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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.1 São Paulo jan./mar. 2005

     

     

    A INTERNACIONALIZAÇÃO DE AGENDAS DE PESQUISA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

    Carlos M. Morel

     

    Os últimos decênios foram palco de inúmeras revoluções científicas e de profundas transformações nos processos e políticas de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e produção industrial. Ao término da II Guerra Mundial, o relatório Science the Endless Frontier (1), elaborado por Vannevar Bush ao presidente dos Estados Unidos, introduziu conceitos e paradigmas que orientariam a política científica e tecnológica do pós-guerra em grande número de países, incluindo o Brasil (2). O relatório colocava ênfase especial na importância da pesquisa básica executada sem preocupações com aplicações práticas, mas que seria, na realidade, o marca-passo do progresso tecnológico, uma espécie de "dínamo remoto" do desenvolvimento. Nascia, assim, o modelo linear do papel da ciência e tecnologia no desenvolvimento econômico, baseado no financiamento público, generoso e desinteressado da pesquisa acadêmica. Segundo esse modelo, a pesquisa básica, ao gerar novos conhecimentos, catalisaria natural e automaticamente o desenvolvimento tecnológico e a produção industrial levando, portanto, ao progresso econômico e à riqueza. Implícitos no relatório estavam os conceitos de total separação entre as finalidades da pesquisa básica (busca de novos conhecimentos) e aplicada (busca de novas aplicações do conhecimento) e, também, como seria a prioridade dos financiamentos (pelo Estado e pelo setor privado, respectivamente).

    O arcabouço conceitual representado pelo Relatório Bush começou a ser questionado quando países que não possuíam uma pesquisa básica de peso conseguiram feitos tecnológicos espetaculares, ultrapassando em alguns campos os Estados Unidos, fortaleza inconteste desse tipo de investigação (3). A crítica ao modelo linear assumiu várias formas, desde as de tom mais ideológico e privatizante (4), até as que propuseram novos paradigmas e modelos para as inter-relações entre ciência e inovação (5). Embora o debate continue, a cada dia encontramos menos defensores da visão simplista que dicotomiza a pesquisa em duas entidades distintas – básica e aplicada – e propõe investimentos governamentais em pesquisa básica como suficientes para alavancar a geração de tecnologia, a produção industrial e o progresso econômico (6).

     

     

    Essa discussão tem uma enorme relevância para as agendas de pesquisa em saúde. Os paradigmas de Vannevar Bush e o modelo linear levaram à noção de que a inexistência de fármacos, vacinas ou métodos diagnósticos importantes para o controle de doenças, em particular as que afligiam populações pobres e marginalizadas, devia-se a um science gap, ou seja, à falta do conhecimento científico necessário ao desenvolvimento dessas intervenções e, portanto, de insuficiente pesquisa básica (7). Embora verdadeira em alguns casos, essa abordagem não levou em conta o contexto sócio-econômico que influencia profundamente o descobrimento, a produção e o acesso a intervenções sanitárias essenciais. O relatório da Comissão de Macroeconomia e Saúde (8), da Organização Mundial da Saúde, expõe com clareza a importância desse contexto, ao dividir as doenças em três categorias distintas:

    TIPO I: Doenças existentes em países ricos e pobres, com grande número de populações vulneráveis em todos eles (sarampo, diabetes, hepatite B). Os mecanismos de mercado são suficientes para geração de incentivos de P&D e para a produção industrial dos fármacos, medicamentos e vacinas. Os países pobres têm problemas de acesso, mas os medicamentos e as intervenções existem.

    TIPO II: Doenças existentes em países ricos e pobres, mas com muito maior prevalência nos últimos (HIV/Aids, tuberculose). Existem incentivos de P&D, mas em muito menor escala do que o necessário, e problemas específicos dos países pobres não são levados em conta.

    TIPO III: Doenças exclusivas ou majoritariamente prevalentes em países pobres (doença de Chagas, tripanossomíase africana ou doença do sono (9), oncocercose). Os incentivos econômicos para P&D são praticamente inexistentes – há, portanto, uma market failure – e os medicamentos necessários ou inexistem ou foram descobertos e são produzidos por terem aplicação veterinária ou serem úteis em outras doenças ou condições (10).

    De fato, desde o início dos anos 1990 foi demonstrado haver um enorme déficit de pesquisa relacionada com as doenças da pobreza, também conhecidas como ‘doenças negligenciadas’ ou ainda ‘doenças tropicais’. Esta carência foi batizada como déficit 10/90 (10/90 gap), pois apenas 10% do investimento anual em pesquisa em saúde são destinados às doenças que afligem 90% da população mundial (11). Em artigo recente analisamos as origens e raízes deste déficit e as dificuldades para superá-lo (12).

    A internacionalização das agendas internacionais da pesquisa em saúde tem levado a uma focalização nas três big killers – HIV/Aids, malária e tuberculose – isto é, as doenças transmissíveis responsáveis por grande parte da mortalidade em países em desenvolvimento, em particular na África subsaariana (13). Isto levou à proposição da nomenclatura doenças negligenciadas (neglected diseases) e doenças mais negligenciadas (most neglected diseases) para, respectivamente, as doenças do Tipo II e III acima descritas (14,15). Análises recentes nessa linha introduziram, também, o conceito de uma falha adicional, além das já mencionadas falhas da ciência e falha do mercado: a falha das políticas de saúde pública (16). De fato, ao relegar às grandes companhias farmacêuticas (Big Pharma) e às companhias de perfil biotecnológico (Small biotech) a responsabilidade pelo desenvolvimento dos novos fármacos e medicamentos destinados ao controle dessas doenças, o setor público abdicou de sua função indelegável, dando origem ao drama que hoje atinge milhões de pessoas: inexistência de medicamentos eficazes ou impossibilidade de acesso devido aos altos preços cobrados pelo setor privado e/ou dificuldades de distribuição nas zonas endêmicas.Desde a década de 1970 alguns programas (17) e/ou iniciativas internacionais foram criados para tentar superar esta situação (18). Os recursos investidos, contudo, sempre foram ínfimos comparados com o custo de desenvolvimento de novos medicamentos (19) ou com o orçamento de P&D das companhias farmacêuticas, além de totalmente inadequados para lidar com um problema de tal magnitude. Foram subestimadas, também, as dificuldades inerentes ao processo de geração do conhecimento necessário pelo estabelecimento de prioridades de pesquisa (20), da transformação desse conhecimento em intervenções sanitárias eficazes e a implementação dessas novas ferramentas pelos sistemas e serviços de saúde (21).Qual a situação do Brasil nesse contexto? Ao contrário de outros países, a pesquisa em saúde no Brasil não se limitou à pesquisa básica ou acadêmica, mas teve sua origem estreitamente ligada a problemas econômicos e sociais, como atestam a criação da Escola de Manguinhos e do Instituto Butantan na área de saúde humana, e da Escola Superior Luiz de Queiroz na agricultura (21 - 24). Além disso, fugindo do modelo linear de Vannevar Bush, as agências financiadoras brasileiras criaram, já na década de 1970, alguns bem-sucedidos programas de apoio à pesquisa estratégica, como o PIDE na área da saúde (25, 26), tipicamente atuante no assim chamado Quadrante de Pasteur (5).

    Essas raízes da pesquisa em saúde no Brasil seguramente estão na base de alguns sucessos alcançados por nosso país no controle de algumas doenças endêmicas, como a doença de Chagas (27) e a Aids (28) e dos bons resultados alcançados em algumas áreas onde o poder público investiu pesadamente como, por exemplo, auto-suficiência em imunobiológicos e campanhas de vacinação. Infelizmente, essas histórias de sucesso coexistem com trágicos exemplos de fracasso, como a situação epidemiológica da hanseníase e da tuberculose, ou os níveis de violência urbana, doenças e condições estreitamente ligadas ao contexto sócio-econômico.

    Além dos fatores de ordem econômica, o modo de organização e institucionalização da pesquisa, da ciência e da tecnologia brasileiras constitui um sério entrave ao desenvolvimento econômico e ao desenvolvimento das intervenções necessárias ao controle de doenças endêmicas. Entre nós há uma focalização excessiva no componente acadêmico da C&T, relegando a um segundo plano "aquele que é capaz de transformar ciência em riqueza – o setor empresarial" (29). Como conseqüência, cientistas e engenheiros representam apenas 0,11% do total da força de trabalho brasileira – proporção menor que a média internacional (0,54%) e longínqua da de países como os Estados Unidos e o Japão (0,8%) – e se localizam preferencialmente nas universidades, enquanto que em países como a Coréia do Sul a maior parte atua em empresas. Com isto, "a ciência brasileira avança, mas a competitividade não" (29).

    Em resumo, a internacionalização das agendas de pesquisa em saúde resultou em três falhas sérias: falha da ciência; falha de políticas públicas; e falha de mercado. O Brasil precisa de profundas transformações no seu sistema de C&T, adotando estratégias claras e eficazes para combater estas falhas: estimulando pesquisa estratégica e o desenvolvimento tecnológico em saúde; articulando a política de C&T em saúde com a política industrial; e criando mecanismos que assegurem o acesso da população pobre aos serviços, insumos e medicamentos essenciais à saúde.

     

    Carlos M. Morel é doutor em ciências pela UFRJ, membro titular da Academia Brasileira de Ciências e doutor honoris causa pela UFPE. Foi professor da Universidade de Brasília (1968-1978), pesquisador titular do Instituto Oswaldo Cruz (1978-1998), presidente da Fiocruz (1993-1997) e diretor do TDR na Organização Mundial da Saúde em Genebra (1998-2003), atualmente no Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Bush, V. Science the endless frontier. A report to the president, United States Government Printing Office (http://www.nsf.gov/od/lpa/nsf50/vbush1945.htm), Washington. 1945.

    2. Schwartzman, S. et al., "Science and technology in Brazil: A new policy for a global world", Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, pp. 1-284. 1995.

    3. O lançamento do Sputnik pela União Soviética, em 1957, e o sucesso da indústria japonesa de automóveis e máquinas fotográficas estão entre os exemplos mais citados.

    4. Kealey, T. "The economic laws of scientific research". St. Martin’s Press, Inc., New York, pp. 1-382. 1996.

    5. Stokes, D. E. Pasteur’s Quadrant: basic science and technological innovation, The Brookings Institution, Washington, pp. 1-180. 1997.

    6. Atualmente a frequência cada vez maior de PPPs – parcerias entre os setores público e privado – representa um complicador adicional à elaboração de novos paradigmas e políticas de ciência e tecnologia.

    7. O TDR, um programa especial das Nações Unidas criado em 1975 para desenvolver novas intervenções contra doenças tropicais, no estágio inicial visava combater o science gap e, portanto, financiava exclusivamente a pesquisa biomédica básica e o treinamento de recursos humanos nesta atividade. O descrédito no ‘modelo linear’ levou o programa, nas décadas de 1980 e 1990, a introduzir profundas modificações em sua estrutura e funcionamento, passando também a atuar ativamente nas áreas de desenvolvimento tecnológico, pesquisa clínica, pesquisa de campo, pesquisa de implementação de novos produtos nos sistemas de saúde e a colaborar com a área de controle de doenças em pesquisas operacionais (para maiores detalhes consultar o site www.who.int/tdr).

    8. WHO Commission on Macroeconomics and Health, Macroeconomics and Health: Investing in Health for Economic Development. Report of the Commission on Macroeconomics and Health (World Health Organization, pp. 1-200. Geneva, 2001.

    9. Vale a pena o registro de que, apesar de décadas de intensa atividade de pesquisa acadêmica sobre essa doença e o patógeno causador, o Trypanosoma brucei, em alguns dos mais avançados laboratórios mundiais, nenhum progresso ocorreu no desenvolvimento de novos medicamentos, fármacos ou vacinas.

    10. A ivermectina, usada no tratamento da oncocercose, é uma droga desenvolvida primariamente para uso veterinário; a eflornitina, usada no tratamento da doença do sono, só é produzida por ter aplicações cosméticas (eliminação de pelos faciais).

    11. Segundo o Global Forum for Health Research (http://www.globalforumhealth.org/pages/index.asp): "Health research is essential to improve the design of health interventions, policies and service delivery. Every year more than US $70 billion is spent on health research and development by the public and private sectors. An estimated 10% of this is used for research into 90% of the world’s health problems. This is what is called ‘the 10/90 gap’".

    12. Morel, C. M. EMBO Rep. 4 Spec No, S35-S38. 2003.

    13. Um dos fatores que mais contribuiu para esta focalização foi a criação do Fundo Global para o Combate da Aids, Tuberculose e Malária (http://www.theglobalfund.org/en/)

    14. "Médecins Sans Frontières access to essential medicines campaign and the drugs for neglected diseases working group, fatal imbalance: the crisis in research and development for drugs for neglected diseases". MSF Access to Essential Medicines Campaign, pp. 1-29. Brussels, 2001.

    15. Yamey, G. and Torreele, E. Br.Med.J. 325, 176-177. 2002.

    16. Trouiller, P. et al., Lancet 359, 2188-2194. 2002.

    17. Morel, C. M. Parasitol.Today 16, 522-528. 2000.

    18. Programas especiais sob a égide da Nações Unidas, como o TDR (data de criação: 1975); redes como a Great Neglected Diseases Network, da Rockefeller Foundation (1977); parcerias público privadas, como Medicines for Malaria Venture, MMV (1999), Global Alliance for TB Drug Development, GATB (2000), Foundation for Innovative New Diagnostics, FIND (2003); e iniciativas capitaneadas por diferentes organizações internacionais, como a Drugs for Neglected Diseases initiative, DNDi, dos Médicos Sem Fronteira (2003).

    19. DiMasi, J. A.; Hansen, R. W.; Grabowski, H. G..J.Health Econ. 22, 151-185. 2003.

    20. Remme, J. H. F. et al., Trends in Parasitology 18, 421-426. 2002.

    21. Morel, C. M. São Paulo em Perspectiva 16, 57-63 2002.

    22. Stepan, N. Gênese e evolução da ciência brasileira (Beginnings of brazilian science. Oswaldo Cruz medical research and policy. Original edition in english by Science History Publications, New York, 1976), Editora Artenova , Rio de Janeiro, pp. 1-188. 1976.

    23. Stepan, N. J.Hist Med.Allied Sci. 30, 303-325. 1975.

    24. Stepan, N. "Beginnings of brazilian science. Oswaldo Cruz, medical research and policy, 1890-1920". Science History Publications, New York, pp. 1-225. 1981.

    25. Araujo, J. D. Rev.Soc.Bras.Med.Trop. 18, 1-5. 1985.

    26. Goncalves, A.; Albuquerque, R. H. de; Lins, M. C.; Neiva, D. S.; Souza, G. F. de Rev.Inst.Med.Trop.Sao Paulo 30, 109-117. 1988.

    27. Morel, C. M. Mem.Inst.Oswaldo Cruz 94 Suppl 1, 3-16. 1999.

    28. Levi, G. C. and Vitoria, M. A. J Acquir Immune Defic Syndr Hum Retrovirol 16, 2373-2383. 2002.

    29. Brito Cruz, C. H. "A universidade, a empresa e a pesquisa que o país precisa". Cordeiro, R. S. B. (1), 5-22. 2003. Rio de Janeiro, Instituto Oswaldo Cruz. Cadernos de Estudos Avançados. Cordeiro, R. S. B.