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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.3 São Paulo jul./set. 2005

     

    LITERATURA

    A IDENTIDADE E O CARÁTER UNIVERSAL DOS ROMANCES REGIONAIS

     

    A mescla de influências e cenários do ambiente brasileiro, de norte a sul, marcou o mundo literário com autores consagrados como Guimarães Rosa, com o retrato dos sertões mineiros; Graciliano Ramos, que fez o mesmo em relação ao castigado semi-árido nordestino; ou, ainda, Érico Veríssimo, que pincelou com letras magistrais os pampas gaúchos. Na mesma trilha literária, uma geração de escritores contemporâneos traz novas luzes aos romances ambientados seja na região amazônica ou nas planícies do sul. A exemplo da obra de seus ilustres antecessores, trazem em si apelo universal, o que lhes têm conferido prêmios literários e adaptação para outras linguagens, como a cinematográfica.

    "Uma das características mais fortes da ficção praticada hoje no Rio Grande do Sul é justamente a ultrapassagem do regionalismo para alcançar a metáfora da região. Dá-se o aproveitamento da ‘região’ não apenas como documentário, mas como sinal da universalidade na representação da matéria local". É o que afirma Flávio Loureiro Chaves, da Universidade de Caxias do Sul, pesquisador da obra de Érico Veríssimo, no mestrado, e de Simões Lopes Neto. Para o professor, Lopes Neto inaugurou esse caminho literário quando fez o aproveitamento da linguagem local para expressar uma densa simbologia. Veríssimo, por sua vez, teria logrado inserir na crônica provincial de O tempo e o vento uma visão da história que seria uma dialética entre o transitório e o permanente. "Os atuais narradores do Rio Grande do Sul vão manter invariavelmente esse rumo, aí incluído Tabajara Ruas, que faz o aproveitamento intensivo do manancial histórico. Este, também, é o caso de outros dois notáveis narradores – Luiz Antonio de Assis Brasil e José Clemente Pozenato – que observam a região acima do particularismo para fisgar o sinal da universalidade", completa Chaves.

    OLHAR GAÚCHO Pozenato é autor de ensaios premiados como O regional e o universal na literatura gaúcha (1974), de novelas, crônicas e romances, dos quais se destaca O quatrilho (1985), adaptado para o cinema, com direção de Fábio Barreto e indicado para o Oscar em 1996, na categoria de melhor filme estrangeiro. O romance de estréia de Assis Brasil, Um quarto de légua em quadro (1976), também trata das raízes européias do povo gaúcho, abordando os primórdios do povoamento açoriano no estado. Seu segundo romance, A prole do corvo (1978), é um painel do último ano da Guerra dos Farrapos. Esse tema histórico também é tratado em dois romances de Tabajara Ruas: Os varões assinalados (1985), escrito originalmente na forma de folhetim para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e Netto perde sua alma (1995), que recebeu o prêmio Açorianos de Literatura, em 1996, e foi adaptado para o cinema com roteiro e co-direção do próprio Ruas, em parceria com o cineasta Beto Souza, vencendo 4 kikitos no 29º Festival de Cinema de Gramado, em 2001.

     

     

    MEMÓRIA DE FRONTEIRA A obra de Tabajara Ruas, tido como um dos dez maiores romancistas da literatura gaúcha, além de se pautar na memória e na história local, também é fortemente marcada por sua própria memória e história pessoal, vivida em parte na cidade fronteiriça de Uruguaiana, separada da Argentina pelo rio Uruguai. É lá que ambienta a novela Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez (1990), um relato que lembra a Crônica de uma morte anunciada, do colombiano Gabriel Garcia Márquez. A novela gaúcha se passa em 1957 e é narrada pelo sobrinho de Juvêncio Gutierrez, um adolescente com a mesma idade que Tabajara Ruas tinha naquele ano. Em determinado trecho, ao folhear o primeiro volume de O tempo e o vento e comentar as anotações feitas por seu pai no livro, o narrador revela uma desconfiança sua: "meu pai fruía alguma satisfação escondida ao reconhecer, impressos em letra de fôrma, os sinais do mundo que habitava, ainda novo, buscando identidade, e que Érico Veríssimo soubera detectar e transformar em epopéia".

    FICÇÃO AMAZONENSE Longe do Chuí gaúcho, mas perto do Oiapoque, outro escritor de peso conquistou grande público, mesclando os mesmos elementos. O amazonense Milton Hatoum, filho de um libanês muçulmano casado com uma brasileira cristã, aborda, nos romances Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irmãos (2000), a relação de imigrantes estrangeiros com nativos em Manaus e o convívio pacífico entre pessoas de diferentes culturas e religiões. O primeiro livro foi traduzido para seis idiomas e publicado em oito países, e o segundo, traduzido para oito línguas com publicações em dez países. A atual candência dos conflitos nas relações entre Oriente e Ocidente e dos debates sobre intolerância às diferenças culturais e religiosas em todo o mundo explica, em certa medida, o sucesso internacional de Hatoum.

    "Seus romances ambientam-se na Amazônia, mas falam, fundamentalmente, sobre a circulação de uma cultura. Tratam de uma identidade em trânsito, em plena formação", diz Vera Lúcia Soares, da Universidade Federal Fluminense, estudiosa da relação entre Oriente e Ocidente em literatura de língua francesa. Em 2001, Vera publicou um artigo em que compara um livro de uma escritora belga, de origem marroquina, com o Relato de um certo Oriente, de Hatoum, que integra a coletânea Imagens do outro: leituras divergentes da alteridade, editada pela Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia. Segundo a pesquisadora, ambos os livros apontam para a mesma impossibilidade de se pretender construir uma identidade fechada, de raiz única. A diferença é que o romance belga aponta para o fato de a Europa ser mais fechada ao contato com o estrangeiro.

    "No caso do Brasil, houve uma mestiçagem na origem da formação da sociedade. Nós não somos uma sociedade branca ocidental. Longe disso. Quando muitos desses imigrantes chegaram, já encontraram uma sociedade mestiça", afirmou Hatoum, em entrevista à rede de TV alemã Deutsche Welle, quando esteve em Frankfurt. "O Brasil é um ‘caldeirão de culturas’, onde se misturam raças, comidas, religiões, com resultados sempre imprevisíveis, o que explica, de certa maneira, a integração relativamente tranqüila dos imigrantes na sociedade brasileira", concorda Vera. Para a pesquisadora, esse "caldeirão de culturas" está, de certa forma, representado em Relato de um certo Oriente pela casa da personagem Emilie, que seria uma espécie de resumo desse Brasil plural.

     

    Rodrigo Cunha