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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.1 São Paulo jan./mar. 2005

     

     

    AINDA SOBRE A CIÊNCIA COMO VOCAÇÃO

    Roberto Bartholo

     

    Vivemos um tempo onde a confrontação com os poderes e conquistas tecnocientíficas é constitutiva de nosso cotidiano. A crença numa onipotência para o Bem da intervenção tecnocientífica, elemento de base das ideologias do salvacionismo tecnocrático, pressupõe a certeza de uma permanente capacidade auto-corretiva do vetor tecnológico para eventuais efeitos externos indesejáveis, sem que para isso se torne imperativa qualquer revisão de seus parâmetros e critérios de eficiência e eficácia. Parte dos dilemas de nosso tempo é o mal-estar quanto à corroboração de tais premissas pelos fatos da experiência.

    Os caminhos da modernidade hegemônica contemporânea, dita globalizada, parecem uma espiral cumulativa de distúrbios irreversíveis: degradação ambiental, exclusão social, violência e injustiça se associam à emergência de estados patológicos transformados em norma. A aceitabilidade social e a legitimidade ético-política de sistemas tecnocientíficos, que corporificam em si decisões grávidas de irreversibilidades sobre modos de vida presentes e futuros, são o problema central para as democracias.

    A neutralização ética da idéia de verdade e sua identificação com o conceito operacional de correção preditiva de proposições relativas a relações causais observáveis (e mensuráveis) na descrição de eventos serve de suporte para uma identificação entre saber e poder, congruente com a clássica formulação de Francis Bacon (1). Essa construção permeia o redesenho iluminista europeu do ideal do homem culto. Nele se expressa uma postura diante da vida a ser atingida com base numa atividade espiritual autônoma, capaz de superar, de forma dialética, a tutela imposta heteronomamente pela educação religiosa popular.

    Essa perspectiva tem expressão de incomparável clareza e concisão nos versos do Zahme Xenien de J.W. Goethe: "... Quem possui ciência e arte, tem também religião. Quem ambas não possui, tem religião".

    A tecnociência contemporânea constitui-se em substância de coesão de um mundo artificial, fundado em hibridismos vários onde não se vislumbra mais delimitação clara entre o natural e o sintético. Os riscos de tutela, contra os quais o libelo iluminista se dirigia, mudam de face. Não se trata mais de priorizar a necessidade de destutelarizar o intelecto contra os grilhões mentais da escolástica medieval. O anestesiamento do espírito crítico tem novos portadores. Superar a dominação tutelar de "pedagogos, terapeutas e planejadores do sentido da vida" é um desafio que ganha renovadas dimensões. E uma atualização dos versos de J.W. Goethe parece ser imperativa: "... Quem possui capacidade de confrontação ética com a modernidade tem também tecnociência. Quem isso não possui, tem tecnociência".

    A simples ampliação do espectro de poderes tecnocientíficos não pode ser identificada com um benefício para uma humanidade abstrata e genérica. Se tanto, é possível apenas associá-la ao benefício de um subconjunto social e historicamente determinado de pessoas. E a identificação desse subconjunto com a totalidade opera uma perversão do ideal da liberdade, para dele fazer elemento de uma retórica a serviço da perpetuação de privilégios.

    Já fomos há tempos advertidos por Max Weber de que "nenhuma ciência é absolutamente isenta de pré-condições" (2). E uma pré-condição fundamental é que o produto do trabalho científico seja algo valioso de ser conhecido. Esta valoração é prévia ao trabalho científico em sentido estrito. Os objetos de conhecimento apresentam-se vinculados a contextos de interesse não tematizados na pesquisa. Apenas nesse sentido pode ser lícito afirmar que a ciência em ato seja valorativamente cega.

    Mas isso não implica que, usando as palavras de Max Weber, para a práxis científica existam sempre diferentes deuses a serviço dos quais ela possa ser exercida. É em função de qual deus se segue, que são fixadas respostas ao questionamento sobre o que é bom de ser conhecido. Desse modo, na perspectiva weberiana, a ciência em si não é valorativamente neutra, embora as decisões sobre que deus seguir não possam ser consideradas certas ou erradas, do ponto de vista científico. A questão se o programa de pesquisas tecnocientíficas contemporaneamente hegemônico segue ou não o deus verdadeiro não é, na perspectiva weberiana, passível de ser respondida pelos saberes tecnocientíficos especializados. Mas ela pode e deve ser colocada filosoficamente, como uma condição para que a prática científica possa ter o valor de sua liberdade.

    Se a aposta originária do Iluminismo incluía a formação ética da pessoa pelo valor pedagógico da ciência, a práxis tecnocientífica corrente nos centros universitários e institutos de pesquisa da modernidade contemporânea dá cotidianas evidências de não corresponder a isso. Atribuir a tal práxis uma potência etizante da vida seria mais que uma enganosa ilusão, uma verdadeira empáfia. Mas se hoje a formação tecnocientífica não se deixa imediatamente identificar com uma etização do caráter da pessoa, tampouco devemos desistir de dar ao vínculo entre ciência e vida aquela efetividade que Wilhelm von Humboldt (3) queria associar à "idéia moral", pois podemos, pelo menos, não abrir mão do empenho por unir os efeitos da cientifização das condições de vida com as virtudes da cientificidade: modéstia, prudência, objetividade, crítica e autocrítica. Isso pode e deve permanecer parte vinculante da pedagogia da "razão razoável". E justamente "razoável" por não pretender fazer da objetivização do racional a razão de ser de toda realidade.

    Num escrito de 1982 (revisado e modificado em 1990) Edgar Morin escreveu: "...sabemos cada vez mais que as disciplinas se fecham e não se comunicam umas com as outras. Os fenômenos são cada vez mais fragmentados, e não se consegue conceber a sua unidade. É por isso que se diz cada vez mais: ´façamos a interdisciplinaridade´. Mas a interdisciplinaridade controla tanto as disciplinas como a ONU controla as nações. Cada disciplina pretende primeiro fazer reconhecer sua soberania territorial, e, às custas de algumas magras trocas, as fronteiras confirmam-se em vez de se desmoronar" (4).

    Para além das querelas, mais ou menos formais, sobre a superação da mera interdisciplinaridade pela transdisciplinaridade como a tarefa epistemológica premente no nosso tempo, o texto se ocupava fundamentalmente com duas questões: a necessidade de pensar/repensar o saber, "... no atual estado de proliferação, dispersão, parcelamento dos conhecimentos"(5), e afirmação do desafio epistemológico da complexidade, cuja problemática era então identificada como ainda "... marginal no pensamento científico, no pensamento epistemológico e no pensamento filosófico"(6). O escrito de Morin era, também, um libelo contra a racionalização da racionalidade, e o empenho por fazer com que "... tudo aquilo que, na história humana, é ruído e furor, tudo aquilo que resiste à redução, passe pela trituradora do princípio de economia-eficácia" (7).

    Em convergência com as proposições da chamada Escola de Frankfurt e as advertências de Herbert Marcuse dos riscos de emergência de um homem unidimensional (8), Morin afirmava o risco de que o desenvolvimento econômico-tecnoburocrático das sociedades ocidentais instituísse uma racionalização instrumental transformada em fim em si mesma e valor mais alto da ordem social (9). Paralelamente, expunha uma apologia da razão aberta, em contraposição ao caráter intrinsecamente simplificador da razão fechada até então hegemônica. Para Morin, somente uma racionalidade que recupere sua aptidão de "abertura para o mundo" pode estar à altura dos complexos desafios de nosso tempo.

    É certo que não é apenas na contemporaneidade que o poder se expressa na aptidão para provocar transformações e na consciência da vontade. Essa característica ultrapassa a datação histórica e pressupõe a liberdade humana de superar a "cega" inserção no contexto fenomenal primário e a vigência elementar da causalidade, para ousar uma dotação de sentido (10). É assim que o poder humano remete para além da mera efetividade expressa numa obra, num feito ou numa permissão, e abriga em si a indivisível possibilidade de responsabilização pessoal (11). Em outras palavras, o poder humano não é anônimo. Ele se instaura junto à possibilidade de responsabilização de pessoas. Identificar os atos de poder com uma pretensa inocência do criar é um cínico anestesiamento ético-político da coragem responsável. Fazer do sentido do Dever uma enfermidade do moralismo é uma deserção de nossos humanos postos de vigília e uma capitulação de nossa capacidade de resistência e dignidade, fazendo delas não mais que uma névoa de fácil dissipação.

     

     

    O exercício do poder humano é sempre um discernimento de possibilidade e perigos. Os golpes com que as promessas modernizantes feriram o rosto das pessoas humanas, propiciaram, com maior ou menor atraso diante da irreversibilidade das perdas sofridas, despertar a consciência para os danos vinculados às dimensões mais exteriores de suas violências (armas de destruição massiva, degradação ambiental, exclusão social, miséria e morte). Mas ainda é pouca a sensibilidade para o dano mais interior e letal: a desresponsabilização. Que sempre se dá quando não mais agimos, mas somos apenas perpassados por cadeias anônimas de causalidades eficientes.

    Na abertura da razão aberta, proposta por Morin como condição de possibilidade de confrontação com os desafios cruciais de nosso tempo, afirmam-se possibilidades de interlocução, que implicam encontro, diálogo, resposta e responsabilidade. Neste contexto, os reducionismos maniqueístas são de nula serventia. É isso que adverte exemplarmente Hans Jonas: "... num primeiro olhar parece fácil diferenciar entre a técnica promotora do Bem e a nociva, se considerarmos apenas os fins da utilização das ferramentas. Arados são bons, espadas são ruins. Na era messiânica as espadas são transformadas em arados, ou, traduzido em termos da tecnologia moderna: bombas atômicas são más, mas fertilizantes químicos, que ajudam a alimentar a humanidade, são bons. Aqui salta aos olhos o dilema mistificador da técnica moderna. Suas ‘legiões de arados’ podem, no longo prazo, ser tão nocivas quanto suas ‘espadas’" (12).

    A imbricação entre ciência e técnica, característica da chamada "evolução" da tecnologia moderna, pode ter sua estrutura formal descrita na terminologia de Galileu Galilei como o empenho por realizar uma sistemática transposição da via resolutiva (ou seja, a análise) para a via compositiva (ou seja, a síntese). O percurso pode ser caracterizado como uma sistemática recomposição artificial do decomposto (ou seja, a produção de novas sínteses). A abertura progressiva dos novos horizontes de factibilidade para a intervenção engenheiral inicia-se no âmbito da mecânica, para progressivamente se ampliar incorporando os da química, da eletrodinâmica, da física nuclear, da informática, da biologia molecular, num processo que parece desconhecer limites e interdições.

    Na instauração desse processo devemos ter em mente que a Revolução Industrial foi uma mudança radical no modo de produção, não apenas a introdução de novos produtos. Mesmo quando os novos teares ingleses, movidos a vapor, ainda produzem os mesmos produtos antigos, são veículos de radicais transformações. Emerge com forte dinamismo um novo setor da economia, produtor dos meios de produção necessários para as novas unidades produtivas, com destaque para os insumos fundamentais: ferro e carvão. As transformações em curso implicam uma intricada rede de inter-relações: extração de matéria bruta, produção de matéria-prima, instrumentalização econômica da energia, transporte, mercado de trabalho. Somente após isso, a inovação pode se instaurar com todo dinamismo nos setores de produção de produtos finais. De início, suprindo ainda as antigas necessidades, até, por fim, atingir a produção artificial de novas necessidades de consumo e dos meios de sua satisfação.

    A química moderna abriu novos horizontes de factibilidade para o novo modo de produção. Emerge um novo ramo industrial como resultado da concretização de possibilidades teóricas de intervenção, na busca consciente de soluções para a substituição artificial-sintética de substâncias naturais escassas e caras. A petroquímica radicaliza o processo, viabilizando a produção de substâncias radicalmente novas, não meras cópias de um modelo de referência tradicional. E a produção do inteiramente novo propicia aplicações inéditas. Esboça-se já a pulsão mais característica da modernidade contemporânea, empreender uma intervenção que atinja "... a infra-estrutura da matéria, pela qual são obtidas, através da reformulação de moléculas, novas substâncias segundo especificações, isto é, com características de utilidade planejadas" (13).

    A estrutura interior da matéria se transforma em objeto de engenharia, isto é, de reconstrução sintética segundo um projeto abstrato. E a indústria elétrica se associa a esse movimento, engendrando uma força universal cuja emergência é fruto de uma possibilidade teórica. Como situa Hans Jonas, "... a eletricidade é um objeto abstrato, não-corpóreo, não-material, invisível; na forma útil de ‘corrente’ ela é inteiramente um artefato, produzido pela transformação sutil de formas grosseiras de energia. Sua teoria teve que de fato estar completa, antes de suas aplicações práticas começarem" (14). O percurso descrito foi levado às últimas conseqüências pela indústria atômica.

    A transição da indústria elétrica para a eletrônica evidencia um novo padrão de expansão dos poderes de intervenção da modernidade: a transição das tecnologias "energéticas" para as "informacionais". Abrem-se novos horizontes de factibilidade para a intervenção engenheiral, ao mesmo tempo em que se insinua uma ruptura civilizatória, dada a radicalidade das transformações aportadas pelas chamadas novas tecnologias nos campos da microeletrônica, robótica, telemática, novos materiais, química fina, engenharia genética, etc.

    Mas a instrumentalização "engenheiral" da informação genética é, hoje, o campo onde a transposição da via resolutiva para a via compositiva atinge certamente maior impacto. Se na engenharia do anorgânico pressupõe-se uma livre disponibilidade da matéria morta para a geração de novas formas, na bioengenharia contemporânea a morfologia dos organismos é o dado pré-existente, cujo "... ‘plano’ (= forma, organização) tem que ser descoberto, não inventado, para então, numa de suas corporificações individuais, se tornar objeto de ‘aprimoramento’ inventivo" (15). E as experiências bioengenheirais não são feitas em modelos protótipos simuladores, passíveis de sucessivos testes e modificações, mas sim requerem disponibilidade sobre os originais, ou, nas palavras de Hans Jonas "... sobre o objeto no sentido mais completo, real e autêntico" (16).

     

     

    Nesse contexto, toda produção de informação tecnocientificamente significativa é uma interferência direta e irreversível: a introdução arbitrária de modificações na cadeia genético-informacional da cobaia. Nesse ato afirma-se uma radical assimetria e unilateralidade de poder do presente sobre um futuro inerme. Diante disso, o mínimo que podemos nos perguntar é: "... qual o direito de alguém para, dessa forma, predeterminar homens futuros; e mesmo que se suponha esse direito, que sabedoria lhe capacita a exercê-lo?" (17). Situação tanto mais crítica e grave quando, o fundamento usual da legitimação dos poderes modernos, a idéia de utilidade para o gênero humano, torna-se absurda; quando o próprio ponto fixo da referência utilitarista, o gênero humano, torna-se variável, objeto da manipulação.

    Tanto as preocupações de Morin com respeito às limitações destrutivas da razão fechada como as advertências de Jonas sobre os riscos de uma espiral cumulativa de poderes tecnocientíficos nutrida por um vácuo ético, podem encontrar significativa ressonância nas proposições de Emmanuel Lévinas, um dos mais notáveis pensadores do final do século XX.

    No limiar dessa confrontação está uma afirmativa apresentada, com incomparável poder de síntese, por Lévinas, "... a teoria do conhecimento é uma teoria da verdade" (18). Diante da simplicidade e da força dessa proposição desfazem-se como quimeras as querelas sobre a suposta potência progressista ou os supostos descaminhos manipulatórios da tecnociência contemporânea. A força da palavra levinasiana reside em não deixar sucumbir no esquecimento o compromisso primordial weberiano da "ciência como vocação".

     

    Roberto Bartholo, doutor pela Universitat Erlangen-Nurnberg, é atualmente diretor de programas da Capes e professor do Programa de Engenharia de Produção da Coppe/UFRJ.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Bacon, F. Nova Atlântida (tradução de José Aluysio Reis de Andrade), in Coleção Os pensadores, Abril Cultural, São Paulo. 1984.

    2. Weber, M. "Wissenchaft als Beruf", in Gesammelte aufsätze zur wissenschaftslehre, Mohr Verlag, J. C. B. Tübingen. 1981.

    3. Bartholo, R. "Solidão e liberdade: Notas sobre a contemporaneidade de Wilhelm von Humboldt", in Bursztyn, M. (org.), Ciência, ética e sustentabilidade. Desafios ao novo século, Ed. Cortez, São Paulo. pp. 43-59. 2001.

    4. Morin, E. Ciência com consciência (tradução de M.D. Alexandre e M.A. Sampaio Dória do original francês revisto e modificado pelo autor, publicado por Arthéme Fayard, 1982 e Éditions du Seuil, 1990), Bertrand Brasil, p. 135. 2001.

    5. Morin, E. idem, p. 137.

    6. Morin, E. idem, p. 175.

    7. Morin, E. idem, p. 160.

    8. Marcuse, H. The one-dimensional man. Studies in the ideology of advanced industrial society. Beacon Press, Boston. 1991.

    9. Morin, E. op. cit., p. 160-166.

    10. Guardini, R. Das ende der neuzeit – Die macht, Mainz. 1986.

    11. Jonas,H. Das prinzip verantwortung. versuch einer ethik für die technologische zivilisation, Frankfurt am Main. 1979.

    12 Jonas, H. Technik, medizin und ethik. Praxis des prinzips verantwortung, Frankfurt am Main, p.49. 1987.

    13. Jonas, H. idem, p. 34.

    14. Jonas, H. idem, p. 36.

    15. Jonas, H. idem p. 165.

    16. Jonas, H. idem, p. 166.

    17. Jonas, H. idem p. 169.

    18. Lévinas, E. "Martin Buber and the Theory of Knowledge", in Schilpp, P. A. e Friedman, M. (org.) The philosophy of Martin Buber, Open Court, LaSalle, Illinois. 1991.