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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2005

     

     

    O PAPEL DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E TECNOLOGIA NO BRASIL: UM DEBATE

    Cristina Araripe Ferreira

     

    Apontada por muitos especialistas de reconhecido mérito científico como uma das únicas saídas para o Brasil do século XXI (1), a educação atravessa atualmente uma crise sem precedentes, tanto no que concerne a suas formas de organização institucional, quanto no tocante aos conteúdos curriculares apresentados aos alunos (2). Portanto, não será um exagero começarmos o presente artigo afirmando que a situação brasileira, vista sob o prisma dos indicadores socioeducacionais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico da Europa (OCDE) e do próprio Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), é extremamente grave em relação à qualidade do ensino oferecido pelas escolas, bem como em termos das próprias práticas pedagógicas que ainda vigoram nas salas de aula. Se, por um lado, avançamos ao estender efetivamente, em pouco mais de 20 anos, a cobertura, em todo o território nacional, no ensino fundamental, por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que as desigualdades econômicas e sociais existentes continuaram marcando de forma irremediavelmente negativa a escola básica e o ensino superior no Brasil.

    A nação dos ameaçadores e tristes contrastes não poderia, pois, ser outra senão essa que amplia durante todo o século XX a sua rede de ensino e o tempo de permanência de seus jovens na escola, mas, ao mesmo tempo, o faz de maneira discriminatória e excludente, por meio de políticas educacionais que não favorecem a escolarização de todos pelo sistema regular. De fato, o que se pôde constatar, a partir do aumento contínuo da população que ingressa na escola básica e no ensino superior, é que essa situação levou não só o sistema educacional brasileiro a crescer consideravelmente, do ponto de vista quantitativo, tornando-se mesmo massificado, mas também o conduziu a um rápido processo de deterioração na qualidade do ensino.

    Embora já fosse previsto, o processo de elitização do ensino de qualidade no Brasil acabou redundando em um grande e incômodo problema para os governos que se sucederam durante a ditadura militar. Vale lembrar que a expansão do número de alunos em todos os níveis de ensino, com expressivo crescimento do setor privado, não foi acompanhada de investimentos significativos na área da educação escolar pública, assim como não houve uma efetiva preocupação com a democratização do acesso a esse bem, definido pela Constituição Federal de 1988 como dever do Estado. Não nos esqueçamos, afinal de contas, que o país carrega consigo uma longa história de dominação política das elites, que não se baseia apenas na repressão de movimentos sociais, mas também, e principalmente, na imposição dos interesses das elites como sendo interesses de toda uma sociedade.

    Sem entrar nos meandros de um tal debate, vamos simplesmente indicar aqui que, durante muito tempo, as elites seguiram implacavelmente acreditando que o mais importante era que o país chegasse ao terceiro milênio apresentando índices de desenvolvimento (econômico, social, político-institucional, industrial, científico e tecnológico, e assim por diante) compatíveis com suas ambições nos mais diversos campos da economia e da política internacionais ou, para usarmos um termo mais atual, da economia e política globalizadas. Com efeito, o tratamento dispensado ao tema da educação foi, por muitas décadas, indigno de um país com tantos interesses e pretensões vis-à-vis do mercado. Talvez possamos situar melhor essa questão lembrando que nunca houve no Brasil um projeto de Estado para a educação ou mesmo de escola que levasse em conta uma mudança imperiosa de paradigma, simultaneamente, econômico e educacional. Independente de ideologias, a maioria de nossos governantes e homens públicos em geral insistiu tanto no tal do crescimento econômico do país, fosse ele qual fosse, que acabamos desviando-nos do objetivo maior de transformação da sociedade a partir daquilo que a educação oferece de mais fundamental e precioso: a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral do ser humano.

    Com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada pela Presidência da República em 20 de dezembro de 1996, esperava-se, contudo, que "a educação, dever da família e do Estado" (Art. 2º) fosse finalmente tratada como política social da mais alta prioridade. Infelizmente, não é isso o que se observou. Passados mais de sete anos, nós ainda não conseguimos implementar em toda a sua extensão os princípios que se constituiriam em marco inaugural de uma nova fase da democratização do país, em especial no que diz respeito às concepções, diretrizes e proposições para a área da educação.

    Remetendo-nos à discussão sobre o papel da educação nas sociedades contemporâneas, destacaríamos, neste contexto específico de introdução e balizamento de um projeto de educação e escola para o país, que "o preparo (do educando) para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (LDB, Art. 2º) não poderia nunca se dar, segundo as palavras do próprio Paulo Freire, sem a experiência ou "esforço da compreensão que caracteriza a leitura do mundo" (3). Pelo menos, sem esse sentido maior, não.

    Para muitos pensadores contemporâneos não há, enfim, como deixar de considerar que as inter-relações do sistema educativo com outros sistemas vêm sendo dominadas pelo econômico, quando a questão seria, na verdade, política. O que, em relação à crença na escola libertadora, nos coloca um problema de monta, a saber: como romper com a dicotomia existente entre escola-máquina de reprodução das desigualdades sociais e escola-lugar por excelência do combate a essas mesmas desigualdades. Com esse argumento, queremos chamar a atenção, também, para o fato de que no plano político da ação os interesses e os avanços, em relação à discussão sobre um projeto de educação para o país, ainda não nos levaram a obter grandes conquistas que, há tanto tempo, se deve à sociedade. Além dos princípios, acima referidos, lembraríamos que o nosso compromisso com a formação do aluno deve, necessariamente, passar por um processo que lhes dê acesso à palavra, pois, mais do que isso, nós precisamos garantir a cada um o acesso ao conhecimento. Em nossa complacência política cotidiana, muitas vezes não priorizamos a educação como um processo formativo, intrinsecamente ligado ao exercício da cidadania (4), deixando de lado o que Paulo Freire disse sobre a própria transformação necessária e crítica das práticas educativas que têm como objetivo, entre outros, levar o aluno a ler o mundo: "entendendo-se aqui como ‘leitura do mundo’ a ‘leitura’ que precede a leitura da palavra e que perseguindo igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio da cotidianeidade" (5).

    A apresentação desse quadro sumário e introdutório de questões sobre o papel que a educação e a escola podem e devem desempenhar no Brasil do século XXI não se reduz, por sua vez, a uma mera discussão sobre os aspectos filosóficos e políticos, propriamente ditos, da economia da educação. Como veremos, um dos problemas cruciais e recorrentes em matéria de contemporaneidade do debate sobre a educação no mundo "cientificista" e "tecnologizado" de hoje é, justamente, o que se refere à necessidade da leitura do mundo, sem o que não podemos compreendê-lo ou aprender nada sobre ele. Assim como Paulo Freire tão bem escreveu, nós não poderíamos deixar de enfatizar o fato de que "ninguém lê ou estuda autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade, a forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha" (6). Esta idéia simples, e ao mesmo tempo bastante atraente sobre a experiência da compreensão, é vital para entendermos que o papel da educação em ciências e tecnologia nas sociedades contemporâneas não pode estar atrelado a nenhuma de suas dimensões econômico-sociais, como querem alguns tecnocratas, nem tampouco ser subsumido através de esquemas explicativos genéricos, que não dão conta do intrincado processo de produção do conhecimento em um mundo cada vez mais complexo e complicado.

     

     

    Do mesmo modo, consideramos fundamental para a reflexão sobre a finalidade da educação no Brasil (ref. Art. 2º da LDB) que se rompa com os pressupostos, que não nos permitem tornar efetivos os avanços educacionais em matéria de teorias, metodologias e inovações no ensino em geral. Assumimos, com efeito, que as questões de domínio técnico ou operacional da educação não são as mais importantes. Elas devem, ao contrário, estar subordinadas a uma lógica diferente daquela que presidiu algumas de nossas práticas mais importantes no campo do ensino das ciências e tecnologia, tal como a transmissão de informações científicas e tecnológicas por meio de aulas expositivas. Referimo-nos, enfim, ao desenvolvimento de uma certa visão instrumental e tecnicista do ensino, que serviu para deslocar o sentido maior do conhecimento e do aprendizado das ciências e tecnologia, transformando-as em discurso desencarnado, perene e imutável que nada tem a ver com a realidade do aluno ou da produção de conhecimentos em nosso mundo.

    Restringir o sentido da escola e da educação à sua função instrumental seria um equívoco tão grande quanto a própria idéia de que, por meio da educação em ciências e tecnologia, resolveríamos o problema do acesso a uma cidadania plena, à cultura, ao saber, ao trabalho. Sob pena de estarmos traindo alguns dos pensamentos e teóricos mais importantes nessa área, diríamos ainda que a educação em ciências e tecnologia no Brasil não pode se dar sem a incorporação de amplos valores humanos, que nada têm a ver com o tema dos fundamentos científicos-tecnológicos dos processos produtivos tratados pela LDB ou ainda explorados pela mídia através da divulgação científica.

    Contrapondo-se a um certo estado de coisas, queremos mostrar aqui que existe hoje no Brasil uma enorme expectativa em relação ao fato de que profissionais da área de educação em ciências e tecnologia possam responder prontamente, de modo competente e eficaz, às inúmeras e diversificadas demandas por métodos, materiais e projetos pedagógicos inovadores. Não é sem razão que governantes, políticos e gestores de C&T e da área do ensino têm demonstrado grande interesse pelo assunto, muitos vinculando estreitamente o prestígio político e o êxito econômico de muitos países ricos do mundo desenvolvido aos investimentos duradouros e nada desprezíveis em educação, ciência e tecnologia. À importância política e econômica do assunto para o desenvolvimento da sociedade soma-se, ainda, um aumento considerável de interesse (cultural) pela ciência e tecnologia de ponta produzidas nos mais distantes laboratórios dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, todos reforçando no imaginário coletivo a idéia de que, por meio de suas "aplicações" a C&T, mudarão para sempre nossas vidas.

    Desafios para os cientistas, engenheiros, médicos, desafios para os educadores, nós não poderíamos mais ignorar o quanto estamos impregnados por essa imagem de uma ciência que triunfa sem cessar e que, por isso mesmo, já não pode parar mais de produzir sentidos para a vida humana. Se hoje tratamos de transgênicos e biopirataria nas páginas de economia e política dos jornais, é porque estamos de tal forma imersos em uma cultura científica e tecnológica que não separamos mais os discursos pelo o que eles trazem de conteúdo específico de uma área do conhecimento.

    Aos que se interrogam assim sobre a importância de ensinar bem ciências e tecnologia, tanto quanto a leitura e a matemática, nós diríamos que aí está o grande desafio do século XXI. Afinal, não nos parece muito descabido mencionar, no atual contexto econômico e político, o fato de que o papel da educação em ciências e tecnologia nas sociedades contemporâneas transcende, de forma muito clara, os objetivos tradicionais do ensino. Ao introduzir o tema da educação em geral queríamos, na verdade, fazê-lo para que se compreendesse a irreversibilidade de dois fenômenos atuais. De um lado, não se pode mais, felizmente, pôr em questão a fundamentabilidade dos princípios que regem os processos formativos em nossa sociedade: igualdade de condições, respeito à liberdade, pluralismo de idéias e concepções, universalização do ensino fundamental e médio, valorização da escola e do professor, gestão democrática, garantia de qualidade e vinculação da escola ao mundo do trabalho e da vida social. De outro, a ciência e tecnologia como um binômio indissociável e, ao mesmo tempo, como práticas enraizadas culturalmente em nossa sociedade. Já não basta fazermos as antigas distinções entre ciência pura, básica e aplicada, entre interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade. Trata-se, enfim, de assumirmos um papel diferente em relação ao conhecimento e à formação do educando. Formar pessoas, produzir bens e serviços, criar empregos são objetivos que estão muito além de um discurso neoliberal pouco sensível aos apelos humanistas de um vasto grupo de atores preocupados com a educação como formação de valores e comportamentos.

    Não é à toa que, em uma certa medida, a própria discussão e adequação, pela força da lei, de propostas curriculares (ref. Parâmetros Curriculares Nacionais-PCNs), tornou-se alvo de intensas disputas no interior do campo educacional e acadêmico. De modo geral, deixamos de pensar e falar em melhoria da qualidade do ensino como um simples processo de aperfeiçoamento da nossa escola e de nossos mestres, para adotarmos como diretriz política um conjunto de planos e ações educacionais extremamente complicados e complexos, pouco ou quase nada assimiláveis pelos principais interessados, a saber: professores, alunos, pais, gestores, políticos.

    Por fim, queremos ressaltar que a educação em ciências e tecnologia do nosso povo não se fará sem a participação, lado a lado, de cientistas e educadores. Todas as reflexões e estratégias para alcançar tal objetivo devem ser encaradas como uma tarefa coletiva. Com a experiência acumulada, porém, queremos acreditar que se formarão núcleos duros da educação em ciências e tecnologia capazes de pensar saídas para os muitos impasses vividos, em nossos dias, pela educação e pela escola. Laboratórios didáticos, associações, clubes, museus, centros de ciência, centros de ciência e arte, no centro e na periferia, serão apenas espaços para a criação e realização de novas, diferentes, inovadoras práticas sociais. Certamente os dilemas e clivagens que dividem hoje nossos cientistas e educadores não desaparecerão, mas, desde já, queremos acreditar que o fim da ideologia utilitarista em educação é uma evidência, de per si, cujo sentido está nos próprios termos em que foi proposta: afirmar que a escola tem por finalidade preparar o educando para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho não é ruim; o problema está na construção de sentido do que nela se aprende (7). E aprender ciências e tecnologia não é algo que possa ser feito independente de sentido.

     

    Cristina Araripe Ferreira é assistente de pesquisa e coordenadora do Programa de Vocação Científica, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio / Fundação Oswaldo Cruz.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1 Instituto de Estudos Avançados da USP, Estudos Avançados, Dossiê Educação, Ed. Especial, volume 15, nº 42, agosto. 2001.

    2 Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais do MEC, PISA 2000, Relatório Nacional, pag. 7. 2001.

    3 Freire, P. "Carta de Paulo Freire aos professores", in Estudos Avançados, Dossiê Educação, Ed. Especial, volume 15, nº 42, pag. 261. 2001.

    4 A propósito desse assunto, ver o livro de Apap, G. (org.), A construção dos saberes e da cidadania: da escola à cidade. Porto Alegre, Artmed. 2002.

    5 Freire, P. op. cit. 261.

    6 Idem.

    7 Rochex, J.-P. Le sens de l’experience scolaire, Paris, PUF. 1995.