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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.2 São Paulo Apr./June 2005

     

     

    AS FORMAS DE EXPRESSÃO NA "LÍNGUA" AFRICANA DO CAFUNDÓ*

    Carlos Vogt
    Peter Fry

     

    O Cafundó é um bairro rural situado no município de Salto de Pirapora. Está a doze quilômetros dessa cidade, a trinta de Sorocaba e a não mais de cento e cinqüenta quilômetros de São Paulo. Sua população, predominantemente negra, divide-se em duas parentelas: a dos Almeida Caetano e a dos Pires Pedroso (1). Cerca de oitenta pessoas vivem no bairro. Destas, apenas nove detêm o título de proprietários legais dos 7,75 alqueires de terra que constituem a extensão do Cafundó. São, conforme voz corrente na comunidade, terras doadas a dois ancestrais escravos de seus habitantes atuais pelo antigo senhor e fazendeiro, pouco antes da Abolição, em 1888. A doação feita às duas irmãs – Ifigênia e Antônia, que estão na origem das duas parentelas – teria sido muito maior. A especulação imobiliária, a ambição dos fazendeiros circunvizinhos e a falta de documentação legal por parte de seus legítimos donos foram encolhendo a propriedade para as proporções que hoje tem. Nela, seus moradores plantam milho, feijão e mandioca principalmente. Nela, criam galinhas e porcos. Tudo em pequena escala, apenas para atender parte de suas necessidades de subsistência. Fora dela, trabalham como diaristas, bóias-frias e, às vezes, no caso das mulheres, como empregadas domésticas. Assim, participam de uma economia de mercado. Sua língua materna é o português, uma variação regional que sob muitos aspectos poderia ser identificada ao chamado dialeto caipira, tal como o apresenta, por exemplo, Amadeu Amaral (1976). Usam, além disso, um léxico de origem banto, quimbundo principalmente, cujo papel social é, sobretudo, de representá-los como africanos no Brasil.

    Em relação aos usos que ainda se fazem de vocabulários africanos no Brasil, a "língua" do Cafundó mostra um aspecto ativo que esses outros usos, em geral muito cerimoniais, não oferecem. A "língua" do Cafundó é utilizada em situações sociais mais ou menos corriqueiras, de forma que o seu emprego independe de um calendário de festas ou comemorações. A pergunta que imediatamente o leitor deverá estar se fazendo é de que modo, com o vocabulário tão limitado, é possível ser efetivamente ativo nessa língua? O que imediatamente sobressai quando se ouve o pessoal do Cafundó falando "africano" é que as estruturas gramaticais que sistematizam o uso do vocabulário, dando-lhe uma certa consistência de emprego, são estruturas tomadas emprestadas do português.

    Os quinze verbos que integram o vocabulário são todos morfologicamente marcados pela desinência da primeira conjugação, e são flexionados tanto nas formas normais como nas formas propriamente verbais segundo o paradigma dessa conjugação. Além disso, onze dos quinze verbos incorporam no seu radical a forma nominal - cu - que aparece de modo geral nas línguas da família banto.

    Do ponto de vista sintático propriamente dito, esse aportuguesamento se manifesta de várias formas. Transcrevemos abaixo alguns exemplos de frases do Cafundó em que as palavras e os morfemas grifados pertencem ao português:

    1. Vimbundo está cupopiando no injó do tata.
    O homem preto está falando na casa do pai.
    2. O nhamanhara cuendou para cuçumbar a cupópia.
    O homem andou para ouvir a conversa.
    3. O cafombe cuendou da ambara para cunuar avero com nhapecava.
    O homem branco veio da cidade para beber café com leite.

    As variações de tempo na "língua" do Cafundó reduzem-se às formas do pretérito perfeito, do presente e do futuro do indicativo. As duas primeiras recebem as marcas morfológicas características do pretérito perfeito e do presente próprias da primeira conjugação. O futuro é expresso através de uma forma perifrástica, formada pelo auxiliar ir mais o gerúndio do verbo principal. Outra ocorrência que ainda se verifica no Cafundó é o uso desse esquema para expressar também o presente contínuo. Neste caso, o auxiliar é estar e o verbo principal aparece também na forma do gerúndio. As expressões abaixo constituem exemplo desses procedimentos:

    4. Nhamanhara cuendou no ngombe do andaru.
    O homem foi de carro.
    5. Curimei vavuro.
    Trabalhei muito.
    6. O médico é o que cuçumba o maiembe.
    O médico é aquele que receita o remédio.
    7. O delegado fica bravo e cuenda ele pro chitungo.
    O delegado fica bravo e o leva para a cadeia.
    8. No quilombo que vai cuendar.
    No dia que vai vir (amanhã).
    9. Hoje eu vou cuçumbar o mambi no orofim.
    Hoje eu vou passar o machado no mato (cortar lenha).
    10. Angutu está cuendando mafingue.
    A mulher está vertendo sangue (menstruada).
    11. Vimbundo está cupopiando na marrupa.
    O homem preto está falando no sono (está sonhando).

    Outras formas parafrásticas também são utilizadas. Assim, o pretérito perfeito do verbo ir (auxiliar) mais o infinitivo do verbo principal:

    12. Eu fui cuendar.
    Eu fui ir (eu fui).
    13. Ele foi cuendar orofim lá no sengue.
    Ele foi buscar lenha lá no mato.

    Uma variação do presente contínuo é aquela em que o verbo auxiliar aparece no imperfeito:

    14. O cumbe já estava cuendando.
    O sol já estava indo (se pondo).

    Quanto à variação de pessoa, as formas verbais em geral aparecem sistematicamente na distinção de primeira e terceira pessoas do singular, estendidas quando necessário para a expressão das demais pessoas. Todos esses fatos, aqui apresentados de maneira puramente exemplificadora, são, quanto às características gramaticais que os distinguem, próprios não apenas da "língua africana" do Cafundó, mas mais genericamente do português falado na região. Nas gravações que fizemos, os dois verbos mais utilizados e com maior abrangência de significações são em primeiro lugar o verbo cuendar e, em segundo lugar, o verbo coçumbar. As formas perifrásticas com ir e estar são também muito freqüentes.

    Apesar do léxico extremamente limitado, o sistema do Cafundó é vivo e produtivo. Do ponto de vista estritamente lexical, observa-se de fato uma constante expansão do vocabulário através do uso de expressões formadas por processos metafóricos e analógicos. Essa expansão se dá em geral através do uso de palavras do léxico africano, que concorrem para a formação de novas expressões cuja estrutura gramatical é, grosso modo, a de nome + preposição + nome. Para expressar um novo significado, parte-se de um nome e particulariza-se, através do genitivo português, gramaticalmente falando, um novo significado.

    15. tenhora da mucanda
    enxada da escrita (caneta)
    16. cambererá do vava
    carne da água (peixe)
    17. mutombo do injequê
    mandioca do saco (amendoim)
    18. injó da marrupa
    casa do sono (quarto)
    19. ngombe do andaru
    boi de fogo (carro)
    20. nanga do visó
    roupa dos olhos (óculos)
    21. injequê do vava
    saco de água (nuvem)
    22. obiquanga do avero
    tijolo de leite (queijo)
    23. obiquanga do vava
    tijolo de água (sabonete)
    24. sanje do téqui
    frango da noite (morcego)
    25. obiquanga do pepa
    tijolo de farinha (pão)
    26. obiquanga do ture
    tijolo de terra (tijolo)
    27. injequê do andaru
    saco de fogo (panela)
    28. injequê do variar
    saco de comida (panela)
    29. coçumbador do cupópia
    fazedor de fala (língua)
    30. pepa da cuipa
    pó de matar (veneno em pó)
    31. vava do cuipa
    água de matar (veneno líquido)

    Em outras expressões além do esquema gramatical do português, um dos itens lexicais é também tirado dessa língua como, por exemplo, em:

    32. respeito do ngombe
    respeito do boi (arame farpado)
    33. chamar no quinamba
    chamar na perna (levantar e ir embora)

    Em (33) aparece a preposição em, que é também muito freqüente como recurso formador de expressões e de novas significações na "língua africana" do Cafundó. Assim, por exemplo:

    34. tata vavuro no godema
    homem forte no braço
    35. tata vavuro no orongombi
    homem forte no dinheiro (rico)
    36. tata nâni no orongombi
    homem fraco no dinheiro (pobre)
    37. no quilombo que vai cuendar
    amanhã
    38. no quilombo que já cuendou
    ontem
    39. nâni de coçumbar no quinamba
    usar pouco a perna (perto)

    Além desse fenômeno de expansão, a limitação do vocabulário está na base de um outro fenômeno característico da "língua africana" que é o da homonímia bastante generalizada. Além dos verbos que têm significação muito variada, principalmente cuendar e coçumbar, outros itens lexicais apresentam também mais de uma significação, em geral determinada ou pelo contexto mais amplo do uso, ou pelos mecanismos de qualificação dos quais o genitivo é o principal. Assim, caméria significa 'rosto', 'lábio' e 'boca'; mutombo significa 'mandioca', cabeça'; godema significa 'braço', 'mão', 'dedo' e 'medida'; nâni significa 'não', 'perto', 'pouco', 'fraco', 'magro', 'baixo', 'quase', 'menos' e, em geral, tudo que é negativo. Por outro lado, vavuro significa 'sim', 'longe', 'muito', 'forte', 'gordo', 'alto', 'mais' e, em geral, tudo que é positivo. Nâni e vavuro, além de servirem para reforçar a negação e a afirmação respectivamente, são usados como elementos que exprimem a restrição e a ampliação do que se está dizendo. Assim, na expressão

    40. cumbe nâni do téqui

    que significa 'lua nova', o morfema nâni, embora invariável quanto ao gênero e ao número, parecendo ser dessa forma advérbio, funciona como um adjetivo. A tradução literal de (40) seria 'sol pequeno da noite'; a tradução literal de

    41. cumbe vavuro do téqui

    seria 'sol grande da noite', isto é, 'lua cheia'. Outras vezes, através de mecanismos de restrição, como por exemplo em

    42. nhamenhara curima nâni

    cujo sentido literal é 'o homem trabalha pouco', o que se expressa é uma negação, ou seja, 'o homem não trabalha'. Para dizer algo de positivo ou de negativo, muitas vezes basta usar vavuro ou nâni depois de um nome. Em

    43. palulé vavuro

    e em

    44. palulé nâni

    o sentido é respectivamente 'sapato bom' e 'sapato ruim'. O uso de vavuro e de nâni permite também fazer uma outra observação sobre a concordância de gênero na "língua" do Cafundó. Já dissemos que vavuro e nâni mesmo quando usados como adjetivos, são invariáveis. Em muitas expressões há contudo concordância de gênero, concordância esta calcada sobre o gênero da palavra que dá em português o significado da expressão na "língua" do Cafundó. É o que ocorre em mutombo do injequê, tenhora da mucanda, obiquanga do avero. Não é o que ocorre em expressões como sânji do téqui, obiquanga do pepa e injó da marrupa. Os mecanismos de concordância de gênero tendem a obedecer aos padrões do português, embora o que se possa de fato dizer é que eles são bastante aleatórios e que isto talvez tenha a ver com a confluência de dois tipos diferentes de língua na "língua africana" do Cafundó: uma opera a concordância através de prefixos classificatórios (banto) e a outra através de sufixos de 'masculino' e 'feminino', com variações de singular e plural (português).

    Algumas vezes os processos metafóricos de expressão são mais sofisticados, como por exemplo na expressão

    45. o que cuenda vavuro no visó
    o que anda muito nos olhos

    que tanto pode se referir a uma região montanhosa como a um dia claro. A metáfora, como se vê, é constituída sobre a possibilidade de se enxergar à distância. Neste sentido, associa elementos de altura e de luz. Figuras por associação de utilidade, de contigüidade, de funcionalidade, de localização, construídas sobre o universo da experiência do meio rural são também comuns. Assim, a palavra chipoquê significa 'feijão' e a expressão para 'garganta' é

    46. o que cuenda o chipoquê
    o que anda o feijão (o que engole o feijão).

    Neste caso poder-se-ia falar mais apropriadamente de processos metonímicos de expansão do léxico. Sem sombra de dúvida é um processo desse tipo que permite, a partir da palavra chipoquê estender o significado de feijão para a palavra chipocu e com ela significar 'ânus'. A explicação de Otávio Caetano, já falecido e líder na época dos Almeida Caetano, para essa palavra descreve a metonímia de que estamos falando. Segundo ele, chipocu significa 'ânus' porque "ele toma conta do feijão, porque o feijão sai por ali". Da mesma forma, a palavra arambuá significa 'cão' e, metonimicamente, 'rabo', ou vice-versa. Mas a extensão aqui vai mais longe. Quando perguntamos aos Almeida Caetano como era 'nádegas' na "língua", eles nos disseram a mesma palavra arambuá, e Otávio se apressou em dar um exemplo:

    47. cuendar o godema no arambuá do camanaco
    andar o braço no traseiro do menino (bater na bunda)

    Mais uma vez, Otávio se encarregou de explicitar o mecanismo: "Arambuá é bunda porque é a maneira que um cachorro carrega para trás. Ele carrega para trás, né? Daí fica cachorro. Vavuro assim de bunda, daí tratam ela o cachorrão, quando é grande".

    A sintaxe dessa "língua" procede na maior parte das vezes por simples justaposição de palavras invariáveis. Assim:

    48. Nhamanhara nâni de anguto
    homem sem mulher (solteiro)

    49. Anguto nâni de nhamanhara
    mulher sem homem (solteira).

    Esse procedimento, aliado ao recurso constante a figuras de linguagem como a metáfora e a metonímia, torna muitas vezes difícil acompanhar o que é que os moradores do Cafundó estão dizendo, mesmo quando já se conhece o vocabulário e os mecanismos estruturais de sua expansão. É verdade que em várias ocasiões tivemos a impressão de que, falando entre si, eles também não se compreendiam e o uso da língua parecia ser, nessas ocasiões, um exercício lúdico para divertir o pesquisador ou para que eles se divertissem com o pesquisador. Mas o mais provável é que, dadas as características apontadas para essa língua como homonímia, significações metafóricas, eles mesmos tenham dificuldades de detectar imediatamente as intenções do falante e os contextos que permitiriam descodificar adequadamente o que ele pretende dizer. Sempre se chega a esses contextos, não sem passar por uma grande variedade de circunlóquios que dão a impressão de uma verdadeira ciranda de obséquios e de comportamentos rituais ligados às formas de representação de sua "africanidade" e de sua "brasilidade" pela linguagem.

     

    Carlos Vogt é professor titular de semântica do Departamento de Lingüística, e coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp; é presidente da Fapesp e vice-presidente da SBPC.
    Peter Fry é professor titular de antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Foi também professor de antropologia da Unicamp.

     

     

    NOTA

    1. O termo "parentela" traduz a expressão e o conceito em inglês descending kindred, de acordo com o trabalho de Freeman (1961). Refere-se a um grupo corporativo (corporate group), no qual a inclusão dos membros depende, em primeiro lugar, de sua descendência do antepassado fundador (neste caso, Joaquim Congo) e também do fato de seus membros permanecerem moradores nas terras pertencentes ao grupo.

     

    BIBLIOGRAFIA CITADA

    Amaral, A. O dialeto caipira. 3ª edição. São Paulo: Hucitec, 1976.

    Freeman, D. "The concept of the kindred". Journal of the Royal Antropological Institute, vol. 91, Londres, 1961.

     

     

    * Este artigo é uma refusão de parte de capítulos do livro Cafundó – a África no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, de nossa autoria.