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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.3 São Paulo jul./sep. 2005

     

     

     

     

    ANTROPOLOGIA

    Mito ou identidade cultural da preguiça

     

    A imagem de preguiçoso que o baiano tem, seja na literatura ou no imaginário popular, foi construída ao longo da história. Foi este o ponto de partida da pesquisa da antropóloga Elisete Zanlorenzi, em sua tese de doutorado defendida em 1998, na USP, sobre "O mito da preguiça baiana", que deve transformar-se em livro este ano. O interesse pelo tema começou quando Elisete morava em Salvador, entre 1980 e 1984, e acompanhou uma campanha difamatória comandada pela mídia local sobre o movimento do bairro Calabar, criado a partir de uma ocupação na década de 1940 em uma região nobre da capital baiana. "Os moradores batalharam e conseguiram água, esgoto e luz para Calabar. Mas a imprensa mantinha a imagem de que eram vagabundos, preguiçosos e criminosos", lembra Elisete, que focou seu trabalho na representação do trabalho e do tempo.

     

     

    DISCURSO DA ELITE A preguiça baiana foi um perfil construído historicamente e reforçado pela mídia, que reproduz os interesses da elite. Desde o século XVI, a elite local depreciava os negros escravos, descritos como desorganizados e sujos, depois como analfabetos e sem conhecimento, e, finalmente, como preguiçosos. A famosa Ladeira da Preguiça, em Salvador, ganhou este nome por ter sido a via de acesso de mercadorias vindas do porto para a cidade, levadas em carretões puxados a boi e empurrados por escravos. Do alto de seus casarões, ao verem os escravos tomando fôlego para subir com sacos de 60 quilos nas costas, as elites gritavam: "sobe, preguiça! sobe, preguiça!".

    Essa foi uma forma de interiorização da dominação, no período da escravidão. Depois, a depreciação assumiu a forma da exclusão. O mesmo aconteceu com negros, índios e imigrantes nordestinos, nas regiões Sul e Sudeste, quando, a partir da década de 1950, intensificou-se a imigração. A imagem de preguiçoso espalhou-se. Chamados genericamente de "baianos", os imigrantes eram, em sua maioria, mestiços, afro-descendentes, oriundos de fazendas afetadas pela seca e sem qualificação profissional. O nordestino foi responsabilizado por todo o caos urbano sem, ao mesmo tempo, ser lembrado em nenhum projeto de inclusão social.

    "Depreciar era uma forma de justificar baixos salários e falta de investimento", esclarece Elisete. O sociólogo Octavio Ianni (1925-2004), um dos examinadores da banca de doutorado da antropóloga, destacou que a tese mostrava a forma sutil de racismo a negros e nordestinos. "Quando se folcloriza, o discurso se desloca da realidade e ganha vida própria, criando uma força até maior em relação ao discurso inicial", explica Elisete, professora da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-Campinas.

    RITUAIS RELIGIOSOS No candomblé, ela identificou outra raiz dessa imagem, pois é "uma cultura onde o trabalho não se contrapõe ao tempo livre, nem é uma obrigação, como no capitalismo", explica. No candomblé, o trabalho é só um dos aspectos da vida, além do lazer, da família e dos amigos. Na sociedade capitalista chama-se de preguiça o trabalho que não acumula capital. Por esse mesmo motivo, o índio, que produz para a subsistência, também carrega o mesmo estigma de preguiçoso, diz.

    IMAGEM NA MÍDIA Elisete verificou que a preguiça foi associada ao migrante nordestino que, com a construção da rodovia Rio-Bahia, passou a integrar o cenário das grandes cidades do Sul-Sudeste do país. Três grandes jornais da época, ela constata, reproduziam o discurso social mais amplo, reforçando a imagem da preguiça associada a nordestinos. Outra constatação foi que a mídia passou a repercutir o discurso turístico, quando nos anos 1960 o próprio governo baiano passou a explorar a imagem da preguiça. Nessa época, a indústria do turismo investiu no slogan da Bahia paradisíaca, para onde deve ir quem não quer trabalhar, onde a festa nunca acaba e ninguém usa relógio.

    "A preguiça é quase um arquétipo da civilização brasileira", define o professor Marcos Costa Lima, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em Sérgio Buarque de Holanda, essa característica vem de fontes ibéricas.

    Na literatura, Mário de Andrade personificou tudo isso em Macunaíma. Chico Buarque enxergou os mesmos traços no malandro carioca, avesso ao trabalho. Lima lembra ainda de João Ubaldo Ribeiro, em Viva o povo brasileiro, que também fala do nosso perfil preguiçoso. Ariano Suassuna criou personagens avessos ao trabalho em O auto da compadecida. "Esse mito é muito forte, sob o qual vivemos à sombra. É o discurso do colonizador", conclui o professor.

     

    Adriana Menezes