagem reprodutiva, conforme Junges: "o perigo deste tipo de procedimento é empobrecer a diversidade genética, pois através da mixagem dos caracteres, introduzem-se novidades nas combinações possíveis entre os genes. Diminuir estas possibilidades significaria perder um patrimônio de biodiversidade que levou milhões de anos para se constituir e não se têm as condições de aferir as conseqüências, no futuro, desta nivelação e, aprender a controlá-las em poucos anos" (5).

     

     

    A preocupação com a formulação normativa é vasta levando a perceber que as discussões sobre os temas do biodireito perpassam a necessidade de cumprimento das leis já existentes e a realização dos direitos fundamentais do cidadão, que estão inseridos na Carta Constitucional de 1988. A grande preocupação é a necessidade de elaborar-se um juízo crítico com relação aos efeitos sobre o homem, a sua descendência e o meio ambiente, quando da adoção de novas biotecnologias.

    Para garantir a proteção dos direitos fundamentais do homem e da mulher, o direito deve intervir para reprimir abusos, como as experiências com seres humanos; para estabelecer regras de conduta a certas categorias profissionais, a partir dos códigos de ética médica; para garantir o direito dos indivíduos e a perenidade da espécie humana – patrimônio genético indisponível e a biodiversidade. O direito deve assegurar o respeito e a proteção aos Direitos do Homem, às regras das Nações Unidas, às resoluções da Organização Mundial da Saúde.

    Reconhece-se o esforço dispensado para a elaboração e discussão de diversos instrumentos internacionais de proteção à vida, à dignidade humana, ao meio ambiente e à diversidade biológica. A Declaração Ibero-latino-americana sobre ética e genética elaborada em Manzanillo, em 1996, e revisada em Buenos Aires, em 1998, revela a importância da Declaração Universal da Unesco sobre o genoma humano e os direitos humanos de 1997, do Convênio do Conselho da Europa sobre direitos humanos e Biomedicina enfatizando a necessidade em garantir-se o respeito à dignidade, à identidade e à integridade humanas e aos direitos humanos reafirmados em documentos jurídicos internacionais. A legislação internacional, para ser respeitada, condiciona a que a incidência interna esteja assegurada em cada um dos países signatários. Contrariamente, pode-se prever novas maneiras, extremamente aviltantes, por certo, de se fomentar a espoliação das nações desenvolvidas sobre as subdesenvolvidas, nas complexas relações norte-sul.

    NOTAS CONCLUSIVAS O estudo sobre as implicações jurídicas da utilização das modernas biotecnologias sobre o ser humano e o meio ambiente insere-se na preocupação sobre a maneira com a qual os países detentores dessas técnicas buscam enfrentar os riscos de se estabelecer um domínio técnico-científico, em oposição aos valores que alicerçam a formação de uma sociedade livre, que distribua com justiça, os benefícios oferecidos pelos avanços na medicina. Para coibir abusos na utilização das novas descobertas da medicina, haverá necessidade de se elaborarem leis, a partir de um amplo conhecimento dos riscos e dos benefícios de cada nova terapia, que não venham a impedir os avanços da ciência, necessários à vida planetária.

    Além de maior transparência dos procedimentos científicos, o grande dilema parece ser o de romper a noção competitiva e individualista da ciência na distribuição de seus benefícios (6). Uma reflexão, que permita levar em consideração as diferenças culturais e se ajuste às realidades locais, deverá permear as escolhas normativas em nosso país.

    O Brasil vive um momento importante no âmbito legislativo promovendo o debate sobre diversas questões de grande relevância para toda a sociedade. A profusão de projetos de lei destinados a regulamentarem diversos temas – notadamente, a proposta de uma nova lei sobre a biossegurança (2401/2003), uma lei para reprodução humana assistida, uma lei dispondo sobre o acesso e utilização de dados genéticos, sobre o patrimônio genético, sobre a pesquisa em seres humanos – demonstram que há o interesse em legislar. Vários outros projetos de lei enfrentam temas de grande interesse social e sanitário, dentre eles, os que visam dar uma nova configuração jurídica ao aborto, do recurso aos exames de DNA e da investigação de paternidade, da proteção aos direitos do transexual, da pesquisa em seres humanos. A dificuldade na aprovação desses projetos se encontra nas questões de ordem política ou religiosa que permeiam o debate e que, invariavelmente, dificultam a aprovação dos projetos que melhor respondem aos interesses da maioria da sociedade.

    As escolhas normativas não devem ter pretensão de serem definitivas e completas, devendo estimular o avanço da pesquisa e da inovação tecnológica e tentar conciliar com os princípios jurídicos referidos anteriormente. O debate deve ser amplo, envolver os diversos setores e demonstrar a necessidade de consensos acerca de temas polêmicos, um equilíbrio de vontades baseado em uma solução de compromisso. Enfim, a produção de uma ordem normativa que responda aos desafios de nosso tempo.

     

    Maria Claudia Crespo Brauner é doutora em direito pela Universidade de Rennes (França); professora e pesquisadora de direito, bioética e biodireito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos; membro da Sociedade Rio-Grandense de Bioética (Sorbi), da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), e do Institut International de Recherche en Ethique Biomédicale (IIREB).

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Bonacelli, M. B. M e Salles-Filho, S. L. M. "Estratégias de inovação no desenvolvimento da moderna biotecnologia", in Biotecnologia em discussão. Cadernos Adenauer. nº 8. p 21. 2000.

    2. Lenoir, N. "Respect l avie et droit du vivant". in (eds) Noble, D; Vincent, J. D. L’éthique du vivant. Paris. Edições Unesco. 1998

    3. Sarlet. I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. p. 62. 2002.

    4. Previsão do artigo 9º § 3 da lei 9.434/97 sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplantes e tratamento.

    5. Junges, J. R. Bioética – perspectivas e desafios. São Leopoldo: Unisinos, p. 254. 1999.

    6. Brauner. M. C. C. Direito, sexualidade e reprodução humana. Conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar. 2003