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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.2 São Paulo Apr./June 2005

     

    APRESENTAÇÃO

    BRASIL: PAÍS MULTILÍNGÜE

    Eduardo Guimarães

     

     

    O Brasil é um país multilíngüe. Esta característica lingüística é significada politicamente pela tensão histórica entre um imaginário de unidade, comum a um grande número de países contemporâneos, e uma divisão das línguas e de seus falantes. Esse imaginário de unidade é parte da construção das identidades nacionais modernas.

    O objetivo deste número de Ciência e Cultura é apresentar e interpretar o multilingüismo brasileiro com a finalidade de caracterizar sua especificidade, enquanto um fato próprio do funcionamento de relações de línguas. Trata-se, então, de pensar a política das línguas no espaço brasileiro.

    As línguas são afetadas, no seu funcionamento, por condições históricas específicas. Para mim, as línguas funcionam segundo o modo de distribuição para seus falantes. Elas são objetos históricos e estão sempre relacionadas inseparavelmente daqueles que as falam. É por isso que as línguas são elementos fortes no processo de identificação social dos grupos humanos. Isto caracteriza o que é, para mim, o espaço de enunciação.

    Para falar dessa distribuição das línguas para seus falantes, podem ser consideradas algumas categorias normalmente usadas de modo, às vezes, tácito e não definido. Vou apresentar quatro dessas categorias, dando delas uma definição mesmo que provisória. Língua materna: é a língua cujos falantes a praticam pelo fato de a sociedade em que se nasce a praticar; nesta medida ela é, em geral, a língua que se representa como primeira para seus falantes. Língua franca: é aquela que é praticada por grupos de falantes de línguas maternas diferentes, e que são falantes dessa língua para o intercurso comum. Língua nacional: é a língua de um povo, enquanto língua que o caracteriza, que dá a seus falantes uma relação de pertencer a esse povo. Língua oficial: é a língua de um Estado, aquela que é obrigatória nas ações formais do Estado, nos seus atos legais. Pode-se ver que as duas primeiras categorias tratam das relações cotidianas entre falantes e as duas seguintes de suas relações imaginárias (ideológicas) e institucionais.

    Do ponto de vista dessas definições, a língua materna de um grupo de falantes não é necessariamente igual à língua nacional, ou oficial desse mesmo grupo. Sequer a língua nacional é necessariamente igual à língua oficial.

    Feita essa caracterização, pode-se considerar que o espaço de enunciação é o modo de distribuir, segundo as definições acima, as línguas em relação. E esse modo de distribuição é elemento decisivo do funcionamento de todas as línguas relacionadas. Esta distribuição das línguas para seus falantes é sempre desigual. O espaço de enunciação é, assim, político.

    Como dissemos, o fato de as línguas se dividirem no espaço de enunciação em que funcionam faz parte do modo como se modificam e se tornam outras. Na história dos estudos desses resultados das relações de línguas, a lingüística passou a considerar dois casos de modo específico, os pidgins e os crioulos. Os pidgins são línguas resultantes de uma relação de línguas diferentes e que funcionam entre falantes de línguas maternas diferentes para as finalidades específicas dos contatos entre eles. Os crioulos são também línguas resultantes de uma relação de línguas diferentes e que se estabilizam como língua materna de um grupo específico de falantes. Deste modo o crioulo passa a ter um funcionamento generalizado que pode chegar a ser como o das línguas que o produziram.

    O espaço de enunciação do Brasil tem suas particularidades. Nele funcionam o português, língua oficial e nacional e língua materna da grande maioria dos brasileiros, línguas indígenas, línguas de imigração, línguas de fronteira, e, mesmo que precariamente, línguas africanas. Mas essas línguas, ao funcionarem nesse espaço específico, se modificam em virtude das relações particulares que têm, em virtude da relação de seus falantes uns com os outros. Entre essas histórias de relações, podemos destacar a do português com as línguas indígenas, a do português com as línguas africanas, a do português com as línguas de imigração, e a do português com as línguas de países vizinhos (1).

    O conjunto de textos que constituem este Núcleo Temático mostra como o português, dado como língua materna do Brasil, não é necessariamente língua materna de todos os brasileiros, embora seja sempre, para todos, a língua nacional e oficial do Brasil, mesmo para os que não a falam. Por outro lado, ela está em relação com um grande número de línguas de modos bastante diferentes. A característica fundamental desse conjunto de relações é que o português, enquanto língua oficial e nacional, e enquanto o imaginário de unidade, sobrepõe seu caráter de língua oficial e nacional ao de língua materna, e é distribuído para seus falantes como politicamente dominante. Isto faz com que a distribuição das outras línguas para seus falantes seja significada por um caráter de "inferioridade".

    No primeiro texto, "A língua portuguesa no Brasil", procuro apresentar uma história específica do português no Brasil, que se constitui primeiro como língua oficial, depois como língua nacional e, assim, como língua materna da maioria dos brasileiros. Detenho-me também, em algumas características do português brasileiro tomadas de um ponto de vista de uma diferença, em bloco, com o português europeu (de Portugal) (2).

    Em seguida, Eni Orlandi, em "A língua brasileira", reflete, de um ponto de vista discursivo, sobre a questão do imaginário da língua nacional que se apresenta em torno do nome da língua: brasileira ou portuguesa. Está no centro dessa questão a constituição de uma língua nacional para o Brasil.

    No terceiro texto, "Variedades do português no mundo e no Brasil", Emilio Pagotto mostra a história de relações e mudanças do português no mundo e no Brasil, apontando para o fato de que o próprio português no Brasil não é uno, homogêneo, estando exposto às mudanças próprias dos processos lingüísticos.

     

     

    Em "Sobre as línguas indígenas e sua pesquisa no Brasil", Aryon Rodrigues nos dá uma visão geral da história do conjunto das línguas indígenas brasileiras. Primeiro aborda o quadro das línguas no início da colonização portuguesa e, em seguida, na atualidade. Completa seu texto uma apresentação da área de pesquisa sobre línguas indígenas no país.

    Carlos Vogt e Peter Fry, em "As formas de expressão na 'língua' africana do Cafundó", apresentam as características de uma língua resultante da relação de línguas africanas com o português, a língua do Cafundó. Como os próprios autores referem, as línguas africanas não permaneceram no uso corrente, no Brasil, ficando somente presente em funcionamentos rituais. Essa língua do Cafundó, no entanto, tem um funcionamento não ritual, mesmo que restrito.

    A história da relação das línguas indígenas e africanas com o português está ligada a um processo caracterizado pela proeminência política, de poder, da língua portuguesa relativamente a esse conjunto de línguas. Como dissemos acima, o português é a língua do Estado, estabelecida como língua oficial, já no período de colonização. A partir do século XIX esta língua passa a ser também a língua nacional e, mais que isso, é significada como língua materna de todos os brasileiros, mesmo que não o seja de fato. Quanto às línguas africanas, há algo a mais, ligado a seu modo de presença no Brasil, eram línguas cujos falantes eram escravos e, assim, excluídos do direito de falar em público.

    Passamos em seguida a uma outra dimensão do multilingüismo brasileiro: as línguas de imigração. Este é o objeto de "Línguas de imigrantes" de Carmen Zink e Maria Onice Payer. Essas línguas têm com o português uma outra relação, são línguas nacionais nos países de origem dos imigrantes e seus falantes vêm para o Brasil para atividades absolutamente integradas ao sistema produtivo brasileiro. Disto resulta variadas formas de convivência dessas línguas com o português.

    O último texto, "Línguas de fronteira: o desconhecido território das práticas lingüísticas nas fronteiras brasileiras" de Eliana Sturza, traz uma outra realidade: a das relações internacionais entre países de línguas diferentes. Nesse texto são tratadas as questões dessas línguas de fronteira resultantes de um embate lingüístico muito particular, ligado à própria história da constituição do Brasil. E, assim, vamos ver que o português é também falado em outros países da América Latina.

    O conjunto dos textos aqui reunidos faz-se de pontos de vista teóricos não-homogêneos, o que traz para a reflexão, além de um conjunto de conhecimentos estabelecidos sobre a questão, um debate interessante sobre a própria natureza desse fato aqui abordado, a questão do funcionamento das línguas em espaços multilíngües. Por outro lado, chegamos a uma possibilidade de acompanhar como a tensão entre a unidade e a diversidade lingüística tem muitos aspectos a serem considerados, sendo um domínio extremamente rico para pensar a linguagem e o Brasil. E mostra também o quanto a discussão sobre esses aspectos lingüísticos é muitas vezes reduzido, por um olhar normativo pobre sobre o funcionamento histórico das línguas, a um mínimo desprovido de maiores interesses.

    A complexidade das condições de funcionamento histórico das línguas no espaço de enunciação brasileiro pode ser seguido, de um lado, pelo fato de que se transporta uma língua de um espaço a outro, e assim sua situação enunciativa é outra, sua relação com a realidade é outra (tal como nos mostra Orlandi), ao mesmo tempo ela entra em contato com outras línguas e seus falantes (é o que nos traz de modos diferentes Rodrigues, Vogt e Fry, de um lado, e Zink, Payer e Sturza, de outro), e tudo isso tem a ver com as mudanças que ela sofre e com as divisões que acabam por afetá-la (tal como mostram Pagotto e Guimarães).

    Se os textos aqui trazidos dão conta de um importante conhecimento sobre a história do funcionamento das línguas no Brasil, mostram, também, como há coisas importantes a fazer nesse domínio, como refletir sobre questões teóricas que podem nos levar, pela própria especificidade das perguntas a responder no espaço brasileiro, a novos modelos de compreensão e explicação desse fato fundamental da história das línguas: elas estão sempre em relação e sempre se tornam outras. Nós, enquanto falantes, é que não vemos isto, pois estamos tomados no interior do próprio processo.

     

    Eduardo Guimarães é professor titular de semântica do Departamento de Lingüística e pesquisador do Laboratório de Estudos Urbanos da Unicamp; é membro da diretoria da Anpoll e pesquisador 1B do CNPq.

     

     

    NOTAS

    1. Esta questão tem sido objeto de atenção da Enciclopédia das Línguas do Brasil - www.labeurb.unicamp.br/elb.

    2. Há que se notar que o português é falado também na Espanha, ou ainda em outros países europeus, a partir de imigração portuguesa.