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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2005

     

     

    O ENSINO CLASSIFICATÓRIO DO METABOLISMO HUMANO

    Maurício R.M.P. Luz e Andrea T. Da Poian

     

    O metabolismo energético é um tema relacionado a assuntos bastante comuns na vida cotidiana dos alunos do ensino básico. Esses temas incluem as dietas para emagrecimento, o exercício físico e o uso de hormônios anabolizantes. Nesse sentido, acreditamos que uma compreensão integrada dos processos de produção de energia (ou ATP) pelas diferentes células e tecidos seja de extrema relevância tanto no ensino fundamental (EF) quanto no ensino médio (EM). Por esses motivos, nosso grupo vem estudando o ensino do metabolismo energético, e o conjunto dos resultados obtidos até o momento aponta para uma situação curiosa.

    Estudantes de primeiro período de graduação de diversos cursos da UFRJ parecem utilizar duas concepções não apenas diferentes, mas também conflitantes, a respeito da produção de energia pelas células (1). A concepção cientificamente incorreta e mais freqüentemente encontrada entre estudantes, a qual denominamos concepção dominante (CD), é de que somente a glicose pode ser utilizada para a produção de ATP pelas células. Essa primeira concepção contrasta, obviamente, com a outra expressada por esses mesmos alunos em outras situações, qual seja, a de que também lipídeos e proteínas podem ser utilizados na produção de ATP pelas células. Na verdade, a existência de concepções conflitantes a respeito de um mesmo fenômeno é mais freqüente do que se poderia esperar, e tem sido objeto de intensos e controvertidos estudos (2).

    Nossos resultados apontam para uma origem da CD no ensino formal, e não nas experiências cotidianas dos alunos. Essa origem estaria relacionada basicamente a uma ênfase ou mesmo uma apresentação exclusiva das vias de oxidação da glicose no EM e uma ênfase exagerada na função energética de carboidratos no EF, em detrimento de lipídeos e proteínas. Nesse último caso, o ensino classificatório da nutrição implica na atribuição das funções únicas e específicas para cada nutriente: função "energética" para os carboidratos, de "reserva" para os lipídeos e "estrutural" (ou "plástica") para as proteínas. Essa classificação, associada à ênfase posterior no catabolismo da glicose, não permite que os alunos percebam a importância de lipídeos e aminoácidos na integração e na regulação das diversas vias do metabolismo energético em diferentes situações fisiológicas.

    Após diagnosticar o problema de concepções conflitantes, temos desenvolvido propostas para os estudantes construírem concepções coerentes entre si e diferentes da CD e que sejam realizáveis no contexto da maioria das escolas brasileiras. Para tanto nos baseamos essencialmente no uso de materiais presentes no cotidiano e sem custo no caso do EF, e na análise de gráficos e na interpretação de experiências simples no EM.

    ENSINO FUNDAMENTAL Nossa idéia principal foi abordar as funções dos diferentes nutrientes de modo não restritivo, ou seja, sem atribuir a cada um deles uma função única ou exclusiva. Com isto, tivemos o objetivo de levar os alunos a perceber que diversos nutrientes podem contribuir para a produção de energia no organismo humano. Além disso, procuramos abordar o tema através de atividades práticas e interativas, que estimulassem a coleta organizada de dados, o raciocínio lógico e a discussão entre os alunos ou grupos de alunos.

    A proposta inicial de trabalho na unidade de ensino Nutrição pode ser a discussão do tema "de que é feita e para que serve a nossa comida?". A partir desta pergunta, opta-se pela utilização dos rótulos de alimentos industrializados, já que estes contêm não apenas a listagem de seus ingredientes como também tabelas de valor nutricional. Consultando-as, parte-se para a elaboração de uma espécie de "placar geral" (uma tabela de freqüências, na verdade) no qual os alunos listam os nutrientes presentes nos alimentos e determinam quantas vezes cada um deles é encontrado. A elaboração do "placar geral" pode se dar em etapas, com cada aluno preparando seu placar individual, agregando, então, seus resultados aos de um pequeno grupo. Finalmente, todos os grupos constroem o placar geral da turma.

    A análise inicial do "placar" costuma revelar que os alunos consideram as calorias como componentes dos alimentos e, naturalmente, como o mais freqüente deles. Essa situação oferece uma valiosa oportunidade para que, graças ao uso de dicionários ou da discussão da clássica experiência de Lavoisier e Laplace (3) os alunos compreendam as calorias como unidades de medida de energia e não como nutrientes. Essa discussão é de fundamental importância para as atividades seguintes. A exploração posterior do placar sempre indica uma maior freqüência de carboidratos, seguidos por lipídeos e proteínas. Os outros nutrientes, tais como fibras, vitaminas e diferentes sais minerais apresentam-se com menor freqüência.

    O fato de que todos os alimentos possuam calorias, mas muitos tenham composição complexa, permite que se levante a questão referente a qual, ou quais, dos nutrientes listados nas tabelas nutricionais fornecem a energia (ou calorias). A partir de então se estimula a discussão entre os alunos, de modo a que eles tentem sugerir uma abordagem capaz de identificar quais são os nutrientes energéticos. Nesse momento, dois desdobramentos, igualmente interessantes, podem ocorrer.

    No primeiro caso, no início da discussão, é comum que os alunos consultem atentamente os rótulos em busca de uma possível resposta. Dependendo dos rótulos disponíveis, uma resposta parcial à pergunta pode ser encontrada. Esse é o caso, por exemplo, do açúcar refinado (sacarose), cuja tabela nutricional indica a presença exclusivamente de carboidratos. Utilizando-se os valores disponíveis na tabela nutricional do açúcar pode-se determinar o valor calórico de um grama deste alimento. Caso existam outros alimentos compostos somente de carboidratos, como o amido de milho (Maizena), por exemplo, pode-se, até, verificar que a generalização dos valores obtidos com a sacarose é válida, já que os valores em ambos os casos são semelhantes. Análises similares podem ser feitas com relação às proteínas, usando gelatina sem sabor, e aos lipídeos, usando gordura vegetal hidrogenada. No entanto, apenas o primeiro dos três alimentos citados é encontrado freqüentemente entre aqueles trazidos pelos alunos. A partir da análise do rótulo de açúcar refinado, os alunos são capazes de compreender a idéia geral necessária para a determinação dos nutrientes "energéticos": basta encontrar um alimento composto de um único nutriente. Com essa proposta em mente, os alunos podem pesquisar nos mercados e localizar os alimentos que se prestem à abordagem proposta. A análise do rótulo do "sal de cozinha", por exemplo, acrescenta aos resultados da pesquisa a informação de que o cloreto de sódio, e logo sódio e cloro não possuem valor calórico.

    O segundo caso que pode ocorrer é aquele em que não existe entre os rótulos trazidos pelos alunos algum composto de um único nutriente, o que torna a discussão mais demorada. Em geral, a análise livre dos rótulos disponíveis permite que os alunos cheguem à conclusão de que é preciso encontrar um alimento composto de um único nutriente. Essa discussão pode ser estimulada inicialmente pelo professor, sem comprometer a autonomia do raciocínio da turma, de modo que os alunos percebam que a presença de diversos nutrientes em cada alimento é o fator que dificulta a determinação do valor calórico de cada um deles.

    Todos as vezes que trabalhamos com essa proposta, as turmas foram capazes de propor a abordagem proposta após a análise de poucos rótulos escolhidos casualmente. Tal conclusão nos parece ser bastante intuitiva e compatível com a faixa etária normal de alunos de 7ª série do EF.

    O fato de que alimentos compostos exclusivamente de vitaminas, fibras ou sais minerais não estão disponíveis comercialmente (à exceção já mencionada do sal de cozinha) oferece mais uma oportunidade de discussão e análise por parte das turmas. Na medida em que os alunos dispõem dos valores calóricos aproximados dos três nutrientes mais freqüentes, torna-se possível, com a realização de cálculos simples, a determinação de que os demais nutrientes não contribuem de modo significativo para o valor calórico dos alimentos. Em geral, após uma breve discussão, as turmas são capazes de perceber que a soma dos valores calóricos dos carboidratos, lipídeos e proteínas presentes em um dado alimento equivale aproximadamente ao valor calórico total deste alimento.

    Após a realização dessa atividade simples, os alunos percebem que, dentre os nutrientes presentes nos alimentos, os carboidratos, as proteínas e os lipídeos são capazes de fornecer energia. Além disso, os resultados dos cálculos feitos pelos próprios alunos mostram claramente que os lipídeos têm o maior valor calórico, e que proteínas e carboidratos têm valores calóricos semelhantes. Essas conclusões já se contrapõem ao ensino classificatório que mencionamos previamente, ao destacar a potencial função energética de três nutrientes, sem ênfase especial em qualquer um deles.

    Os desdobramentos posteriores à utilização da tabela de freqüência e da análise de rótulos incluem, entre outros, as relações entre a importância nutricional das fibras e nossa incapacidade de digeri-las, além da composição excessivamente rica em carboidratos dos alimentos industrializados. Naturalmente, as outras funções dos diversos nutrientes, incluindo-se aqueles mais freqüentes, têm de ser abordadas posteriormente. É importante ressaltar que a proposta contribui para evitar que se estabeleça precocemente, entre os alunos, uma concepção cientificamente incorreta e, ademais, conflitante com suas próprias concepções cotidianas.

    ATP NO ENSINO MÉDIO Como mencionamos anteriormente, o ensino das vias de produção de ATP no ensino médio (EM) costuma se concentrar quase exclusivamente na vias catabólicas relacionadas à glicose. Na verdade, ao tratarem exclusivamente da glicose, os autores de livros didáticos não apresentam, por exemplo, a importância do Ciclo de Krebs como via de integração do metabolismo energético, considerada fundamental no ensino de bioquímica (4). Ademais, esta abordagem de uma única via omite a diversidade metabólica dos diversos tipos celulares. Inicialmente, a solução mais simples poderia ser a inclusão do ensino de outras vias catabólicas no EM. Mesmo considerando que tal proposta poderia representar um avanço em relação ao panorama atual, acreditamos que, também no EM, pode-se trabalhar com atividades que estimulem a discussão e, sobretudo, que levem em conta os conhecimento prévios dos alunos, além de uma maior capacidade de raciocino abstrato, característica dessa faixa etária.

    No caso presente, seria interessante que considerássemos que os alunos acreditam, em situações de ensino formal, que a glicose é a principal, senão a única "fonte" de energia das células. Em nossa proposta, estamos iniciando o estudo do metabolismo energético com a discussão de um gráfico representando a curva glicêmica de um indivíduo, um exame no qual a concentração de glicose é medida em amostras do sangue de um paciente, retiradas em intervalos de tempo regulares, antes e depois da ingestão de glicose. Esse exame simula as variações na glicemia (concentração sangüínea de glicose) do indivíduo após uma refeição normal. A Tabela 1 mostra que logo após a alimentação a glicemia aumenta gradativamente ao longo da primeira hora pós-alimentação de 80mg/100ml para 140mg / 100ml. Em seguida, a glicemia cai rapidamente, voltando aos níveis basais em aproximadamente 30 minutos. A partir daí, a glicemia permanece praticamente constante até a próxima alimentação. Para fins didáticos, a curva encontra-se dividida em três etapas (etapa I: aumento após a alimentação; etapa II: queda; etapa III: manutenção dos valores basais). Inicialmente, pede-se aos alunos que, individualmente ou em grupos, proponham explicações para as variações da glicemia em cada uma delas. A discussão coletiva das hipóteses propostas oferece uma rica oportunidade para as atividades posteriores.

     

     

    A discussão das etapas I e II, em geral, é simples e rápida e as interpretações são sempre consensuais: enquanto a etapa I representa a digestão e a absorção dos alimentos presentes na refeição, a II representa o consumo da glicose absorvida pelas células do indivíduo. A etapa III, no entanto, tem propiciado as discussões mais ricas. Isto porque os alunos não dispõem de conhecimentos prévios que expliquem a estabilização da glicemia. Além disso, essa mesma estabilização se contrapõe à concepção freqüente entre eles de que a glicose, por ser a única fonte de energia disponível, deveria continuar sendo consumida e, portanto, deveria ter sua concentração sanguínea diminuída. A estabilização da glicemia gera, por esse motivo, uma interessante situação de conflito cognitivo, ou seja, um problema real para os alunos. Esse conflito pode representar uma importante oportunidade de aprendizado significativo, como discutiremos a seguir.

    As explicações propostas pelos alunos para a estabilização da glicemia podem ser agrupadas em três categorias gerais. Na primeira, encontram-se aquelas hipóteses relacionadas à existência de uma reserva de glicose no organismo, que passaria a ser, de alguma forma, disponibilizada para ser consumida pelas células. Uma segunda categoria incluiria as hipóteses, menos freqüentes, segundo as quais o organismo seria capaz de sintetizar glicose para seu próprio consumo. Finalmente, a terceira categoria incluiria as hipóteses relacionadas ao consumo de outras "fontes" de energia pelos tecidos. Uma característica interessante dos três tipos de hipóteses é que todas estão corretas. A hidrólise do glicogênio, a gliconeogênese e a oxidação de lipídeos e aminoácidos, respectivamente, subsidiam as hipóteses apresentadas.

    Curiosamente, porém, as duas primeiras hipóteses abordam o problema da estabilização da glicemia com base no aporte contínuo de glicose. Em um certo sentido, portanto, esses dois tipos de hipóteses buscam solucionar o problema mantendo-se em acordo com a concepção de que a glicose é a principal (ou única) fonte de energia, e, por isto mesmo, sua demanda precisaria ser continuamente suprida. A hipótese relacionada às outras "fontes" de energia, no entanto, parece representar uma situação na qual os alunos utilizam conhecimentos informais (a "queima" de gorduras durante as dietas, por exemplo) na proposição de soluções para um problema surgido no ensino formal. Por esse motivo acreditamos que sua discussão tem grande potencial de consolidar entre os estudantes uma visão mais rica e integrada do metabolismo energético.

    Temos prosseguido com o ensino solicitando aos alunos que sugiram experiências capazes de testar suas hipóteses. Ao longo do trabalho, procuramos deixar claro para os grupos que não é importante que as experiências sejam tecnicamente viáveis mas, sim, que eles saibam formular, em linhas gerais, aquilo que denominamos de seus "fundamentos lógicos". Diante de tal flexibilidade, os alunos são capazes de propor experiências coerentes com as hipóteses.

    No caso do terceiro tipo de explicação, por exemplo, os alunos sugerem a submissão de um indivíduo a uma "dieta sem glicose", associada à medida da quantidade de lipídeos e proteínas presentes no organismo. Nesse caso, pode-se disponibilizar para os alunos os resultados das medidas de peso magro e gordo de um indivíduo submetido à uma dieta isenta de carboidratos largamente praticada na atualidade. A análise dos resultados permite que os alunos concluam que, de fato, ocorre consumo substancial de lipídeos e proteínas em uma situação de privação de glicose. De modo análogo, são sugeridas abordagens para testar a síntese de glicose pelo organismo, que podem ser facilmente ilustradas pela apresentação de resultados simplificados dos trabalhos do casal Cori referentes à gliconeogênese.

    Os detalhes das diversas experiências e das maneiras de abordá-las excedem os objetivos deste artigo, mas muitas delas podem ser encontradas em Oliveira (5). É essencial destacar, porém, que em nossa proposta cabe ao professor o papel de orientador, mais que o de portador de informações a serem aceitas pelos alunos (6). Alguns passos das vias do metabolismo energético são apresentados posteriormente. Finalmente, a atividade de síntese se dá graças à discussão, por parte dos estudantes, de um gráfico representando as variações nas concentrações plasmáticas de diversas moléculas durante um jejum prolongado, de modo simplificado (7). Dessa maneira, os alunos são capazes de perceber a natureza integrada das vias do metabolismo energético, e não apenas memorizam cada uma delas em separado.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo de nosso trabalho temos tentado a aproximação entre a universidade e o ensino básico, através do diagnóstico conjunto de problemas e da elaboração e avaliação de propostas de ensino, que naturalmente precisam ser adaptadas e ter sua validade testada em diferentes contextos educacionais. Nesse sentido, temos desenvolvido material didático para alunos de licenciatura (8) e cursos de formação continuada para professores (disponíveis em www.cederj.gov.br/extensao), nos quais as questões levantadas a partir da pesquisa em ensino de temas de bioquímica encontram-se presentes.

     

    Maurício R.M.P. Luz é professor do Colégio de Aplicação da UFRJ e pesquisador do Laboratório de Biologia Celular, Fundação Oswaldo Cruz(RJ).
    Andrea T. Da Poian é professora adjunta do Departamento de Bioquímica Médica(ICB/UFRJ).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Oliveira, G.A., Sousa, C.R., Da Poian, A.T. e Luz, M.R.M.P. Adv. Physiol. Educ. 27, 97-101. 2003.

    2. Mortimer, E.F. Linguagem e formação de conceitos no ensino de ciências. Editora UFMG: Belo Horizonte. 2000.

    3. Gabriel, M.L. & Fogel, S. Great experiments in biology englewood cliffs, N.J., Prentice-Hall. 1955.

    4. Pickering, W.R. J. Biol. Educ. 33, 100-102. 1999.

    5. Oliveira, G.A., "O metabolismo energético no ensino médio: diagnóstico e proposta de ensino". Dissertação de mestrado. Departamento de Bioquímica Médica (ICB/UFRJ). 2003.

    6. Gil-Pérez, D. Int. J. Sci. Educ. 18, 889-901. 1996.

    7. Da Poian, A.T. "Integração hormonal do metabolismo durante o jejum", em Hormônios e metabolismo: integração e correlações clínicas (Da Poian, A. T. e Alves, P. C. C., eds.), cap. VIII, Editora Atheneu, Rio de Janeiro, RJ, pp. 185-213. 2003.

    8. Luz, M.R.M.P., Instrumentação ao ensino de bioquímica e biologia celular. Fundação Cecierj, consórcio Cederj, Rio de Janeiro. 2003.