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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.2 São Paulo abr./jun. 2005

     

     

    O principal desafio do século XXI
    José Eli da Veiga

     

     

    Quem não quer desenvolvimento sustentável? Basta fazer esta pergunta para perceber que a noção desfruta de uma unanimidade só comparável à felicidade ou ao amor materno. Como costuma acontecer nesses casos, a dificuldade de conceituar faz com que pululem definições. E muita gente passa a se perguntar o que realmente pode haver de válido, sério e objetivo nessa expressão, para além das ilusões que ela inevitavelmente difunde.

    Com certeza, o desenvolvimento sustentável é um dos mais generosos ideais surgidos no século passado. Só comparável ao, bem mais antigo, anseio por justiça social. Ambos são valores fundamentais de nossa época, por exprimirem desejos coletivos enunciados pela humanidade ao lado da paz, da democracia, da liberdade e da igualdade. Mas também é uma noção nebulosa e ambígua, que precisa ser dissecada. Que exige exame minucioso dos argumentos científicos disponíveis sobre seus dois componentes: o substantivo desenvolvimento, e o adjetivo sustentável. Para, só depois, se poder interpretar o sentido histórico da junção política desses dois termos na formação do mágico binômio.

    Essa é a viagem proposta neste artigo: mostrar que a necessidade de colocar o qualificativo "sustentável" depois do substantivo "desenvolvimento" refletiu, em última instância, o crescente esgotamento de um dos principais valores dos tempos modernos, e não uma mera insuficiência da idéia de desenvolvimento (1). Uma tese que pode aqui ser apresentada em breves respostas a três perguntas: Por que o desenvolvimento é uma utopia? Por que a utopia do desenvolvimento é insustentável? Será que a noção "desenvolvimento sustentável" aponta para o surgimento de uma nova utopia?

     

     

    POR QUE O DESENVOLVIMENTO É UMA UTOPIA? Em seu entendimento mais comum, "utopia" é algo fantasioso ou quixotesco. Os dicionários a apresentam como antônimo de "realidade" e sinônimo de "ilusão" ou "sonho". Claro, não é nesse sentido que se pode considerar o desenvolvimento como utopia. Mas sim em seu sentido filosófico contemporâneo: a visão de futuro sobre a qual uma civilização cria seus projetos, fundamentando seus objetivos ideais e suas esperanças.

    Assim entendida, talvez não haja idéia que mais tenha concentrado a utopia da sociedade moderna do que a noção de desenvolvimento. De Marx a Hayek, passando por todas as nuances socialistas e liberais, dificilmente se encontrará uma esperança mais consensual do que o desenvolvimento. Em 1867, no primeiro prefácio de O Capital, Marx advertia que o país mais desenvolvido mostra aos que o seguem a imagem se seu próprio futuro. Quase um século depois, o balanço feito por Hayek foi o seguinte: mesmo que se deva deplorar alguns traços do desenvolvimento, como certos valores estéticos e morais, sob o prisma do padrão de vida das amplas maiorias desprivilegiadas não resta dúvida de que a tendência foi para muito melhor.

    As duas visões ilustram bem o quanto a noção de desenvolvimento está ligada ao fenômeno industrial. Até hoje, não existiu diferença entre industrialismo e desenvolvimento. Pode-se dizer, inclusive, que o liberalismo e o socialismo foram as duas faces ideológicas dessa mesma moeda. E é essa a utopia que entrou em crise depois de ter prestado grandes serviços, por dois séculos, aos mais diversos tipos de formações sociais.

    No chamado Norte, a crise da utopia industrialista já é profunda, mesmo que nos países do Sul ela certamente ainda possa ter muito futuro. E é crucial conhecer as razões de seu desabamento nos países do chamado núcleo orgânico.

    A indústria não poderia ter se afirmado sem a crescente racionalização do trabalho. Não faz mais do que uns duzentos anos que o trabalho é considerado simultaneamente um dever moral, uma obrigação social e caminho natural da realização pessoal. Essa chamada "ética do trabalho", que impregnou todas as sociedades modernas, tem três grandes alicerces: (a) quanto mais um indivíduo trabalha, mais ajuda a melhorar a vida da coletividade; (b) quem trabalha pouco ou não trabalha, prejudica a comunidade e não merece respeito; (c) quem trabalha direito acaba tendo sucesso e quem não o alcança é por sua própria culpa.

    Acontece que essa ética está caducando. Deixou de ser verdade que para produzir mais é necessário trabalhar mais. Foi-se o tempo em que produzir mais significava, quase sempre, viver melhor. No chamado Primeiro Mundo já foi rompida essa ligação entre mais e melhor. As necessidades básicas dessas populações estão fartamente atendidas, e muitas das necessidades ainda insatisfeitas não exigem que se produza mais, mas sim que se produza de outra maneira, outra coisa ou até que se produza menos.

    POR QUE A UTOPIA DO DESENVOLVIMENTO É INSUSTENTÁVEL? Paradoxalmente, foi onde e quando se vislumbrou a superação do tão falado "reino da necessidade", que se constatou que o planeta Terra está ameaçado, sendo preciso "salvá-lo". Mas esse anseio de salvação entra em choque com a utopia desenvolvimentista. Percebeu-se que haveria drástica quebra de resiliência ecossistêmica do planeta se muitos povos pudessem gozar dos atuais padrões de vida norte-americano, japonês ou europeu. Taxas de crescimento econômico semelhantes às da "Era de Ouro" (1948-1973) certamente teriam conseqüências irreversíveis e catastróficas para o ambiente natural do planeta, incluindo a humanidade que é parte dele. Não destruiria a Terra, nem a tornaria inabitável, mas certamente mudaria o padrão de vida na biosfera, e poderia muito bem torná-la inabitável para a espécie humana.

    É essa a contradição que está na base da noção de desenvolvimento sustentável. Procura-se uma solução de compromisso entre o industrialismo ainda exigido pela periferia e o pós-industrialismo já inaugurado no centro. Sejam quais forem os termos desse compromisso, uma coisa é certa: a velha utopia industrialista não é mais sustentável.

    ATÉ QUE PONTO A NOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL APONTA PARA O SURGIMENTO DE UMA NOVA UTOPIA? Os promotores das políticas ecológicas estão cobertos de razão. No médio prazo, o desenvolvimento deve ser adequado à ambição de que no longo prazo haja compatibilidade entre a humanidade, os recursos que ela consome e o efeito de suas atividades sobre o meio ambiente. Ninguém sabe ao certo como se deve fazer isso. Em que níveis de população, tecnologia, e consumo tais combinações se tornariam possíveis? Especialistas podem até dizer o que é imprescindível para que se evite uma crise irreversível. Mas o problema da sustentabilidade é tanto de ciência e tecnologia quanto político e social.

    A presente situação é muito semelhante à do início das sociedades industriais, quando saint-simonianos, fourieristas e owenistas profetizavam e tentavam antecipar inúmeros aspectos da modernidade. Nos últimos três ou quatro decênios houve uma intensa ressurreição do pensamento utópico. A produção intelectual que procura antever a natureza da próxima etapa histórica tem sido tão abundante que já virou lugar comum dizer que se vive na "aurora de uma nova era", rotulada de "pós-industrial", "pós-moderna", "pós-fordista", ou com muitos outros artifícios do gênero.

    Em meio a tais linhas especulativas, o que parece se destacar é uma forte visão convergente de que as sociedades industriais estão, de fato, entrando em nova fase de sua evolução. E que essa transição será tão significativa quanto aquela que tirou as sociedades européias da ordem social agrária e levou-as à ordem social industrial. Ao mesmo tempo, as diversas versões sobre o "desenvolvimento sustentável" estão muito longe de clarificar essa nova utopia de entrada no terceiro milênio.

     

    José Eli da Veiga é professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP, www.econ.fea.usp.br/zeeli

     

     

    NOTA

    1. Idéia aprofundada de outras maneiras em três livros recém-lançados: Desenvolvimento sustentável – O desafio do século XXI (RJ: Ed. Garamond 2005), Do global ao local e A história não os absolverá...Nem a geografia (Campinas: Ed. Autores Associados, 2005).