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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.1 São Paulo jan./mar. 2005

     

     

    PESQUISA EM SAÚDE E REFORMA SANITÁRIA

    Reinaldo Guimarães

     

    Com a possível exceção da pesquisa militar, a saúde é o setor que despende a maior quantidade de recursos em termos mundiais. Em 1998, estimava-se terem sido algo como US$ 73,5 bilhões (1), dos quais mais de 90% nos países ricos e visando resolver os seus próprios problemas.

    Em contrapartida, o esforço realizado pelo Brasil no terreno da pesquisa em saúde é admirável. No plano histórico, ela é a mais antiga e a que acumula as maiores contribuições em nível mundial. Hoje em dia, em termos setoriais, é a que detém o maior número de pesquisadores, linhas e grupos de pesquisa ativos. Até julho de 2002, eram quase 5 mil grupos com pelo menos uma linha de pesquisa em saúde e cerca de 18 mil pesquisadores (11 mil doutores) envolvidos nas mesmas. Dependendo da forma de medir, isso representa entre 25% e 30% do esforço total de pesquisa no país.

    Mas quando se formula a pergunta – "Qual o grau de interação da pesquisa em saúde com a Política Nacional de Saúde no Brasil de hoje?" – há motivos para preocupação, pois ela parece estar aquém do desejável. Se pudéssemos contar quantos dentre os pesquisadores mencionados acima definem suas prioridades de pesquisa em consonância com prioridades explícitas de pesquisa oriundas da Política Nacional de Saúde, provavelmente chegaríamos a um resultado pouco animador. Apesar de evoluir desde os anos 1950, essa dificuldade foi enunciada com clareza apenas em 1994, na 1ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde cuja resolução final estabeleceu que "a política de pesquisa em saúde é um componente da Política Nacional de Saúde". Na simplicidade da frase se esconde uma tarefa de difícil execução e, de fato, passados quase dez anos da 1ª Conferência, ela ainda não foi realizada.

    Mas, no plano histórico, houve tempo em que essa interação foi muito maior. Portanto, talvez não se trate apenas de introduzir um padrão original de prática de pesquisa, mas de recuperar uma tradição centenária em nosso país, posto que ela está na raiz da pesquisa em saúde no Brasil, no Instituto Bacteriológico de São Paulo (com Adolfo Lutz), no Instituto de Manguinhos (com Oswaldo Cruz), no Instituto Butantan (com Vital Brasil) e no Instituto Biológico de São Paulo (com Artur Neiva e Rocha Lima). Essas instituições, desde o final do século XIX e até os anos 30 do século XX, nada mais fizeram do que praticar uma pesquisa com intensos vínculos com as políticas de saúde, inspiradas no modelo de Pasteur. Um pouco mais tarde, podemos citar também o Instituto Evandro Chagas de Belém, tendo à frente o seu patrono. Nelas, cada uma a seu modo, fez-se uma pesquisa experimental, muitas vezes de fronteira, que nunca teve dificuldade em manter seus compromissos com o atendimento às necessidades de saúde da população. Que foi capaz de amalgamar as aquisições dessa pesquisa com a observação clínica e com a intervenção populacional de saúde pública, bem como tratou de transferir muitas de suas descobertas para o terreno da produção industrial (como no caso dos soros e vacinas). E que, finalmente, não deixou de formar recursos humanos qualificados e de disseminar seus achados através de revistas científicas de excelente nível, algumas existentes até hoje.

    Naturalmente, nossa realidade atual é muito diferente da que existiu no tempo da fundação da pesquisa em saúde no Brasil. São novas instituições, a magnitude das tarefas e dos problemas é muito maior e os interesses nacionais e internacionais em jogo são gigantescos. No entanto, numa perspectiva heurística, a experiência histórica deve chamar nossa atenção para a possibilidade de uma redefinição dos padrões de pesquisa em saúde no país. Deve, além disso, sugerir uma direção para a mudança, na qual um olhar mais atento da comunidade científica e tecnológica às necessidades e às políticas de saúde não signifique um empobrecimento de sua capacidade de invenção ou uma perda de sua autonomia criativa.

    A política brasileira de C&T privilegia a eleição de setores de atividade econômica como base de sua concepção e orientação (2). Esta ênfase, embora compreensível como direção geral, tem deixado de lado uma outra visão das políticas de C&T, em setores que possuem uma enorme relevância no Brasil e nos quais a atividade de pesquisa deveria ocupar um lugar muito mais central do que ocupa hoje e do que jamais ocupou. Trata-se do olhar em direção aos setores de atividade social, em particular os de alimentação, saúde, habitação e educação.

    Esse olhar da política de C&T em direção às políticas sociais possui, também, a virtude de operar um deslocamento na direção de um novo projeto nacional no qual possa ser mais valorizado o mercado interno e as necessidades da população brasileira. Por exemplo, no que se refere à alimentação, ao lado de aumentar a competitividade das commodities brasileiras de exportação (o que é, sem dúvida, importante), será essencial inaugurar linhas de apoio à pesquisa com vistas, por exemplo, a uma política de segurança alimentar. Uma nova política de ciência e tecnologia em saúde terá, portanto, o desafio de, ao mesmo tempo, fomentar o avanço do conhecimento científico no setor de saúde, orientar os vetores de desenvolvimento tecnológico e de inovação da indústria de equipamentos, medicamentos, imunizantes e outros insumos básicos à saúde, sempre sem perder de vista os mecanismos de apropriação societária dos resultados alcançados no conjunto de suas ações.

    A desigualdade é o calcanhar de Aquiles da civilização brasileira. Todo o progresso conquistado por gerações, em todos os campos em que isso foi observado, esbarra na marca infame – muitas vezes crescente – da desigualdade. Não é diferente no campo da saúde. Os indicadores regionais e os referentes a diferentes grupos sociais dentro de cada região demonstram a profunda discriminação social quanto à saúde, seja nos padrões de morbidade, de mortalidade, no acesso aos serviços, na qualidade do atendimento, na disponibilidade de infra-estrutura sanitária, enfim em qualquer aspecto da intervenção pública ou privada atinente à mesma. O compromisso de combater a marca da desigualdade no campo da saúde (aumentar os padrões de eqüidade do sistema de saúde) deve ser o primeiro fundamento básico da política de ciência, tecnologia e inovação em saúde, e deve orientar todos os seus aspectos, todas as suas escolhas, em todos os momentos.

    Em artigo recente, publicado no Bulletin of the World Health Organization, lê-se: "Se o sistema de pesquisa em saúde de um país pode ser considerado como o ‘cérebro’ do seu sistema de saúde, então a ética constitui a sua ‘consciência’. É imperativo que sistemas de saúde operem segundo as mais altas aspirações éticas e de justiça distributiva" (3). Não resta dúvida de que as crescentes restrições observadas nos países centrais quanto aos experimentos in anima nobile dentro de suas fronteiras têm estimulado a exportação de projetos de pesquisa, em particular de protocolos de ensaios clínicos e terapêuticos para serem executados em populações de países em desenvolvimento, em condições que seriam legalmente proibidas porque eticamente inaceitáveis no país de origem.

    A busca da eqüidade e a sustentação de padrões éticos na pesquisa em saúde são os dois fundamentos básicos de uma nova política de ciência, tecnologia e inovação em saúde. A responsabilidade pela sua implantação cabe essencialmente ao Ministério da Saúde, em cuja missão constitucional inclui-se a guarda e o desenvolvimento da política nacional de saúde. E o fato é que, diferentemente da maioria dos países do mundo que possuem alguma tradição de pesquisa, o nosso Ministério da Saúde, jamais, em 51 anos de vida, cuidou de estruturar o esforço de pesquisa em saúde no Brasil. É tempo de começar a fazê-lo.

     

    Reinaldo Guimarães é diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde e membro do GT de Ciência e Tecnologia da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva ( Abrasco).

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. OMS/Global Forum – Tracking Financing Flows in Health Research. 2001. Considerando que o orçamento dos National Institutes of Health (USA) duplicou nos últimos cinco anos, a cifra correspondente para 2003 deve ter ultrapassado US$ 100 bilhões.

    2. Orientação que pode ser observada com nitidez na arquitetura e na operação dos Fundos Setoriais, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia.

    3. Buttha, A. Bulletin of the World Health Organization. 2002.