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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.3 São Paulo July/Sept. 2005

     

     

    FÍSICA E O TERCEIRO MUNDO

    Celso P. de Melo

     

    Em 1951, ao fazer um paralelo entre o terceiro estado da França pré-revolucionária e a situação dos pobres e deserdados países da América Latina, África e Ásia, esquecidos entre as excludentes esferas de influência das então duas superpotências a emergir da Segunda Guerra, o demógrafo francês Alfred Sauvy introduziu o conceito de terceiro mundo. À época, começos da guerra fria e em meio ao acelerado fim dos impérios coloniais ainda restantes, as diferenças Norte-Sul eram consideradas de menor importância face ao dominante cisma ideológico Leste-Oeste.

    Hoje, cinco décadas depois, se deixou de existir o segundo bloco, estilhaçado pela agonia e dividido no colapso do colosso soviético, as diferenças já então óbvias entre os países desse imprecisamente definido terceiro mundo se aprofundaram e a noção de um conjunto único de nações com problemas e interesses semelhantes não mais encontra amparo na realidade. Pouco de ainda comum pode ser identificado nas cada vez mais distintas situações de Índia, Brasil ou Coréia do Sul (para ficarmos com alguns poucos exemplos de relativo sucesso no avanço científico entre os países em desenvolvimento), e das nações mais pobres da América Latina, Ásia e África subsaariana.

    "É basicamente o domínio e a apropriação da ciência e da tecnologia que distingue o Sul do Norte", reconhecia Abdus Salam, cientista paquistanês mais tarde vencedor do Prêmio Nobel, ao criar em 1964 o Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), em Trieste, Itália. De fato, em muitos países em desenvolvimento, a ciência continua a ser tratada como uma atividade marginal ou mesmo como uma espécie de enfeite (1), um adorno raro a ser trazido à luz apenas quando conveniente.

    A desesperadora situação econômica e social dos países menos desenvolvidos – ou LDCs, da sigla em inglês – (2,3) decorre em grande parte da falta de recursos humanos qualificados e experientes. A habilidade de criar e implementar políticas públicas demanda tempo e perseverança: a melhoria dessa capacidade endógena requer um investimento substancial no sistema de educação superior, particularmente em ciência e tecnologia.

    É prioritário um programa de investimento que revitalize as universidades dos LDCs e apóie o desenvolvimento de centros de excelência em ciência, engenharia e tecnologia capazes de atrair e fixar estudantes, pesquisadores e professores que permaneçam nessas regiões mais pobres (4). Nesse sentido, é vital que sejam implementadas em maior número as cooperações Sul-Sul (2), pelas quais nações "do terceiro-mundo" em estágio mais avançado de desenvolvimento científico e econômico, ao estabelecerem parcerias mais generosas para com os países menores ou em necessidade mais crítica de formação de quadros, possam vir a servir como pólos regionais de treinamento.

    Mesmo nos mais adiantados países em desenvolvimento, a criação de centros de excelência pode estabelecer novos padrões de qualidade e assegurar a base de qualificação através do sistema educacional, das escolas primárias às instituições de ensino superior. Há urgência de ações desse tipo que possam fazer frente ao círculo vicioso de natureza progressiva pelo qual as nações industrializadas, que já dominam o instrumental da inovação (ou seja, da transformação do conhecimento em progresso econômico) investem substancialmente mais em ciência e tecnologia que as nações em desenvolvimento e terminam por capturar para seu próprio uso alguns dos mais preciosos talentos humanos das regiões mais atrasadas. (5,6) Por exemplo, existem no momento mais engenheiros e cientistas africanos trabalhando nos EUA que na África como um todo. (7)

    A criação de centros de pesquisa e de desenvolvimento de empresas é também um mecanismo a ser adequadamente explorado, pelo potencial que oferece de reter pesquisadores nativos e trazer de volta talentos expatriados. (6,8) Ocorre que, se (ao menos em teoria) a maioria dos governos de países em desenvolvimento explicitamente reconhece que ciência, tecnologia e inovação são fatores importantes para o progresso de uma nação, na prática suas estratégias nesse setor são em grande parte dissociadas das políticas implementadas para o desenvolvimento industrial, quase sempre de curto prazo e voltadas para o aumento imediato da capacidade de produção de manufaturas (9) pela importação direta de pacotes de tecnologia e conhecimento. Apenas como exceções é que os bem sucedidos exemplos de integração das políticas científica e industrial estabelecidos pelo Japão, na década de 1960, Coréia do Sul (nos anos 1980) e, agora, China (10) começam a ser internalizados por outras nações. Assim, recentemente a Índia lançou a Iniciativa de Liderança Tecnológica para o Novo Milênio, que oferece apoio financeiro governamental para projetos envolvendo universidades, laboratórios governamentais e empresas que venham a desenvolver produtos competitivos a nível internacional. (8)

    Se nas relações pessoais a imitação pode ser considerada como uma forma velada de elogio, para uma nação, a transição de uma economia doméstica para o estágio de competição internacional costumava passar por um período de aprendizado em que a cópia da tecnologia estrangeira se fazia importante (11), como foi o caso do Japão dos anos 1960 e da China ao final da década passada. No entanto, o progressivo endurecimento das regras internacionais relativas à exploração dos direitos de propriedade intelectual torna cada vez menos possível que outros países em desenvolvimento venham a seguir essas estratégias de sucesso, deixando poucas opções viáveis além do caminho mais árido da re-criação local do conhecimento e da propriedade intelectual essenciais a seu progresso. (12)

    O grau de desenvolvimento da comunidade de física em um país representa uma medida confiável de sua capacidade de graduação nos requisitos para o estágio de produtor de tecnologias competitivas. Por exemplo, ainda pelos anos à frente a física continuará a ser a disciplina primária associada à metrologia, e uma infra-estrutura metrológica desempenha um papel vital na atração do investimento doméstico em pesquisa e desenvolvimento por parte de companhias multinacionais, uma vez que os países anfitriões devem dispor de um completo espectro de infra-estrutura de suporte que essas empresas irão necessitar para se manter competitivas. (13)

    No Brasil, em seu recente volume de divulgação sobre a importância da física para o desenvolvimento nacional (14), a Sociedade Brasileira de Física chama a atenção para questões de nossa atualidade como a necessidade tanto de programas de interação com a indústria, quanto de alfabetização científica para formar os quadros essenciais para o desenvolvimento de um país competitivo no século XXI. Essa é também uma das prioridades de ação para o desenvolvimento científico do Hemisfério Sul, identificadas há pouco pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo. (15)

    É de fato uma característica das nações em desenvolvimento o caráter incipiente das interações universidade-empresa. L. Leydesdorff, um dos responsáveis pelo conceito de que as relações mútuas entre universidade, governo e indústria constituem uma dinâmica "hélice tríplice" de realimentações virtuosas, analisou os artigos publicados e indexados no ano de 2002 e levantou dados sobre a vinculação de seus autores a universidades, indústrias ou laboratórios governamentais (16). A partir dessa informação, G. Pathrop calculou o "índice de atividade" de cada um desses setores em diferentes países (normalizadas a 1,0, pela média mundial) (17). Enquanto a participação do setor industrial para o Brasil (0,5789) e a Índia (0,5963) se achavam abaixo da média mundial, a Coréia do Sul já havia alcançado o patamar adequado a uma nação tecnologicamente desenvolvida (1,0893). Por sua vez, o sucesso da pós-graduação brasileira (18) se reflete na robustez do índice de desempenho de nossa universidade (1,0809), comparável ao da Coréia do Sul (1,0826) e bem superior ao de suas congêneres da Índia (0,6975). A fragilidade das universidades indianas é hoje reconhecidamente um fator impeditivo de um progresso mais rápido daquele país. (19)

    É verdade que o uso indiscriminado de indicadores de publicações, fatores de impacto e número de citações em revistas indexadas termina por prejudicar uma avaliação justa da contribuição científica dos países menos desenvolvidos, da qual uma fração de difícil mensuração termina por encontrar lugar em periódicos editados nas línguas locais e, portanto, de circulação mais restrita (20). Em outubro de 2003, em uma reunião conjunta da Academia de Ciência do Terceiro Mundo (TWAS) e da Federação das Organizações Científicas do Terceiro Mundo (TWNSO), realizada em Pequim, China, foi emitida uma declaração onde, dentre outros pontos, é reconhecido que muitos resultados importantes de cientistas dos países em desenvolvimento não são publicados em revistas do primeiro mundo, e que, portanto, esforços devem ser despendidos para uma maior disseminação dessas informações e para sua inclusão nos periódicos internacionais de alto impacto.

     

     

    Porém, mesmo se usarmos a métrica e os valores apropriados ao primeiro mundo, é inegável o aumento da produção científica originária de alguns países e regiões do Hemisfério Sul. A América Latina, por exemplo, em pouco menos de vinte anos, mais que duplicou sua participação no número de artigos científicos indexados em todo o mundo, chegando a 3,2% no ano de 2000, um feito em grande parte associado ao progresso brasileiro que, com 9,5 mil artigos indexados, alcançou naquele ano a taxa de 1,3% da produção mundial. Ao longo desse tempo, a contribuição da física brasileira (1,8% dos trabalhos totais em sua disciplina) se manteve maior que a média de participação nacional nas diferentes áreas do conhecimento (21).

    E o progresso de alguns países em desenvolvimento tem sido notável não apenas por uma taxa crescente em números relativos, mas também por seu nível de publicação em face da quantidade de recursos investidos (22). Se os valores percentuais do orçamento nacional aplicados em pesquisa e desenvolvimento como um todo permanecem bem abaixo daqueles praticados nos países desenvolvidos, é bem verdade que alguns países da América Latina como Costa Rica, Cuba, Brasil e Chile, dedicam mais esforços nesse sentido do que à primeira vista poderia ser imaginado a partir de sua riqueza bruta (23).

    Hoje, em particular para física brasileira, o desafio começa a mudar. Se há progresso considerável no ritmo de publicações em revistas internacionais, atenção especial deve ser agora dedicada à questão da repercussão do trabalho produzido. Embora o Brasil produza bem mais trabalhos em física do que a Argentina (13.827 artigos de janeiro/1992 a outubro/2002 contra 5.463 de janeiro/1994 a junho/2004), por exemplo, os artigos de autoria de argentinos obtêm uma taxa de citação maior que os nossos (5,75 contra 4,57); ambos valores, no entanto, estão ainda claramente abaixo daqueles típicos para a produção de conhecimento na área que tenha como origem instituições do primeiro mundo. Os dados sobre a produção científica de diferentes países podem ser localizados a partir do endereço indicado na referência bibliográfica indicada no final. (24)

    Aliás, uma característica geral da ciência do Hemisfério Sul é sua baixa visibilidade, mesmo quando publicada em revistas internacionais de considerável fator de impacto. Embora, em termos relativos, a física seja uma disciplina a apresentar uma produtividade bastante expressiva em diversos países do "terceiro mundo", o impacto dessa produção (e o da Rússia, nesse particular), medido pelas citações subseqüentes por outros autores, é bem menor que os valores médios observados para o resto do mundo. Vários fatores podem ser apontados como explicações possíveis para esse fenômeno da maior ou menor repercussão quantitativa de um dado trabalho científico (como a presença ou não da chancela, ou "marca de qualidade", representada pela afiliação de algum dos autores a uma universidade de prestígio internacional), mas certamente essa deve ser uma nova fronteira de preocupação dos físicos brasileiros: o aumento da visibilidade e do impacto da ciência aqui produzida.

    Mais freqüentemente sim do que não, a ciência avança pela paciente construção de estruturas mais complexas a partir de pequenas contribuições que se somam. É o esforço coletivo das sucessivas correções e pequenos aprimoramentos de uma idéia inicial que leva ao progresso científico. Certo ou errado, um trabalho científico deve gerar curiosidade, desejo de testar o que foi afirmado ou de avançar a partir do ponto indicado. A indiferença é a pior das acolhidas a um cientista; o conhecimento que se extingue sem provocar novas discussões se mostra estéril e fadado ao esquecimento.

    É dito que, quando consultado sobre o que havia de certo ou errado em uma dada idéia nova em física que lhe fora apresentada, Wolfgang Pauli, um dos fundadores da mecânica quântica, teria respondido causticamente que ela "nem mesmo se qualificava a estar errada". A ciência do terceiro mundo, tão arduamente produzida e com tantos obstáculos à sua veiculação em periódicos internacionais, não pode se permitir morrer no ato de seu registro impresso e assim passar desapercebida, quer pela ausência de repercussão mais interna sobre nossas sociedades, quer por uma limitada contribuição efetiva para o avanço do conhecimento da humanidade.

     

    Celso P. de Melo é físico, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Hin, L. T. W. e Subramanian, R. "How scientific societies can build better nations", Nature 399, 633. 1999.

    2. Rao, C.N.R. "Physics in the developing world", Europhysics News 35 Nº 1. 2004.

    3. A lista completa desses países pode ser encontrada em http://www.un.org/special-rep/ohrlls/ldc/list.htm.

    4. King, D. "Hope for a continent", New Scientist, p 21, 19 de março/2005.

    5. "Inventing a better future", InterAcademy Council. 2004.

    6. Mashelkar, R. A. "India’s R&D: reaching for the top", Science 307, 1415-1417. 2005.

    7. "Our common interest", Report of the Comission for Africa, 2005, disponível em http://www.commissionforafrica.org/english/report/thereport/cfafullreport.pdf

    8. New Scientist, , p. 41, 19 de fevereiro de 2005.

    9. "Innovation: Applying knowledge in development", Task Force on Science, Technology, and Innovation, UN Millenium Project, (London, UK, 2005).
    Disponível em http://www.unmillenniumproject.org/documents/Science-complete.pdf

    10. "Looking east: vaunted german engineers face competition from China", Wall Street Journal, 15 de julho 2004; disponível em< http://www.careerjournal.com/salaryhiring/industries/engineers/20040727-karnitschnig.html.

    11. Bosworth, D. e Yang, D. "Intelectual property law, technology flow and licensing opportunities in the people’s Republic of China", International Business Review 9, 453-477. 2000.

    12. Mweene, H. V. "The case for research in pure physics in developing countries", Physica Scripta, T97-163-166. 2002.

    13. Berry, K. H. "Physics, metrology and development", Physica Scripta T97, 126-130. 2002.

    14. Chaves, A. e Shellard, R. C. (editores) "Física para o Brasil: pensando o futuro", Sociedade Brasileira de Física, São Paulo. 2005.

    15. Balasubramanian,D. "Science for development in the south", Background Paper, Committee on Science and Technology in Developing Countries (COSTED), Third World Academy of Sciences (TWAS), World Conference on Science, Budapeste, Hungria. Junho/1999.

    16. Leydesdorff,L. "The mutual information of university-industry-government relations: an indicator of the triple helix dynamics", Scientometrics, 58, 445-467. 2003.

    17. Prathap, G. "Indian science slows down – v: the slack of the university sector", Current Science 87, 732-734. 2004.

    18. de Melo, C. P. "Política e gestão da pesquisa e da pós-graduação", coletânea "Subsídios para a discussão sobre as políticas e gestão da universidade/educação superior", INEP. Março/2004.

    19. New Scientist, p. 47. 19 de fevereiro de 2005.

    20. Gibbs, W. W. "Lost science in the third world", Scientific American 273, 92–99. 1995.

    21. "Latin America: a growing presence" http://www.sciencewatch.com/sept-oct2001/sw_sept-oct2001_page1.htm.

    22. Holmgren, M. e Schnitzer, S. A. "Science on the rise in developing countries", PLoS Biology, 2, 13. 2004.

    23. Albornoz, M. "Science and technology in latin america: an overview", trabalho apresentado na Reunião Anual da American Association for the Advancement of Science, San Francisco, Califórnia, em fevereiro de 2001, disponível em http://www.aaas.org/international/lac/docs/albornozedit.doc.

    24. Informação sobre a produção científica recente de diferentes países pode ser encontrada em In Cites: Countries, acessível em http://in-cites.com/countries/2004menu.html.