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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2005

     

     

    Empirismo e ciência: fonte de novos fitomedicamentos
    Lauro Barata

     

     

    Azia, má digestão? – extrato de aniz com melissa. Gastrite? – espinheira santa, ora! Dor nas pernas? – é só passar óleo de andiroba morno!... Doutores e gente comum se cuidam com chás, mezinhas e até garrafadas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 80% da população mundial utiliza plantas medicinais. No Brasil, no entanto, a maioria dos médicos não usa e nem acredita nelas e, por isso, não as prescrevem. Essa atitude pode ser atribuída ao desconhecimento da classe médica, que nos seus currículos não trazem disciplinas de fitomedicina, mas o assunto é mais complexo e passa pelo mercado farmacêutico e, sobretudo, pela baixa qualidade das matérias-primas naturais brasileiras. Prescritos por médicos, os fitoterápicos na Alemanha, maior consumidor individual de fitomedicamentos no Ocidente, são éticos, isto é, passaram por todas as fases dos ensaios de segurança e eficácia antes de irem parar nas prateleiras das farmácias.

    Embora o Brasil seja rico em biodiversidade e domine a maioria das tecnologias para a produção de fitomedicamentos, somente neste ano uma empresa lançou o primeiro medicamento ético vindo de uma planta medicinal brasileira – a erva-baleeira (Cordia verbenaceae). O custo, estimado pela indústria de US$ 5 milhões, é apenas 1% do valor de um novo medicamento nos EUA. Desenvolvido em parceria com a Unicamp, a pesquisa e desenvolvimento desse medicamento antiinflamatório mudou o paradigma de cinco séculos de importação, abrindo uma perspectiva de o Brasil entrar no sofisticado e excludente mercado farmacêutico, um dote de US$ 500 milhões por ano. Embora uma janela de oportunidades, entrar nesse mercado significa superar os gargalos existentes, que não são poucos. Os problemas da cadeia da produção das plantas medicinais começam com os ambientais. Das 400 plantas medicinais comercializadas no Brasil, 75% são de origem extrativa, coletadas diretamente de seu habitat na mata atlântica, amazônia, caatinga e cerrado, sem qualquer manejo, o que gera grande pressão ambiental no ecossistema causando problemas na sustentabilidade e risco de extinção. É o caso da fava d’anta: milhares de toneladas são arrancadas anualmente do cerrado e consumidas pela indústria sem a necessária reposição. Adicionalmente, as matérias-primas produzidas são visualmente de má qualidade e, algumas vezes, grosseiramente falsificadas. O fornecimento é irregular, o preço varia com a sazonalidade, as adulterações são constantes e o controle de qualidade, que deveria ser rígido, é quase inexistente. A presença de galhos e até de outras plantas contaminantes, ou mesmo a troca de uma espécie por outra, ocorre com freqüência, além de fungos, bactérias e coliformes fazerem parte das amostras de plantas medicinais. Apesar desse cenário, técnicas como a Cromatografia Líquida de Alta Eficiência (HPLC) para o controle de qualidade começam a ser utilizadas por algumas empresas de base tecnológica, mas ainda não existe a padronização de extratos.

    PADRONIZAÇÃO DA MATÉRIA-PRIMA padronização, o produto perde qualidade e a indústria não pode garantir a eficácia apregoada já que desconhece a concentração do produto à venda. Extratos padronizados são a base dos fitoterápicos (extratos vegetais contendo várias substâncias, como o da casca da quina) e fitofármacos (substâncias puras extraídas de vegetais, como o quinino). Mas essa situação começa a mudar com a recente portaria da Anvisa (RDC 48/04 de 16.03.04) que estabeleceu uma legislação específica, que se baseia na "garantia de qualidade (...) exigindo a reprodutibilidade dos fitoterápicos produzidos", o que só pode ser alcançado se as empresas se utilizarem de extratos padronizados e estabelecerem rígido controle de qualidade.

    No entanto, como raramente se conhece o princípio ativo (PA) existente nas plantas medicinais brasileiras, a lei permite um controle via "marcadores moleculares", o que em princípio poderia ser qualquer substância presente com regularidade no extrato e dentro de certa concentração nos extratos. Para algumas plantas, isso é fácil, como o extrato do guaraná (Paullinia cupana) que pode ser dosado tomando por base a cafeína. No entanto, quando se trata da pata de vaca (Bauhinia forficata) para diabetes ou da espinheira santa (Maytenus ilicifolia), planta antiulcerogênica, sabe-se apenas que seus extratos não são tóxicos e que são, de fato, eficazes no tratamento indicado pela população, mas como seus princípios ativos não estão descritos, a padronização não é feita em cima dos PA’s. Frente a tais dificuldades, empresas "padronizam" os extratos da espinheira santa através da presença de taninos, substâncias fenólicas, tão distribuídas na natureza quanto a celulose. Na prática, esses fatos absolvem os médicos brasileiros do fato de manterem distância de chás e fitoterápicos. Mas, teriam eles razão?

    USO SECULAR Os fitomedicamentos têm sido usados pelo homem desde o início de sua história e muito do que sabemos de nossas plantas vem do conhecimento indígena, que possibilitava tratar da malária antes dos brancos chegarem por aqui. Até o meio do século XIX, as plantas eram a base da medicação, e isto só mudou com a síntese da aspirina pela Bayer em 1856. Mesmo assim, os extratos de plantas e substâncias puras seguiram sendo a base da terapêutica até a década de 1940. Com o aparecimento das sulfas, porém, a situação se inverteu: os medicamentos se tornaram sintéticos originados de produtos do petróleo, embora parte deles sejam ainda naturais ou tenham seus esqueletos baseados em substâncias de plantas como os esteróides anticoncepcionais.

    Assim, em princípio, não há uma base científica para a rejeição pura e simples dos medicamentos naturais de plantas. No Brasil, geriatras prescrevem para memória, circulação e doenças vasculares periféricas drágeas de Ginkgo biloba, pesquisada e popularizada por uma empresa francesa. Mistura de substâncias chamadas ginkolídios, o extrato de ginkgo é efetivamente um fitoterápico, uma mistura de um adaptógeno antiestresse também usado para memória.

    Então, por que médicos brasileiros receitam uma planta estrangeira e não uma brasileira? A resposta é simples. Toda a farmacologia pré-clinica e clínica do Ginkgo biloba foi feita no exterior, o que tornou esse fitoterápico aceito como medicamento com todas as exigências de segurança e eficácia.

    Havendo ciência e qualidade, nossos médicos aceitariam os medicamentos baseados nas nossas plantas medicinais, e foi isso que comprovou uma recente pesquisa de uma empresa de consultoria. Quando perguntados sobre "quais os requerimentos principais para a prescrição de drogas fitoterápicas", 100% responderam que era a comprovação científica, entre outras respostas. Quando perguntados se "receitariam drogas fitoterápicas havendo prova científica", todos disseram que sim.

    MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS O conhecimento etno-médico era, até os anos 1970, sistematicamente desconhecido e/ou desprezado pelos cientistas e pela indústria. No entanto, a partir de 1985 isso começou a mudar, com a indústria e os cientistas buscando beber na fonte de conhecimento tradicional. O desenvolvimento de novos equipamentos espectrométricos e a informatização dos meios analíticos revolucionou a definição das estruturas químicas. Aliado a isso, a robotização dos ensaios in vitro gerando os atuais HTS (High Throughtput Screening ) capazes de gerar cem mil ensaios num único dia – nos anos 1970 demorava um ano – mudaram profundamente as pesquisas para gerar um novo fármaco a partir de plantas.

    A diversidade estrutural dos produtos naturais foi uma forte razão para a retomada do uso de extratos de plantas e suas substâncias isoladas. Estruturas químicas absolutamente originais como o taxol, para a cura do câncer, só poderiam ter sido desenhadas pela natureza, nenhum cientista se atreveria a imaginar tal complexidade de drug design. A posteriori da descoberta foi possível sintetizá-la em laboratório, mas a produção industrial por síntese total continua inviável.

    PESQUISA & MERCADO O Brasil tem uma das maiores produções de PhDs do mundo, oito mil doutores a cada ano, tem conhecimento científico acumulado sobre as plantas medicinais e as empresas brasileiras tem capacitação necessária para gerar processos tecnológicos. Porém, infelizmente, as empresas não tem um corpo de P&D capaz de gerar inovações. No entanto, com o uso sustentável da nossa biodiversidade, e tornando a universidade aliada da empresa, ainda podemos suplantar os desafios para gerar novos medicamentos éticos para o Brasil e certamente para o mundo.

     

    Lauro E. S. Barata é pesquisador do Laboratório de Química de Produtos Naturais, IQ-Unicamp