SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.57 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.2 São Paulo Apr./June 2005

     

     

    TRÊS POEMAS INÉDITOS DE FLORIANO MARTINS

     

    ESTAÇÕES DO ACASO

     

    Soletro os dias em cada coisa que me olha
    quando me sinto a vê-la. É tudo.
    E não há desculpas para o que faço.

    Rosa Alice Branco

     

    Acender o fogo pela sombra da chama.
    Atear luz no olhar do tempo esquecido.
    Assim um corpo (dela) diz como deseja
    ser escrito pelo outro (dele) que o visita.
    Ensinar ao corpo como sair de si.
    Traçar eqüidistâncias entre as quedas.
    Os pormenores do fogo (ela afiança)
    são o melhor regaço dentro do olhar.
    E o fixa com tanto esmero que as dobras
    do corpo se despem ante o ruído dos passos
    (dela) que são vestígios da sumição
    das roupas (dele). Por onde o enigma
    apura suas harmonias? Por onde um corpo
    aprende a soletrar o outro? (ela não diz)
    Esvaziar a noite de vícios que a definam.
    Deixá-la sem chance de reconhecer-se.
    Estar a esboçar um tratado de trevas
    requer a cegueira precisa em cada afeição.
    Quem plagiaria o suicídio ou a ruína?
    Os dons são mecânicos, uma fábula gasta?
    Na balbúrdia dos corpos descobrindo-se
    um soletra o dia, o outro deslinda a noite.
    Qual risco a língua desenha ao passar
    de uma boca a outra? Não há exatidão,
    exceto no desejo. Um corpo (ela o tenta),
    ao cair no outro, é em si que repercute.
    O amor tateia entre nódulos (ele matuta).
    Uma atração sublime pelas dissonâncias
    parece iludir a queda dos corpos amorosos.
    O que tens no ventre (diz ele) é o abismo
    de que me sirvo para um dia alcançar-me.
    Apenas o acaso resguarda tais planos (ela).
    Os corpos sondam o pendor pelo extremo.
    Atear luz no olhar do tempo esquecido.
    Acender o fogo pela sombra da chama.

     

     

    DUAS MENTIRAS, X

     

    Dissecados ali sobre a mesa: o rosto e a máscara,
    dilema minucioso de interferências de espectros
    cujo juízo não cabe sequer a eles mesmos. Ainda
    que se integre o Diabo aos processos sangrentos
    da Igreja, toda a repugnância virá de Deus,
    pela presunção de que poderia salvar a todos.
    As opiniões suspeitas são filhas da vaidade e não
    há prova em contrário. Ouvíamos Shakti, nossos
    corpos entornados no tapete da sala, o vinho
    de sua saliva embriagando meus mamilos. De qual
    obra tratávamos senão da latitude desses versos,
    do caráter da espátula nas cores que lhes revelam
    os mais secretos dons? Não há destino ou mérito,
    e todo juízo deriva sempre de uma frustração.

     

     

    DUAS MENTIRAS, XVIII

     

    Adoro quando me fotografas nua, inaugurando ângulos insuspeitos. Ver meu corpo assim dobrado
    em elegâncias e desvarios, rindo com o desaparecimento súbito de certos conceitos, como se não
    mais tumultos e assobios nos arrastassem a revolução alguma, perceber como escreves levado apenas
    por um segundo, que não queres construir nada, que isto caberá um dia à tua escrita ou a teus
    leitores, por isto és tão livre para soterrar belezas e pôr em dúvida o fanatismo disfarçado de
    harmonia… De que outra maneira eu leria um manuscrito teu ao lado da câmara digital?
      Eu sempre soube de nossa impossibilidade, mas quis levá-la até o limite porque te amo demais.
    Contudo, indago, se este não é um pastiche do cinema francês que tanto detestamos? Por que agora
    descarnar a lucidez em busca de um palimpsesto da miséria intelectual já compreendida e refutada?
    A nenhum homem entreguei a minha nudez tão sem obstáculo. Ensaiávamos juntos o meu deleite
    quando me agarravas. Tu me amas demais? Insuficientemente de menos? E não conta o quanto eu te
    amo? Queres que eu repita com todo o meu ser o quanto me amas e que até sonhe com isto? E
    quando me darás o teu amor? Empurro-te com o pé e amarroto teu nariz a quase te deixar sem fôlego.
    Eu não quero ter razão, mas sim que te desfaças de tuas migalhas de presunção. Somos apenas o que
    neste instante estamos a ser. Se não compreendes isto, poeta, não terei remorso algum em matá-lo.

     

     

    Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, tradutor, ensaísta e editor. Autor de livros como Alma em chamas (1998), O começo da busca (2001) e Un nuevo continente (2004). Dirige a revista Agulha (www.revista.agulha.nom.br).