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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.2 São Paulo Apr./June 2005

     

     

    RONALD POLITO

     

     

    O SR. K.

     

    Os resultados que alcançou em sua investigação foram não só inconcludentes, como também serviram para tornar as coisas mais incompreensíveis. Sabia que se tratava de um escritor ou funcionário público, sobre o qual pairava a suspeita de que teria conseguido se transformar ou fôra transformado em um inseto, e cujo nome se iniciava com K, ou Ca. Mesmo o nome, nos raros registros documentais que descobriu (sobraram poucos papéis depois das guerras), não era freqüente, ou melhor, para ele era difícil saber se estava reunindo as peças da vida de uma única ou diversas pessoas, pois parecia um caso de ortografia instável. Seus pontos de partida eram frágeis: inicialmente, havia localizado referências a um certo Sr. Kaf[...] (e aí havia uma falha no manuscrito), formado em advocacia e funcionário do Estado; em outro fragmento textual deparou-se com uma alusão a [...]fka, que durante algum tempo teria sido médico em uma aldeia, sem que pudesse concluir com segurança que Kaf[...] e [...]fka eram partes de um mesmo nome e, sobretudo, de uma mesma biografia. Em conseqüência de derivações de letras ramistas, também passou a achar registros de um Sr. Kavka, Cávca, ou Qavqa, havendo mesmo uma ocorrência de Kaphka, o que talvez fosse um erro do copista. Kavka (e variantes) foi o inventor de uma máquina utilizada durante algum tempo, supõe-se, numa colônia penal, sem que se saiba o destino que teve. Vistoriando de novo os papéis, localizou um escrivão chamado Cáfica, que se suicidou após uma discussão com o pai, o que se depreende de um registro de ocorrência policial que foi preservado. E a descoberta de outros maços de papéis só tornou sua investigação ainda mais confusa, com o surgimento de Kfk – ou Kffk, dependendo da transcrição manuseada –, presente em vários diplomas, mas que provavelmente se referia a diversos indivíduos, já que eram muito distintas as informações sobre eles: um trabalhou na construção de uma muralha no Oriente, outro parece ter sido domador de macacos ou ter vivido em um castelo, um terceiro exerceu a profissão de faquir, um quarto não se assemelhava a algo humano (e aqui os relatos são obscuros e truncados), mas a um rato ou mesmo a um bicho maior (há menção a uma toca e a caminhos de fuga que teria construído). Em outro códice, aparece um tal Sr. Cafca – e este é o documento mais estranho que desenterrou dos arquivos. A parte inferior da página que sobrou pode ter pertencido a um depoimento extenso, não se sabe se ficcional, e nela consegue-se apenas ler duas linhas quase apagadas com as palavras: ‘‘[...] ao vê-lo, horrorizada, atirou-lhe uma maçã que o atingiu nas costas quando Cafca se voltou [...]’’. Não havia mais livros para prosseguir a busca, depois de ainda ter identificado em um antígrafo os Srs. Kafika e Káfika, em tudo distintos biograficamente, e sem nenhuma relação com o homem que precisava encontrar. Não sai mais de seu quarto desde que começou a sentir que está se transformando. Assusta-se quando a irmã abre a porta e grita sufocadamente, deixando cair o saco cheio de legumes e frutas, que rolam no chão.

     

     

    Ronald Polito (Juiz de Fora, 1961) é professor do Departamento de História da UFOP. Preparou edições de A Conceição: o naufrágio do Marialva, de Tomás Antônio Gonzaga (Edusp), O Caramuru, de Santa Rita Durão (Martins Fontes), O desertor, de Silva Alvarenga (Ed. da Unicamp) e Considerações sobre a nostalgia, de Joaquim Manuel de Macedo (Ed. da Unicamp). Traduziu do catalão O porquê de todas as coisas, de Quim Monzó (Globo).