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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.4 São Paulo out./dez. 2005

     

     

    MEMÓRIAS, APRENDIZAGENS E CONSTITUIÇÃO DAS IDENTIDADES

    Nádia G. S. de Souza e Diogo O. de Souza

     

    Esse foi o nome do curso organizado pelo grupo que integra a linha de pesquisa Estudos em Educação em Ciências (1), vinculada à pós-graduação em bioquímica do ICBS/UFRGS e desenvolvido junto a quatro escolas do ensino médio da rede estadual de Porto Alegre (2). Embora a abrangência do trabalho tenha correspondido ao curso e ao desenvolvimento de projetos nas escolas e de estágios na universidade, neste ensaio nos deteremos a narrar e discutir os momentos que constituíram o curso (3).

    Com o curso, buscamos discutir as implicações de processos biossociais na constituição das memórias e aprendizagens e das identidades, uma vez que pensamos o corpo como inscrição dos acontecimentos (4) cotidianos com os quais se relaciona, ultrapassando, assim, sua "pura" fisiologia, anatomia ou constituição genética e metabólica. Talvez antes, mas especialmente desde o nascimento, nos corpos inscrevem-se marcas – nomes, gêneros, hábitos, gostos – que têm efeitos de caráter biossociais (5). Somos o que aprendemos, recordamos e esquecemos das experiências cujas memórias, o conjunto das nossas lembranças, tornam cada indivíduo único (6, 7). Todavia, as abordagens utilizadas nas escolas e nas universidades centram-se em discursos biológicos que não consideram os processos culturais implicados na constituição dos corpos e, neles, das memórias/identidades. Assim, vimos o curso como uma possibilidade de chamar a atenção para tais aspectos e repensar as práticas e os conhecimentos associados ao estudo do corpo.

    Para pensar o corpo para além da sua biologia, desde o planejamento até o desenvolvimento do curso, contamos com profissionais que lidam com diferentes campos – educação, saúde, ético, neurobioquímico, biológico. No seu transcorrer, foram realizadas atividades que possibilitassem pensar e discutir: as relações que emergem ao discutirmos as memórias a partir de histórias de vida; os processos biológicos implicados na constituição das memórias e aprendizagens e os fatores interferentes a partir de testes com humanos e ratos; os tipos e estratégias de memórias e a constituição das identidades a partir do filme Amnésia (8); efeitos das ações (ética) quando nos relacionamos com outros seres vivos; as marcas adquiridas nas experiências escolares e seus efeitos a partir de conversas e elaboração de cartazes sobre tais lembranças. O passo seguinte foi contar e discutir algumas dessas atividades com professores e alunos, procurando mostrar como se articulou o biológico, o cultural, e o que emergia a cada encontro, refazendo o percurso no decorrer do curso.

     

     

    Num primeiro momento, a fim de criar condições para conhecer e discutir as relações que emergem ao pensarmos nossas memórias, os professores conversaram, em duplas, sobre situações, gestos, pessoas ou objetos que constituíam suas memórias/identidades, apresentando a seguir ao grupo. As conversas giraram em torno das lembranças relacionadas às experiências em família, na escola, na universidade. Essa discussão possibilitou pensar sobre as implicações das experiências na constituição das memórias e como o acervo das nossas lembranças marca as nossas identidades, isto é, como somos e como nos identificamos/diferenciamos uns dos outros. Além disso, discutimos sobre como nossas narrativas ingressam num sistema polifônico, o que suscita outras histórias. Ao realizarmos essa atividade com os alunos, de modo a ingressá-los nos pressupostos de onde estávamos falando de memórias/identidades (o que sentimos falta no trabalho com os professores) e de possibilitar que representassem seus pensamentos através de imagens, apresentamos a seguinte proposta: "Quem sou eu? Sou aquilo que aprendi/aprendo – sou o que recordo –, nossas memórias são o conjunto das nossas recordações, das nossas lembranças! Que recordações – gestos, objetos, atividades, músicas, grupos, ambientes, etc. – me representam? No grupo, discutam aquelas recordações mais significativas para cada um de vocês. No cartaz, representem quem sou através das recordações escolhidas pelo grupo como as mais significativas, usando recortes de revistas e jornais, frases, palavras, desenhos".

    Nas imagens representativas das memórias dos alunos destacaram-se aquelas relacionadas aos grupos familiar e de amigos, o namoro, as atividades de lazer; e chamou nossa atenção como a escola pouco apareceu como um lugar significativo nas suas experiências. Além da discussão gerada, durante as apresentações, sobre os processos de identificação/diferenciação que inscrevem nossas identidades, travou-se um longo debate sobre o papel da mídia na constituição das nossas subjetividades nos dias de hoje.

    Num outro momento, com a intenção de discutirmos sobre os processos implicados na constituição das memórias, os tipos e estratégias de memórias e os fatores interferentes, os professores vivenciaram testes de avaliação de memórias, seguidos de discussões a respeito do experenciado e da fala de uma doutoranda sobre a neuroquímica da memória, visando a aquisição de conhecimentos. Nesse dia, as discussões ocorreram em torno não só dos processos de memória, mas especialmente, dos sentimentos associados às experiências de ser testado/avaliado – ser avaliado por outro, como lembrar, o ficar exposto durante o teste –, o que gerou discussões sobre o que avaliamos das aprendizagens dos alunos durante as provas e o que ensinamos. Na continuidade dessas discussões e visando introduzir outras, como por exemplo, fatores e substâncias que interferem nas memórias, os professores participaram de experimentos de memória de longa duração e memória de trabalho, respectivamente, envolvendo ratos e camundongos – esquiva inibitória e alternação tardia –seguidos de debates com outros pesquisadores em neuroquímica da memória.

    Nas atividades desenvolvidas com os alunos, propusemos que participassem somente dos experimentos de esquiva inibitória, por uma questão de tempo e para privilegiar os debates, anotando resultados e levantando hipóteses sobre o que estaria acontecendo com os animais durante o experimento. Os alunos, em grupos, discutiram suas anotações e conclusões com os monitores, o que mostrou a necessidade de ampliar seus conhecimentos relativos à estrutura do cérebro e aos processos biológicos relacionados à transmissão nervosa. Nesse dia, ainda, os alunos revisitaram seus cartazes, numa tentativa de relacionar as discussões com as suas experiências, tomando-as como constituidoras de memórias/identidades. Esses temas foram revistos, posteriormente, através de uma tarefa de memória que possibilitou discussões sobre tipos e estratégias de memórias e da apresentação do filme Cérebro da coleção Superinteressante.

    Na continuidade, visando pensar o corpo como um texto em que podem ser lidas as inscrições adquiridas nas nossas experiências e discutir sobre tipos e estratégias de memória, foi assistido e debatido o filme Amnésia. Nas discussões com os professores predominaram suas manifestações sobre o filme visto como violento – algumas pessoas saíram da sala – o que gerou discussões sobre percepções e sentimentos associados ao mesmo. Isso levou-nos, novamente, a pensar na necessidade de criar estratégias de interlocução sobre as nossas propostas com as pessoas. Assim, na atividade com os alunos apresentamos e discutimos a proposta: qual filme assistir tendo em vista nossos propósitos? Dessa discussão ficou definido o filme Amnésia que, para nossa surpresa, muitos já haviam assistido. Para tanto, fizemos a seguinte apresentação introdutória: "Nesse filme o personagem principal teve perda da memória recente, lembrando somente de situações relacionadas a memórias de longa duração. Assista ao filme anotando as estratégias que o personagem utiliza para reter as informações e ter lembranças, e outros aspectos que julgar importante para discutirmos após filme". Essa proposição possibilitou não só promover discussões relacionando o filme com os assuntos tratados no curso, mas atentar para os sentimentos associados a esse tipo de produção.

    No curso foram, ainda, desenvolvidas atividades visando discutir os efeitos das ações humanas em relação a outros organismos vivos e a ele próprio (questões éticas) e, também, a escola como lugar de produção de inscrições nos corpos.

    Para finalizar, torna-se importante destacar que os professores desenvolveram, nas escolas, projetos como: Memorial fotográfico; Quem são nossos alunos?; Lixo: ontem e hoje; Interesses e aprendizagens. Ao avaliarem o curso, os professores referiram que o mesmo possibilitou: pensar na relevância de experiências vividas e de fatores biológicos implicados na construção do conhecimento; problematizar ações e linguagens utilizadas nas práticas escolares; "olhar os nossos alunos em outros espaços"; e integrar professores, alunos e acadêmicos. Nas suas avaliações, os alunos, lançaram mão de dramatizações para mostrar como relacionavam memórias/identidades a partir do curso. Nesse momento, destacaram a importância de verem seus professores aprendendo como eles, ou seja, "como alunos".

    Esse curso contou com a participação das professoras Suzana Wofchuk (ICBS/UFRGS) e Lavínia Schwantes (Faced/UFRGS), dos doutorandos em bioquímica Loredana Susin, Diogo L. de Oliveira, Felix A. Soares, Jean Pierre Oses, Ricardo V. de Oliveira e Evandro G. da Silva e da mestranda Ana M. Arnt..

     

    Nádia Geisa Silveira de Souza é professora adjunta no Departamento de Ensino e Currículo/Faced/UFRGS.
    Diogo O. de Souza é professor titular no Departamento de Bioquímica/ICBS/UFRGS.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. O curso integra o Projeto Interação Ciência e Educação com apoio da Fundação Vitae.

    2. A escolha das escolas deveu-se às possibilidades de se criar um grupo de trabalho nas mesmas e de se acompanhar os projetos ali desenvolvidos. Além disso, a escolha relacionou-se às proximidades e relações das escolas com a universidade. O curso atingiu 20 professores de diferentes áreas e 40 alunos do ensino médio.

    3. O curso desenvolvido com professores antecedeu o com alunos, que contou em alguns encontros com atividades realizadas pelos professores. Assim, embora o nome do curso e os seus pressupostos fossem os mesmos, o curso desenvolvido com os alunos foi modificando-se à medida que íamos avaliando o processo.

    4. Foucault, M. "Nietzsche, a genealogia e a história", in Microfísica do poder. RJ:Graal, 13ª edição. 1998.

    5. Souza, N.G. S. de Que corpo é esse? O corpo na família, mídia, escola, saúde, ... Porto Alegre: CPG-Bioquímica/ICBS/UFRGS. 2001.

    6. Izquierdo, I. Memória. Porto Alegre:Artmed. 2002.

    7. Izquierdo, I. Silêncio, por favor!. São Leopoldo: Unisinos. 2002

    8. Filme dirigido por Christopher Nolan e distribuído pela Newmarket Capital Group/Summit Entertainment. 2001.