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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.1 São Paulo ene./mar. 2005

     

    Cinema

    NINA, UMA VERSÃO BRASILEIRA PARA CRIME E CASTIGO

     

    A estréia do diretor Heitor Dhalia em seu primeiro longa-metragem aconteceu no circuito alternativo de exibição nas principais capitais brasileiras, no final do ano passado, trazendo premiações de mostras internacionais que participou.

    Enfrentar o desafio de adaptar uma obra com a densidade da matriz russa de Crime e castigo, o clássico de Dostoievski, não intimidou o diretor. Nina ganhou o prêmio da crítica em Moscou por conseguir capturar a atmosfera psicológica da obra original, em sua atualização para uma metrópole urbana como São Paulo.

    Nascido em Recife, Dhalia chegou a São Paulo em 1993, onde se fixou, desenvolvendo uma carreira profissional como redator publicitário. Sua passagem para o cinema deu-se gradualmente: como assistente de Aluízio Abranches no filme Um copo de cólera; depois como roteirista de As três marias; e, finalmente, como diretor do curta-metragem Conceição.

    "Jamais teria a pretensão de adaptar Dostoievski. Vejo o meu filme Nina como um caderno de anotações sobre Crime e castigo, me sinto como um estudante de pintura que vai ao museu e, fascinado por um quadro do Rembrandt, tenta captar de alguma maneira a essência do gênio em seu pequeno bloco de esboços". Dhalia diz que buscou levar ao filme a estética do contraste do desenho, do claro e escuro, sem qualquer influência de sua experiência com a linguagem publicitária, refutando a crítica que recebeu de um jornal paulistano. "Fiz um filme com planos fechados, escuro, denso e psicológico, sem concessões e com clara influência do expressionismo alemão e russo. Numa linguagem fragmentada e rápida, é um filme pesado que mantém o fio de tensão dramática esticado do começo ao fim".

     

     

    Nina inicia com a paráfrase do estudante pobre Raskolnikóv, que desenvolve uma teoria que divide os homens entre "ordinários" e "extraordinários", uma escolha que foi bastante elogiada por onde o filme já passou no exterior. A aliança harmoniosa que consegue com o desenho de Lourenço Mutarelli, que antecipa os delírios de Nina, ela também uma desenhista no filme, é outra solução feliz que o diretor conseguiu, ao aliar a estética dos cartuns à narrativa do filme.

    O CLIMA "Vivi seis meses no centro paulistano, no ambiente retratado pelo filme e o que vi, uma população desesperada, é muito similar aos personagens de Dostoievski em toda a sua miséria na São Petersburgo do século XIX". Lembrando sua formação, com a forte presença do avô o incentivando a ler os clássicos da literatura, percebe que esta influência foi decisiva para encarar tal desafio, assim, logo em sua estréia em um longa-metragem.

    A trajetória internacional do filme tem suscitado reações variadas, com sucesso de público inesperado em países, como a Coréia e a Rússia. Com Nina, Dhalia pretendeu reafirmar sua convicção no cinema de autor. Cria situações bastante diferentes da matriz original da história – a personagem principal é mulher, o desenho antecipa seus delírios e explica o estado limite de sua insanidade. Porém, o diretor se aproveita, também, de elementos do romance como na cena em que o cavalo é espancado, uma citação direta de Crime e castigo, e que se constitui no gatilho para o assassinato que vai ocorrer.

    Toda a narrativa do filme é afetada pela doença mental de Nina, situação posta desde o início e que interfere no que é falso e verdadeiro na história. O peso da culpa está presente na ação, nos personagens imaginários acusatórios que vão surgindo no filme. O cartunista Lourenço Mutarelli declara que gostou da experiência de ser dirigido por um cineasta em sua produção, e entrou na cabeça de Nina desde o início de seu trabalho. Ele já tem 11 álbuns distribuídos no exterior e pretende trabalhar com mais intensidade com o cinema. Seu traço em nanquim é um forte relato do que se passa na cabeça da personagem principal e imprime o clima desejado pelo diretor.

    O roteirista Marçal Aquino seguiu à risca o que dizia Fellini – a melhor imagem é a da lembrança – e decidiu não reler o clássico Crime e castigo, que conheceu em sua leitura de adolescente aos 16 anos. "Ao escrever um roteiro, parto sempre do que pretende o diretor ao abordar um livro. É com base nessas intenções (no olhar escolhido) que se definem os cortes, acréscimos (de situações e de personagens). Com Nina foi exatamente assim". De cara, a primeira mudança do diretor, de tornar o personagem central, Raskolnikóv, na mulher atormentada Nina, já foi estimulante, diz Aquino.

    "O que interessava era o olhar proposto pelo Heitor, que queria acima de tudo captar a atmosfera do livro, deixando de lado, onde julgássemos necessário, a trama e personagens originais. Num primeiro momento, nossa abordagem foi absolutamente livre". Nas versões subseqüentes do roteiro, ele optou por aproximar-se outra vez do livro, resgatou algumas situações narradas por Dostoievski e inseriu-as no filme, mantendo sempre a liberdade. "Vejo Nina muito mais como um comentário sobre Crime e castigo do que propriamente uma adaptação", considera Aquino.

    Aquino iniciou sua carreira como jornalista, antes de se dedicar à literatura e ao cinema. Entre seus principais contos estão Faroestes (2001) e Famílias terrivelmente felizes (2003). Atuou como roteirista, em parceria com Beto Brant, nos filmes Os matadores, Ação entre amigos e O invasor, este último baseado em novela do mesmo nome, de 2002.

    Dhalia pensou em dirigir o filme, a partir de uma escolha: a atriz Guta Stresser, que viveria a personagem principal e cujo trabalho conhecera no teatro, em uma peça do Hector Babenco. "Ela me impressionou por sua vontade de correr riscos".

    Antes dos ensaios e da filmagem, durante três anos discutiram o roteiro e a complexidade psicológica da personagem.

     

     

    Outra figura fundamental para a dramaticidade que o filme alcança é o desempenho da atriz Myriam Muniz como Eulália, a velha avarenta que explora e tortura Nina. Foram anos de palco, desde o Teatro Oficina e na interpretação de clássicos como Shakespeare, Molière, Gogol até autores brasileiros como Dias Gomes, Augusto Boal, para a atriz chegar à síntese da crueldade em Eulália, criada com brilhantismo pela fundadora do Teatro Escola Macunaíma.

    A atmosfera opressiva e paranóica do livro, de culpa sem possibilidade de expiação, é novamente revista com intensidade nos becos do centro paulistano. Aquino diz que, ao optar por não reler o romance, foi possível trabalhar somente com a lembrança, e mergulhar no clima da narrativa do escritor russo – "o episódio do cego, um dos primeiros que propus, é um bom exemplo dessa liberdade de abordagem. Posteriormente, nos tratamentos subseqüentes – acho que foram onze, no total – a opção foi por se aproximar um pouco mais do livro, recuperando alguns episódios narrados pelo escritor, mas sempre pelo viés de nossa personagem".

    Quanto aos cartuns, Aquino assinala que eles já estavam previstos desde a hora zero do roteiro. "O Heitor imaginou que a Nina tinha contato com o Japão a partir de seus desenhos (era uma leitora voraz de mangás) e também de um namorado japonês, que retornava a Tóquio. Por fim, o namorado ficou de fora, mas a idéia de que ela desenhasse permaneceu". Ele acrescenta que se previu, desde o início, inserir animações que mostrassem como a Nina se via, em delírio, assassinando Eulália. "Perto da versão final do roteiro, apresentei Lourenço Mutarelli ao Heitor. Ele não só se encantou pelo O cheiro do ralo, livro de estréia do Lourenço, como convidou esse grande artista a fazer as animações. Deu no que se pode ver no filme". Trata-se de uma aliança perfeita de duas linguagens, estéticas que se complementam.

     

    Wanda Jorge