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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.3 São Paulo July/Sept. 2005

     

     

    FÍSICA E HISTÓRIA

    Roberto de Andrade Martins

     

    A física, como todas as ciências, desenvolve-se gradualmente ao longo do tempo, passando por crises, avanços e retrocessos, fracassos e sucessos. A história da ciência procura conhecer e compreender as transformações pelas quais a física passa ao longo do tempo. A versão mais ingênua da história da física é a de que, em certos momentos, aparecem grandes gênios que vêem aquilo que outros não haviam visto, propõem grandes teorias e mudam o desenvolvimento do pensamento humano. Essa é uma visão simplista e equivocada, com importantes conseqüências (negativas) para a compreensão da própria natureza da ciência.

    Este artigo vai utilizar o caso da criação da teoria da relatividade especial como exemplo para tornar patente o equívoco de tal visão simplista. Popularmente, atribui-se a Albert Einstein todo o mérito pela criação da teoria da relatividade. A maior parte das pessoas parece acreditar que foi necessário e suficiente o nascimento desse indivíduo para que brotassem de seu cérebro diversos trabalhos revolucionários.

    O presente trabalho mostrará que a contribuição de Einstein foi um passo dentro de uma fase de complexa evolução da física, que dependeu dos trabalhos de muitos pesquisadores e que tinha atingido um amadurecimento, em 1905, que permitiu o surgimento do trabalho de Einstein. Vinte anos antes disso, nem Einstein nem qualquer outra pessoa poderia ter produzido uma proposta como a dele. Se Einstein tivesse nascido em 1850, por exemplo, ele poderia ter criado outras teorias, em sua juventude – mas não a teoria da relatividade – pois até 1880 faltavam muitos elementos necessários para a criação dessa teoria. Além disso, este artigo mostrará que grande parte daquilo que se costuma atribuir a Einstein foi o resultado do trabalho de outras pessoas.

    Nada do que será apresentado aqui é novo para os historiadores da física – exceto a forma de apresentação aqui adotada (1); mas é relevante apresentar esses fatos para um público mais amplo, de modo a contribuir para uma melhor compreensão das relações entre ciência e história.

    O ELETROMAGNETISMO DE MAXWELL Em 1905, Einstein publicou dois trabalhos que são considerados suas mais importantes contribuições para a teoria da relatividade especial. Nesses trabalhos não aparecia ainda a expressão "teoria da relatividade". Einstein deu a um desses dois trabalhos o título "Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento" (2). Um físico bem informado, em 1905, ao ler esse título, compreenderia que Einstein estava discutindo um assunto que já havia sido abordado por outros autores anteriores (como Heinrich Hertz, Joseph Larmor, Max Abraham e Hendrik Antoon Lorentz); e que, como estes, tomava como ponto de partida o eletromagnetismo de James Clerk Maxwell. A teoria de Maxwell estudava os fenômenos eletromagnéticos utilizando os conceitos de campos elétricos e magnéticos, que eram considerados por ele como propriedades do éter – uma substância física especial, que preenchia todo o espaço.

    Vamos refletir um pouco sobre esse primeiro ponto. O contexto teórico, que Einstein tomou como ponto de partida, era uma teoria formulada 30 anos antes, por Maxwell. Essa não era a única teoria eletromagnética da época; havia outras propostas diferentes, como as de Hermann von Helmholtz e de Wilhelm Weber. Se estivesse se dedicando ao assunto na década de 1870, Einstein provavelmente não optaria pela teoria de Maxwell, que era bastante estranha para os padrões da Europa continental e que não parecia melhor do que as outras. E se Einstein se dedicasse à teoria de Helmholtz ou à de Weber, jamais desenvolveria a teoria da relatividade.

    No final da década de 1880, essa situação mudou. Em 1887, Heinrich Hertz produziu experimentalmente e estudou as propriedades das ondas eletromagnéticas, que haviam sido previstas pela teoria de Maxwell. Essa foi uma importantíssima confirmação da teoria e teve um papel decisivo na crescente aceitação da teoria de Maxwell, nos anos seguintes. Logo em seguida, iniciou-se uma corrida pela utilização prática dessas ondas, para transmissão de mensagens – o telégrafo sem fio. Na década de 1890, a teoria de Maxwell e as ondas eletromagnéticas (ou ondas hertzianas, como eram chamadas na época) não podiam mais ser menosprezadas por ninguém. Porém, se Einstein se dedicasse aos fenômenos eletromagnéticos em 1885, poderia ainda ignorar o trabalho de Maxwell e desenvolver pesquisas em uma direção totalmente diferente da que conduziu à teoria da relatividade. Ele teve a sorte de não nascer 20 anos antes do que nasceu.

    A VARIAÇÃO DA MASSA DOS ELÉTRONS Uma das conseqüências mais importantes da teoria da relatividade foi uma nova dinâmica, na qual a massa dos corpos já não é mais constante e sim uma função da velocidade. Sob o ponto de vista teórico, a idéia de uma massa variável para partículas eletrizadas de alta velocidade surge em 1896, pelos trabalhos de J. J. Thomson, Oliver Heaviside, George Searle e outros. Esse efeito foi deduzido inicialmente como uma conseqüência da teoria eletromagnética de Maxwell.

    A descoberta do elétron data de 1897. Nesse ano, graças aos trabalhos de J. J. Thomson e de Pieter Zeeman, foi identificado um componente sub-atômico presente em todo tipo de matéria. A razão e/m entre sua massa e sua carga foi medida por Thomson e Walter Kaufmann em experimentos de deflexão de elétrons de baixa velocidade; e calculada por Hendrik Lorentz a partir da sua interpretação teórica do efeito Zeeman.

    O estudo de deflexão de elétrons por campos eletromagnéticos exige o uso de dispositivos de alto vácuo, que foram obtidos pela primeira vez por William Crookes, em 1879. Assim, 20 anos antes da descoberta do elétron, nem sequer existiam as condições técnicas para realizar os experimentos com raios catódicos.

    Depois da descoberta do elétron os estudos experimentais se desenvolveram rapidamente. No entanto, não era possível produzir elétrons de alta velocidade (próxima à velocidade da luz) utilizando os recursos experimentais da época. Os dispositivos de alta voltagem existentes no final do século XIX eram capazes de produzir tensões de aproximadamente 25.000 volts, permitindo acelerar elétrons até velocidades de cerca de 30% da velocidade da luz c. Em 1898, Phillip Lenard mediu e/m para raios catódicos com velocidades de até c/3. As medidas sugeriam que a massa dos elétrons variava com a velocidade, mas não eram conclusivas.

    Os primeiros experimentos que mostraram claramente uma variação da massa dos elétrons com a velocidade foram realizados em 1901, por Walter Kaufmann, utilizando raios beta (elétrons de alta energia emitidos por substâncias radioativas). Nesses experimentos, os elétrons tinham velocidades entre 0,8 e 0,9 c. Os experimentos de Kaufmann foram possíveis por causa da descoberta da radioatividade e da compreensão da natureza dos raios beta, que só ocorreu em 1899, graças aos estudos de Ernest Rutherford (que identificou a existência de raios alfa e beta através de estudos de absorção pela matéria) e de Friedrich Giesel (que mostrou que os raios beta podiam ser desviados por campos magnéticos).

    Em 1902, Max Abraham propôs um importante modelo que permitia calcular a relação entre a massa do elétron e a velocidade e que era compatível com os resultados experimentais. Dois anos depois, Hendrik Lorentz apresentou outra proposta, obtendo a equação considerada correta para a variação da massa com a velocidade.

    Einstein conhecia os estudos teóricos e experimentais existentes antes de 1905 a respeito da variação da massa do elétron com a velocidade. Se Einstein tivesse nascido antes e estivesse publicando seus primeiros trabalhos em 1895, teria sido impossível discutir a relação entre a massa e a velocidade dos elétrons – não apenas porque nem se aceitava a existência dos elétrons, mas também porque faltariam, em 1905, os pré-requisitos teóricos e experimentais para se discutir esse efeito.

    A SINCRONIZAÇÃO DE RELÓGIOS Outro aspecto importante da teoria da relatividade é a análise da simultaneidade. Dois acontecimentos que são simultâneos em relação a um referencial podem não ser simultâneos em relação a outro referencial. Em cada referencial inercial, Einstein imaginou uma rede de relógios sincronizados através de sinais luminosos e estudou como essas redes seriam descritas em relação a diferentes referenciais. Henri Poincaré já havia discutido, antes de 1905, a sincronização de relógios por sinais com a velocidade da luz e a relatividade da simultaneidade.

    O historiador Peter Galison mostrou, de forma convincente, que esse aspecto da teoria da relatividade foi fortemente influenciado por preocupações técnicas da época. Por vários motivos práticos, foram criados, no final do século XIX, sistemas de relógios sincronizados através de sinais elétricos. Um relógio central de grande precisão (o relógio mestre) emitia periodicamente impulsos elétricos que eram enviados através de fios (ou, depois, através de sinais eletromagnéticos sem fio) para um conjunto de relógios em diversos lugares (os relógios secundários). Esse tipo de sistema era muito importante para o controle do sistema de trens, por exemplo, que já atingiam na época velocidades superiores a 150 km/h. Era também importante a sincronização de relógios a grandes distâncias, por meio de sinais telegráficos, para determinação precisa da longitude geográfica.

    Em muitos países da Europa estavam sendo montadas redes de relógios elétricos sincronizados. Henri Poincaré, na França, participava dos trabalhos do serviço de longitude. Na Suíça, onde Albert Einstein vivia enquanto desenvolvia seus primeiros trabalhos sobre relatividade, havia uma importante rede de relógios elétricos sincronizados. Além disso, passaram projetos de sistemas de relógios elétricos sincronizados pelo escritório de patentes no qual Einstein trabalhava, na época. Não há dúvidas de que esse desenvolvimento técnico do período levou, naturalmente, à reflexão sobre o processo de sincronização de relógios distantes por meio de sinais com a velocidade da luz, uma idéia que foi incorporada tanto por Poincaré quanto por Einstein à teoria da relatividade. Vinte anos antes, não seria natural pensar a respeito desse tipo de sistema.

    Não se pode dizer que a criação das redes de relógios elétricos distantes sincronizados tenha sido uma condição necessária para o desenvolvimento da teoria da relatividade; mas certamente facilitou o seu desenvolvimento.

    A ATITUDE EMPIRISTA DE EINSTEIN Quase todos os resultados obtidos por Einstein em seu primeiro artigo de 1905 sobre relatividade já haviam sido obtidos antes por Lorentz e Poincaré. No entanto, havia uma importante diferença epistemológica entre Einstein e esses antecessores. Enquanto Lorentz e Poincaré aceitavam a existência de um éter (seguindo as concepções de Maxwell), Einstein negou a validade de se falar a respeito do éter, já que ele era inobservável e (segundo a atitude adotada por Einstein nessa época) a física só deveria tratar de entes e grandezas observáveis e mensuráveis. Essa atitude, que o diferencia fortemente de Lorentz e Poincaré, é uma manifestação clara da posição epistemológica empirista extrema que Einstein adotou durante essa fase.

    Sabe-se como ele adquiriu essas idéias. Antes de escrever seus artigos de 1905, Einstein estudou e discutiu com um grupo de amigos diversas obras sobre filosofia da ciência, dando especial atenção a três autores empiristas – David Hume, Ernst Mach, Karl Pearson. Esses dois últimos foram cientistas/filósofos com grande influência na época, que defendiam que a ciência deveria dedicar-se principalmente a sistematizar dados empíricos através de generalizações, sem tentar descobrir alguma realidade oculta por trás das aparências dos fenômenos. A crítica de Mach às concepções de espaço e tempo absolutos de Isaac Newton teve forte influência sobre o pensamento de Einstein. Outro importante empirista da época, o químico Wilhelm Ostwald, também teve forte influência sobre ele.

    Todas essas obras (exceto a de Hume) são das duas últimas décadas do século XIX. Se não estivesse sob a influência das mesmas, é possível que Einstein tivesse adotado a mesma posição realista dos cientistas mais velhos (como Lorentz e Poincaré), que não viam nada de errado em aceitar a existência do éter. A adoção de uma epistemologia empirista foi uma condição necessária para que Einstein formulasse sua visão da teoria da relatividade; e dificilmente ele adotaria essa postura se tivesse nascido em um tempo anterior e estivesse formulando seu trabalho vinte anos antes.

    EXPERIMENTOS SOBRE O MOVIMENTO DA TERRA Os livros didáticos atuais sempre indicam que o experimento de Michelson e Morley, de 1887, constituiu uma base empírica fundamental da teoria da relatividade especial. Há discussões infindáveis, entre os historiadores da física, sobre se Einstein realmente conhecia esse experimento e lhe atribuía tanta importância assim, em 1905. No entanto, não se pode colocar em dúvida que Einstein sabia da existência de alguns experimentos infrutíferos para detectar o movimento da Terra em relação ao éter e que afirmou, em 1905, que essa era a base do princípio da relatividade: "[...] as tentativas sem sucesso de verificar que a Terra se move em relação ao "meio luminoso" [éter] levaram à conjetura de que, não apenas na mecânica, mas também na eletrodinâmica, não há propriedades observáveis associadas à idéia de repouso absoluto, mas as mesmas leis eletrodinâmicas e ópticas se aplicam a todos os sistemas de coordenadas nos quais são válidas as equações da mecânica [...]. Elevaremos essa conjetura (cujo conteúdo será daqui por diante chamado de "princípio da relatividade") à posição de um postulado [...]" (2).

    Antes do experimento de Michelson e Morley e depois do mesmo, foram realizados vários outros experimentos (utilizando diferentes princípios) para tentar detectar o movimento da Terra em relação ao éter. A quais experimentos estava Einstein se referindo? É difícil dizer. Sabe-se que em 1897 ou 1898, enquanto estudante, Einstein tomou conhecimento de tentativas de detecção do movimento da Terra em relação ao éter e que ele próprio planejou novos experimentos que permitissem fazer esse tipo de medida. Em 1901, ele ainda acreditava no éter e procurava novos meios de detectar o movimento da Terra em relação ao mesmo.

    Para a finalidade do presente artigo, é relevante indicar que, nas duas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos do século XX houve diversos experimentos desse tipo e que esse tema se tornou bastante discutido. Alguns físicos mantinham a opinião de que seria possível fazer esse tipo de medida. Outros (como Henri Poincaré) concluíram, antes de Einstein, que todos os experimentos futuros seriam infrutíferos e que havia uma impossibilidade física de medir a velocidade da Terra em relação ao éter.

     

     

    Poderia alguém ter defendido essa posição em 1885? Muito dificilmente. Naquela época, já tinham sido realizados diversos experimentos ópticos procurando observar efeitos do movimento da Terra em relação ao éter. Alguns deles haviam dado resultados positivos, como o experimento de Fizeau (1859) e o de Ångström, em 1863. Havia uma demonstração teórica de que, de acordo com a teoria do éter de Fresnel, seria impossível detectar efeitos de primeira ordem através de experimentos que envolvessem apenas reflexão, refração e aberração da luz – mas poderiam ser viáveis experimentos de outros tipos. Na década de 1860, Eleuthère Mascart repetiu os experimentos de Fizeau e de Ångström, sem obter resultados. No entanto, no final da década seguinte, Maxwell analisou novos tipos de experimentos e sugeriu que seria viável determinar a velocidade do sistema solar através do éter através de medidas de atrasos dos eclipses dos satélites de Júpiter. Até a década de 1880, a tendência quase unânime entre os físicos era a de que em um futuro próximo seria possível medir a velocidade da Terra em relação ao éter. Apenas na década seguinte, sob o impacto do experimento de Michelson e Morley e alguns outros, começou a surgir a idéia do princípio da relatividade para os fenômenos ópticos e eletromagnéticos sem, no entanto, obter unanimidade.

    A aceitação da impossibilidade experimental de medir a velocidade da Terra em relação ao éter é uma base fundamental da teoria da relatividade; e que essa base não existia em 1885. Mesmo na década seguinte, poucos físicos admitiam essa impossibilidade. Einstein foi capaz de utilizar essa idéia em 1905 sem dar muitas explicações; mas não poderia fazê-lo da mesma forma vinte anos antes.

    AS PROPRIEDADES DINÂMICAS DA LUZ Em 1905, Einstein propôs a proporcionalidade entre energia e massa, estudando uma situação que envolvia emissão e absorção de luz por um corpo material. Nesta e em outras deduções, é necessário pressupor que a luz (ou qualquer outro tipo de onda eletromagnética) transporta pelo espaço tanto energia quanto momentum – ou seja, que a luz tem propriedades mecânicas.

    Até o início do século XIX, quando se admitia que a luz tinha natureza corpuscular, todos acreditavam que ela tinha massa e podia produzir pressão ao colidir contra um corpo material. No entanto, quando se passou a aceitar a hipótese ondulatória da luz, a situação já não parecia mais tão clara. Porém, em seu livro de 1873, Maxwell previu que as ondas eletromagnéticas deveriam exercer pressão tanto sobre corpos refletores quanto sobre corpos que absorvessem a radiação.

    Poucos anos depois, Adolfo Bartoli mostrou, através de um argumento puramente termodinâmico (ou seja, sem utilizar o eletromagnetismo) que a luz deveria exercer pressão sobre uma superfície refletora. Na década seguinte, o argumento de Bartoli foi aperfeiçoado e generalizado por Ludwig Boltzmann (1884). Tanto de acordo com a teoria eletromagnética quanto de acordo com a termodinâmica, a pressão exercida pela radiação incidindo perpendicularmente sobre uma superfície seria igual à densidade de energia da radiação na região diante do espelho. A concordância entre as duas análises deu uma grande confiança à previsão, que foi confirmada experimentalmente em 1901 por Pyotr Lebedew e, independentemente, por Ernest Nichols e Gordon Hull.

    Se admitirmos a lei da conservação da quantidade de movimento, a pressão exercida pela radiação sobre uma superfície deve ser interpretada como uma prova de que a radiação possui uma quantidade de movimento (ou momentum mecânico). Tal conclusão, no entanto, não estava presente no trabalho do próprio Maxwell. Foi J. J. Thomson, em 1893, quem propôs uma relação geral entre o fluxo de energia do campo eletromagnético (dado pelo vetor de Poynting, e a existência de uma densidade de momentum do mesmo campo:

    Nos primeiros anos do século XX praticamente todos os físicos aceitavam a existência de um momentum associado à radiação eletromagnética; e isso permitiu a Poincaré chegar a uma relação semelhante à proporcionalidade entre massa e energia, em 1900, estudando a radiação livre; assim como Fritz Hasenöhrl, em 1904, estabeleceu uma proporcionalidade entre massa e energia para uma caixa contendo radiação. Portanto, em 1905, Einstein podia utilizar esse pressuposto de forma natural. Vinte anos antes, estava começando a ficar clara a existência de uma pressão exercida pela luz. Apenas dez anos antes, no entanto, passou a ser aceita a relação entre fluxo de energia e densidade de momentum. Seria pouco plausível que Einstein (ou qualquer outra pessoa) pudesse apresentar alguma dedução da relação entre massa e energia em 1885.

    O TEMA CENTRAL DA TEORIA DA RELATIVIDADE A teoria da relatividade especial mostra como se transformam as grandezas físicas entre dois referenciais inerciais em movimento relativo, assumindo que as leis básicas da física são as mesmas em todos esses referenciais. É bem conhecido que o trabalho de Einstein não foi o primeiro a fazer esse tipo de análise. O problema básico que está por trás da teoria da relatividade começou a ser discutido por vários físicos depois da proposta do eletromagnetismo de Maxwell. A teoria original admitia a existência de um éter e propunha um conjunto de equações que seriam válidas para um referencial parado em relação a esse éter. Mas quais seriam as equações válidas em outros referenciais?

    Heinrich Hertz tentou resolver o problema supondo que cada corpo material transporta em seu interior o seu próprio éter, de modo que as mesmas equações de Maxwell poderiam ser aplicadas também a corpos em movimento. Lorentz, pelo contrário, admitia que existia um único éter universal, sempre em repouso, que não era transportado pelos corpos. No entanto, tendo se convencido de que não era possível detectar movimentos em relação ao éter, procurou estabelecer as transformações de coordenadas, de tempo e das grandezas eletromagnéticas que mantivessem a validade das equações de Maxwell em todos os referenciais inerciais. Inicialmente (1892 e 1895) ele conseguiu satisfazer essas condições apenas para os casos de pequenas velocidades (ou seja, em primeira ordem de v/c). Depois (em 1904) obteve uma teoria exata (para qualquer velocidade inferior a c). Outros físicos teóricos que desenvolveram trabalhos na mesma direção foram Woldemar Voigt, Joseph Larmor e Henri Poincaré. Estes dois primeiros chegaram a relações praticamente idênticas às transformações de Lorentz para espaço e tempo, antes deste físico. Porém, apenas em 1904 Lorentz obteve uma teoria eletromagnética coerente, com as transformações para as grandezas eletromagnéticas compatíveis com as transformações de Lorentz.

     

     

    Em 1905, a busca de transformações das grandezas mecânicas e eletromagnéticas entre dois referenciais em movimento relativo, compatíveis com o princípio da relatividade, era um tema bem conhecido e que já tinha chegado a resultados sólidos. Dez anos antes, pode-se dizer que o tema não era bem conhecido e que os pesquisadores estavam ainda engatinhando na direção adequada. Em 1885, não existia nem motivação para buscar essas relações (pois o princípio da relatividade ainda não era aceito para o eletromagnetismo) nem se percebia claramente o que deveria ser buscado.

    Assim, em 1905, o trabalho de Einstein estava inserido em uma linha de pesquisa com certa tradição, com uma problemática clara e com bons resultados já atingidos. Vinte anos antes, nem a problemática nem os métodos de abordagem estavam claros. Dificilmente Einstein ou qualquer outra pessoa poderia ter chegado a resultados importantes, naquela época.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS Seria possível multiplicar os exemplos, mostrando que outros aspectos importantes da teoria da relatividade tiveram condições históricas adequadas para se desenvolverem em 1905, mas não poderiam ter surgido vinte anos antes. No entanto, dados os limites de tamanho para o presente artigo, será necessário limitarmo-nos aos exemplos acima.

    Procuramos mostrar que muitas das condições necessárias para o desenvolvimento da teoria da relatividade eram inexistentes na década de 1880. A própria motivação ou problemática para o desenvolvimento de tal teoria não existia ainda. Não havia uma base experimental para o princípio da relatividade na óptica e no eletromagnetismo. Não havia aparelhagem experimental que pudesse permitir o teste da relação entre massa e velocidade. Não existiam os pré-requisitos teóricos necessários para construir a teoria. Não havia sido difundida a visão epistemológica empirista que serviu de base para a rejeição do éter por Einstein. Nas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos do século XX a situação mudou completamente.

    Costuma-se admitir que Einstein realizou seu trabalho apoiando-se sobre os ombros de gigantes que o precederam: Galileu, Newton, Maxwell. No entanto, quando se afirma isso, reforça-se a idéia de que a ciência é feita por grandes gênios, cada um deles superando o anterior. Não é esta a visão que queremos defender aqui. Pelo contrário: procuramos mostrar que o trabalho de Einstein se apoiou sobre os ombros de um grande número de pesquisadores, alguns dos quais totalmente obscuros para a grande maioria dos cientistas de hoje. A evolução da ciência é um trabalho coletivo e gradual, não é individual e instantâneo.

    Note-se que a mudança ocorrida na física entre 1885 e 1905 significou não apenas a existência de condições que permitiram o trabalho de Einstein, mas também a efetiva obtenção de muitos dos resultados usualmente atribuídos a esse pesquisador por outros físicos, antes dele. Quando estão maduras as condições históricas para o surgimento de uma nova proposta científica, é comum que diversos pesquisadores apresentem, independentemente uns dos outros, idéias semelhantes.

    Antigamente, descrevia-se a história de cada nação como a sucessão dos feitos de seus reis. Essa visão simplista e equivocada foi substituída por outra, em que muitos tipos de atores contribuem para as diversas mudanças sociais que ocorrem em cada lugar, ao longo do tempo. É necessário que a história das ciências ultrapasse também a descrição mítica dos "grandes gênios" e seja capaz de estudar toda a complexidade e riqueza do real desenvolvimento histórico de cada passo.

     

    Roberto de Andrade Martins é físico, doutor em lógica e filosofia da ciência. É professor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde coordena o Grupo de História e Teoria da Ciência. Foi presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e da Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Whittaker, E. T., A history of the theories of aether and electricity, New York: Humanities Press, 1973; Miller, A.I., Albert Einstein’s special theory of relativity, Reading: Addison-Wesley, 1981; Pais, A., Subtle is the Lord… The science and the life of Albert Einstein, Oxford: Oxford University Press, 1982; Galison, P.L., Gordin, M., Kaiser, D. (eds.), Science and society: the history of modern physical science in the twentieth century. Volume 1: Making special relativity, New York: Routledge, 2001.

    2. Einstein, A., "Zur Elektrodynamic bewegter Körper", Annalen der Physik 17: 891-921. 1905.