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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.4 São Paulo out./dez. 2005

     

     

    O DIÁLOGO ENTRE CIÊNCIA E ARTE

    Diucênio Rangel

     

    Vários autores, revistos por Turney (1), acreditam que o romance Frankenstein, de Mary Shelley, foi fundamental no estabelecimento de uma visão negativa da ciência, mostrando pela primeira vez a imagem do cientista tomado pela paixão e pela loucura, "criando" um monstro que foge ao seu controle e ameaça a sociedade. Surgia o "cientista louco" e a ciência como um instrumento perigoso e incontrolável.

    Segundo Wolpert, "foi Mary Shelley quem criou o monstro de Frankenstein, não foi a ciência; mas sua imagem é tão poderosa que alimentou medos sobre a engenharia genética que dificilmente serão removidos"(2).

    Particularmente sempre gostei da imagem de Frankenstein. Não poderia imaginar, acredito que igual a muitas pessoas, que para os cientistas aquela alegoria seria tão nefasta. Hoje entendo o porquê.

    Desde 1988, o Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ vem desenvolvendo diversas iniciativas educacionais dirigidas a professores e alunos do ensino fundamental e médio. Essas atividades e os projetos de pesquisa em educação a elas associados deram origem ao Núcleo de Educação em Ciência e, posteriormente, ao Programa de Educação, Difusão e Gestão em Biociências da pós-graduação em química biológica. Em 1995 fui apresentado ao professor Leopoldo de Meis. Acabara de me formar em gravura pela Escola de Belas Artes da UFRJ e fui indicado por uma professora de pintura chamada Lurdes Barreto, amiga em comum. O Núcleo de Educação em Ciência iniciava uma nova linha de trabalho que visava à confecção de livros ilustrados contando episódios da ciência, unindo artistas e cientistas. Aceitei a proposta e sugeri que fizéssemos quadrinhos, área que domino, o que tornaria mais fácil desenvolver o projeto.

    O livro de Mary Shelley é considerado o primeiro livro de ficção científica, mas o tratamento dado à figura dos cientistas nas obras de ficção científica que o sucederam, não melhora a imagem do cientista. Quando foi feito um estudo em que se pediu que crianças, adolescentes e adultos definissem um cientista, utilizando a linguagem não-verbal do desenho, a imagem que apareceu com enorme freqüência, foi negativa. Lá estava o cientista com olhos esbugalhados e cara de louco, cabelos desgrenhados, raios e trovões em seus tubos de ensaio. De maneira semelhante, em outro estudo, uma proporção considerável de estudantes universitários manifestou-se negativamente com relação à ciência e aos cientistas (3). Essa visão estereotipada do cientista é difundida em diversos meios de comunicação muito poderosos (cinema, quadrinhos, desenhos animados, televisão) e contribui para dificultar o entendimento do que seja ciência e qual a sua importância na vida da sociedade. Sob o ponto de vista da política, torna-se difícil esperar um suporte à ciência por parte da sociedade se esta tem uma visão distorcida da profissão.

    A idéia, então, foi trazer o artista para perto do fazer científico, para dentro do laboratório, fazendo desse espaço tão distante do fazer artístico mais uma fonte de inspiração. Assim, quem sabe, poderíamos utilizar a mesma linguagem que a obscureceu para mostrar a ciência como mais uma das atividades do homem, tão bela ou apavorante quanto qualquer outra, e sem a qual nossa sobrevivência se tornaria bem mais difícil.

    O artista precisa conhecer o tema sobre o qual vai executar sua obra. Poucas são, porém, as manifestações artísticas que se dedicam, por exemplo, a interpretar as formas dos transportadores de membrana mitocondrial ou o "canto do cisne na apoptose celular". Mas... e se o artista convivesse com o cientista no laboratório, se visse os experimentos e a carga emocional que despertam no pesquisador, se conversassem diariamente sobre seus trabalhos, sobre bobagens... como cinema, proteínas e a novela? Será que a ciência seria interpretada e mostrada de outra forma? Pois bem, desde então, esse convívio tem sido produtivo. Publicamos dois livros em quadrinhos: O método científico, atualmente na terceira edição, e A respiração e a Primeira Lei da Termodinâmica ou... A alma da matéria, já na segunda edição (4). A abordagem do primeiro álbum, utilizando o método científico como tema e enfatizando a sua importância para o avanço do conhecimento, derivou da constatação de que alunos de iniciação científica e pós-graduandos não sabiam o que era o método científico, num levantamento realizado com 50 estudantes. Baseado nesse levantamento, o primeiro álbum foi planejado com a pretensão não só de contar a história da evolução do conhecimento até os experimentalistas e a descrição do método por Descartes mas, também, a de enfatizar o impacto que a nova filosofia causou na sociedade. O objetivo principal foi contar esta história de forma agradável e atraente, evitando entediar o leitor.

    A experiência com o primeiro álbum serviu de estímulo e mostrou que era possível tratar um tema acadêmico com a linguagem das graphic novels. Decidiu-se, então, iniciar um segundo álbum, com o apoio da Academia Brasileira de Ciências. Dessa vez, escolhemos um tema bastante amplo, a Primeira Lei da Termodinâmica. Esse álbum contém capítulos que abordam diversos tópicos de destaque na história da bioquímica, desde as primeiras noções sobre a composição da matéria viva até a descoberta da interconversão da energia, passando pela alquimia e sua associação com o empirismo e o mágico, e o surgimento e queda da teoria do flogístico. Tal como no caso de O método científico, ele inicia e termina com imagens enfocando o lado não materialista da ciência. São imagens oníricas que buscam seduzir o leitor para a ciência. O objetivo do álbum foi bem caracterizado pelo artista plástico Marcos Varela, professor da escola de Belas Artes, mestre em antropologia da arte:

    "As imagens, ora oníricas na abertura de capítulos, ora objetivas quando ilustram experimentos, facilitam a compreensão destas noções científicas surgidas ao longo da história humana".

    Nenhum dos álbuns publicados foi comercializado por livrarias ou bancas de jornal. A metade da primeira edição de O método científico foi transferida à Fapesp pela Academia Brasileira de Ciências que, por sua vez, os distribuiu para escolas e centros universitários.

    Freqüentemente, os livros são enviados, a preço de custo, para professores de diversas regiões do país, que os solicitam via correio eletrônico. A maior parte dos exemplares dos álbuns publicados foi distribuída gratuitamente a:

    Alunos e professores de escolas que freqüentaram os cursos de férias do programa de educação em ciências do Departamento de Bioquímica Médica, ICB/UFRJ, hoje, IBqM.

    Salas de leitura de escolas públicas de São Paulo (Campinas, Sorocaba, Piracicaba), Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Pelotas, Caxias do Sul, Santa Maria), Minas Gerais (Belo Horizonte) e Bahia (Salvador). Nestes casos, os livros foram solicitados por pró-reitores de universidades federais que, por sua vez, os distribuíam entre as escolas públicas da região.

    Coordenadorias regionais de ensino do município do Rio de Janeiro, que se encarregaram de distribuir nas salas de leitura das escolas públicas.

    Montamos, também, uma peça teatral baseada em livros e artigos de Leopoldo de Meis (5): O método científico. A primeira iniciativa de encenar a peça surgiu nos cursos de férias que, regularmente, o IBqM oferece para alunos e professores de ensino médio. Tradicionalmente, a última atividade do curso costuma ser uma palestra apresentada por um cientista ou educador de renome nacional. Em 1999, não foi possível contar com a presença do conferencista. Decidimos, então, encerrar o curso com uma palestra, mas substituindo a projeção de slides e transparências por cenas interpretadas pelos estudantes de pós-graduação e iniciação científica, monitores do curso. A proposta foi aceita por todos e coube a mim a tarefa de montar cenários e planejar as cenas junto com Leopoldo de Meis, no curto prazo de duas semanas. A partir do primeiro ensaio, estabeleceu-se um clima que favorecia a interação entre todos os membros do grupo, que participaram ativamente, sugerindo e argumentando sobre a melhor forma de transmitir para o público os conceitos que se desejava dramatizar em cada cena. Os resultados da primeira apresentação foram encorajadores. Com essa primeira experiência, formou-se um grupo de trabalho com a proposta de aprimorar aquela apresentação para que pudesse ser apresentada em qualquer espaço com o objetivo de divulgar a ciência. Sob o ponto de vista da didática, a peça apresenta uma breve história da evolução do saber, desde o homem das cavernas até os dias atuais. Em diversas cenas, procura-se desmitificar os estereótipos populares de que "os cientistas são seres eminentemente lógicos e desumanos" (6).

     

     

    A dramatização, com duração de pouco mais de uma hora, visa atingir um público eclético, de qualquer idade e nível educacional. Essa peça passou a integrar o programa dos cursos de férias e, graças à divulgação feita por pessoas da platéia, passamos a receber diversos convites para apresentá-la, de início no próprio estado, e posteriormente em outros estados do Brasil, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Bahia e Minas Gerais. Em 28 apresentações a peça foi vista por cerca de oito mil pessoas, num público composto por estudantes de ensino médio, universitário e uma boa parte por uma platéia das mais diversas idades, cuja formação não temos a mínima idéia.

    Foram, também, produzidos dois vídeos: A mitocôndria em três atos, que mostra o funcionamento dessa organela celular, e A explosão do saber, que fala sobre as dificuldades advindas do aumento do conhecimento nos últimos duzentos anos. Estamos finalizando um terceiro vídeo, A contração muscular, e um terceiro livro em quadrinhos contando a história das vacinas. Nos vídeos buscamos utilizar as imagens e os sons para cativar o espectador e emocioná-lo, tornando os temas abordados mais divertidos e de fácil assimilação. São utilizados programas de animação 3D, modelagem e edição de som e imagem. Cada vídeo tem uma duração aproximada de 25 minutos, tendo sido planejados e confeccionados em nosso laboratório. A criação das imagens foi sempre acompanhada de perto por especialistas dos assuntos tratados, visando sempre ter como produto final a informação correta transmitida de forma lúdica.

    Quando convidado a ilustrar uma cena de livro ou uma história em quadrinhos, o ilustrador precisa conhecer o assunto a ser tratado, às vezes com detalhes que normalmente escapariam a percepção de quem só imagina a cena. Se for alguma imagem que retrate uma época específica, ou um personagem histórico, o ilustrador parte para a pesquisa em livros, fotos, filmes que retratem a época, qualquer referência que dê credibilidade a seu trabalho final. Nossos livros exigiram esse tipo de pesquisa.

    Em sua época, Mary Shelley criou uma ótima história, porém distante do que é a ciência. Hoje, podemos usar a linguagem áudio visual para conquistar o público e mostrar a ciência desmistificada, como uma atividade humana, portanto passível das paixões que toda atividade humana traz consigo. Ainda bem!

     

    Diucênio Rangel é doutor em química biológica, área de concentração em educação, gestão e difusão em ciência, pelo Instituto de Bioquímica Médica, ICB/UFRJ.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1.Turney, J. Frankenstein’s footsteps. Science, genetics and popular culture. New Haven and London: Yale University Press. 1998.

    2.Wolpert, L. The unnatural nature of science. London: Farber and Farber. 1993.

    3.de Meis L. et al. "The stereotyped image of the scientist among students of different countries. Evoking the alchemist?" Biochemical Education: 21, 75-81, 1993-b.

    4.O método científico, publicado em 1997 com apoio da Academia Brasileira de Ciências e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); A respiração e a 1ª Lei da Termodinâmica ou... A alma da matéria, publicado com o apoio da Academia Brasileira de Ciências. Podem ser requisitados pelo e-mail demeis@bioqmed.ufrj.br

    5.de Meis, L. O perfil da ciência brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ. 1996.

    6.de Meis, L. Ciência e educação – O conflito humano-tecnológico. Rio de Janeiro: Graftex Editora, 1998.