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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2005

     

     

    O PAPEL DO TEATRO NA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: A EXPERIÊNCIA DA SEARA DA CIÊNCIA

    Betânia Montenegro, Ana Lúcia Ponte Freitas, Pedro Jorge Caldas Magalhães, Armênio Aguiar dos Santos e Marcus Raimundo Vale

     

    Há muito que a pedagogia se serve do teatro. Aritófanes já o fazia em 414 a.C. quando lançou As aves, peça com críticas ainda hoje atuais aos jovens e ao sistema educacional. Se tomarmos a Grécia como ponto de partida do desenvolvimento do teatro, encontraremos que, por ocasião da colheita das uvas, eram promovidas homenagens a Dionísio, deus do vinho, da fertilidade, da fonte da vida e do sexo. Durante os festejos anuais, formavam-se procissões e cortejos, ao som de canções improvisadas entoadas por jovens em giros dançantes. Surgem nessas manifestações os primeiros registros do uso coletivo do canto, da dança e da representação. Este é, para muitos, o berço do teatro que nasce como forma coletiva de arte, utilizando-se de várias linguagens (1, 2).

    Na Universidade Federal do Ceará, a reflexão sobre a educação em ciências e a demanda da sociedade por um museu de ciências interativo e dinâmico, capaz de integrar ciência, arte e cultura tomou forma em 2000, com a criação da Seara da Ciência, órgão de extensão da UFC, cujo principal objetivo é a divulgação científica.

    Utilizando-se de um espaço inovador, tentamos explorar as relações entre as ciências e as artes para que estas duas culturas possam conferir, uma à outra, conteúdos, metodologias e linguagens que convirjam na construção de um processo pedagógico mais amplo. Assim, estamos desenvolvendo projetos nos quais a linguagem teatral, como poderosa aliada no processo ensino-aprendizagem, é utilizada como meio de cativar estética, conceitual e prioritariamente alunos da rede pública de ensino médio. O teatro, por sua forma de "fazer coletivo", possibilita o desenvolvimento pessoal não apenas no campo da educação não-formal, mas permite ampliar, entre outras coisas, o senso crítico e o exercício da cidadania. Nosso propósito é também o de desmitificar pré-conceitos, grifo nosso, dos conteúdos científicos adquiridos pelos alunos no decorrer de suas vidas escolares.

    Os textos são elaborados com o objetivo de transmitir conceitos científicos de forma simples, lúdica e agradável, tendo como perspectiva tornar os conteúdos, às vezes áridos, em bem humorados diálogos, abrindo os debates em sala de aula. Dentre essas peças apresentamos Eu odeio insetos e Caixinhas da vida, de Betânia Montenegro e Ricardo Tannus e Digestão: comida calor e peso, de Betânia Montenegro, durante os cursos de férias promovidos pela Seara da Ciência para professores da rede pública do ensino médio.

    Fizemos, ainda, a adaptação do texto Tem um cabelo na minha terra, de Gary Larson (3), na qual abordamos temas como o equilíbrio ecológico. Podemos citar um pequeno trecho onde a minhoca Benedita conversa com seu pai a respeito da importância da motricidade para os animais:

    "... Benedita: — Oh, oh... veadinhos brincando. Aproveitem, meus bonitinhos, suas brincadeirinhas inocentes. Já já vocês vão crescer e vão ter de dizer adeus a estas alegres e descuidadas brincadeiras inocentes!
    Papai Minhoco: — Brincadeiras inocentes?! Alegres e descuidadas?! Pois sim! Na verdade eles estão treinando para ficar mais espertos, pois enquanto brincam, sinapses adicionais se formam em seus cérebros preparando-os para a vida adulta. Na verdade eles estão treinando para sua sobrevivência nas florestas. ..."

    A trajetória e as contribuições de grandes cientistas como Einstein, Lavoisier e Darwin também foram adaptadas para o teatro, com o fito de discutir temas científicos de interesse geral. Por meio de monólogos, que são um breve resumo de suas biografias, os ilustres personagens recebem a platéia em seus "laboratórios" e estes são envolvidos na trama.

    Em Einstein, procuramos enfatizar a teoria da relatividade e os estudos que foram realizados em uma cidade no interior do Ceará no início do século passado. Em um dos trechos ele diz: "... — (...) E tem mais, vocês sabiam que a minha teoria, (da relatividade) só foi comprovada em 1919, aqui em Sobral, por ocasião de um eclipse?..."

    Com Darwin, temos um trecho da fala sobre suas observações a respeito do evolucionismo: "... — (...) Imaginem vocês, que eu havia aprendido que a Terra fora criada às 9 horas do dia 23 de outubro de 4004 a.C., e que todas as espécies animais haviam sido produzidas ao longo dos seis dias da criação, e que jamais haviam sofrido mudanças em suas características originais, e que a extinção de algumas espécies evidenciadas pelos fósseis, descobertos no fundo da terra, se explicavam por estes animais simplesmente não haverem chegado a tempo para embarcar na arca de Noé... Foi um salto e tanto, eu diria, quase uma mutação!...".

    Sobre Lavoisier, se explica à platéia a importância de seu trabalho no campo da química: "... — (...) Vocês conhecem este livro? (Na capa do livro está escrito Traité éleméntaire de chimie ) — Foi com o seu lançamento, em 1789, que nasceu a química moderna, e eu passei a ser conhecido como o pai da química! Pois, até aqui, reinava a alquimia! O conteúdo do livro trata, entre outras coisas, da unificação da nomenclatura utilizada para determinar os elementos, e se tornou o marco fundamental da química!...".

    As peças produzidas pela Seara da Ciência primam pelo uso da linguagem coloquial, mas têm o compromisso expresso com a exatidão das informações. Nosso objetivo é atingir um público diversificado, chamando a atenção para a importância da ciência no desenvolvimento do nosso país. Os resultados têm sido sempre animadores. A platéia acaba se envolvendo com a dinâmica do teatro e a aprendizagem acontece de forma lúdica e prazerosa, enquanto divulgamos os trabalhos que são desenvolvidos na própria universidade.

    O nosso "carro-chefe" tem sido a Bioquímica em cena, de Marcus R. Vale, uma peça que tem como objetivo abordar, em linguagem simples e divertida, as relações metabólicas mantidas entre vários sistemas do organismo humano. Ela prevê um elenco de 8 atores que representam como personagens órgãos do corpo, que discutem entre si sobre qual deles é o mais importante. Cada um enfatiza suas qualidades metabólicas, mostrando que, sem ele, o seu dono não sobreviveria. A peça mostra que todos os tecidos possuem características bioquímicas especiais que os diferenciam uns dos outros, sendo exatamente essas diferenças que possibilitam ao nosso corpo funcionar de forma integrada, elegante e perfeita. Quando cada um cumpre seu papel metabólico o equilíbrio é mantido, isto é, atingimos a homeostase. Abaixo a transcrição de um dos diálogos da peça, já apresentada em vários eventos, como a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em julho de 2003 na cidade de Recife. A peça foi gravada em vídeo e este meio poderá também vir a servir aos nossos propósitos de divulgação científica em ocasiões ou espaços em que a apresentação teatral não for possível.

    "... Fígado — Bem,... com exceção da hemácia. Mas essa gasta tão pouca energia... que eu nem faço muita questão... Mas tu... além de não armazenar a glicose ainda usas demais!... Imagine!... 60% da glicose do corpo és tu que queimas! Mesmo quando ele (o músculo) está em repouso.
    Cérebro — As tarefas nobres que tenho de realizar gastam muita energia mesmo, meu caro. É isso aí! C’est la vie.
    Músculo — Como já dizia Einstein, tudo é relativo. Aliás, eu preferiria dizer que tudo é muuuuito relativo! Por exemplo, essa história de gasto de energia... Esses tais 60% de glicose que o fígado mencionou aí... Fichinha, meu nego. Qualquer exerciciozinho que o nosso corpo fizer, quer dizer, que eu fizer, consome essa glicose aí bem ligeirinho!
    Cérebro — É, esse tipo de atividade "não intelectual" deve gastar mesmo muita energia... a minha glicose!...
    Músculo — É... realmente adoro uma coisinha doce logo no começo do meu trabalho de contração. Depois,... bem,... depois de algum tempo, um acidozinho-graxo me cai muito bem. Até porque esse daí não precisa da insulina para poder entrar em mim. Já chega e vai entrando sem pedir licença. E é muito bem-vindo porque tem muito mais energia do que a glicose. E para um tecido importantíssimo como eu... "

    A exemplo do que acontece em outros locais do Brasil, o trabalho com teatro na Seara da Ciência da UFC vem se somar ao realizado em outros centros de ciências como a Casa da Ciência e o Museu da Vida, no Rio de Janeiro, a Estação Ciência de São Paulo, e o Núcleo de Ciências da Universidade Federal do Espírito Santo, dentre outros. Neste novo cenário que se descortina na área científica se apresentam: A estrela da manhã de Calixto de Inhamuns; Galileu, o herege uma adaptação da obra de Bertolt Brecht feita por Angélica Barreto; Da Vinci pintando o sete de Francisco Alves; Copenhagen de Michael Frayn; Einstein de Gabriel Emanuel; e O método científico de Leopoldo de Meis e Diucênio Rangel. Todas essas montagens reforçam a importância da linguagem teatral como meio para divulgar e popularizar a ciência. Estabelece-se assim, no Brasil, uma nova, válida e empolgante forma de fazer teatro, o teatro científico.

     

    Betânia Montenegro é diretora do grupo de teatro da Seara da Ciência e professora do curso de arte dramática da UFC.
    Ana Lúcia P. Freitas é professora de bioquímica do Centro de Ciências da UFC.
    Pedro J. C. Magalhães e Armênio A. dos Santos são professores de fisiologia da Faculdade de Medicina da UFC.
    Marcus R. Vale é professor de bioquímica médica da Faculdade de Medicina e diretor da
    Seara da Ciência da UFC.

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Pignarre, R. História do teatro. 3ª edição, Coleção Saber. Publicações Europa – América. Portugal. 1979

    2. Nardini, B. Mitologia: o primeiro encontro. Círculo do Livro S.A. São Paulo, 1982.

    3. Larson, G. Tem um cabelo na minha terra!: uma história de minhoca. São Paulo: Companhia das Letrinhas, adaptação: Betânia Montenegro. 2000.