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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.57 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2005

     

    ESTÉTICA

    COMO DEFINIR A PRESENÇA DO OLHAR FEMININO NAS ARTES

     

    O filme Vinho de rosas, de Elza Cataldo, é protagonizado por uma personagem feminina e dirigido por uma mulher. É o suficiente para definir um olhar feminino sobre a história? A obra pode ser considerada "feminina"? Nos últimos anos, no Brasil e no mundo, têm sido realizadas mostras de cinema – II Festival Internacional de Cinema Feminino (Femina), realizado em julho, e o I Festival de Cinema Feminino da Chapada dos Guimarães (Tudo sobre mulheres) – com esse foco. Exposições de artes visuais, debates, seminários e conferências também debatem a existência de um olhar feminino nas artes, como uma expressão artística diferenciada da masculina. O tema é controverso. Maria Tortajada, do Departamento de História e Estética do Cinema da Faculdade de Letras da Universidade de Lausanne, Suíça, questiona a concepção que se tem de estética feminina. "Estética das mulheres, atribuída às mulheres, ou construída por mulheres?". Para ela, o conceito é difícil de caracterizar ou isolar.

     

     

    "Não há necessariamente uma distinção estética entre as produções artísticas de mulheres e homens", afirma Luciana Grupelli Loponte, doutora em arte, gênero e educação do Departamento de Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul. No lugar de uma sensibilidade inerente, haveria um conjunto de experiências vividas pelas mulheres que podem – ou não – aparecer em suas obras. Luciana assinala que os nus femininos aparecem, por exemplo, nas obras de Camille Claudel (1864-1943) e Susanne Valadon (1867-1938), de uma maneira muito diferente daquela como o olhar forjado num regime de visualidade masculino está habituado a ver. Mas não manifestam o feminino obrigatoriamente. Susanne, em especial, era considerada pelos críticos como "a mais viril de todas as mulheres pintoras" e não endereçava a um suposto olhar controlador masculino suas representações de corpos femininos, que destacam gestos nada garbosos de mulheres comuns.

    Para Luciana, uma questão importante é a visibilidade das obras, relegadas a um segundo plano pelo discurso oficial sobre a arte, pelo menos até meados do século XX. Ela especula se obras como o Almoço na relva, Les demoiselles d’Avignon e O beijo, para citar algumas, seriam tão famosas se os autores, ao invés de homens – respectivamente Manet, Picasso e Rodin, fossem mulheres.

    NA PSICANÁLISE Para Márcia Arán, psicanalista do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a forma tradicional como a psicanálise aborda a diferença sexual é herdeira do modelo construído nos séculos XVIII e XIX. Fundamental para o desenvolvimento das noções de simbólico e de subjetividade, é também uma versão masculina da diferença, cuja lógica gira em torno da questão de ter ou não falo. Usando o termo versão, Márcia chama atenção para um caráter importante do "feminino" definido como tal: trata-se de uma construção social. Nela, uma divisão fundamental, segundo Pierre Bourdieu (A dominação masculina), identifica o feminino ao passivo e coloca o homem no papel do que cria, organiza, expressa e dirige o desejo. Meninos se tornam viris, não nascem assim. São educados para tal e sofrem cobranças e pressões nesse sentido. Do mesmo modo, diz Simone de Beauvoir em O segundo sexo, não se nasce mulher: torna-se mulher.

    NO CINEMA Novas expressões do feminino na cultura se tornaram possíveis, como também uma subversão no pensamento binário da diferença. Para Márcia Arán, efeitos dessa mudança podem ser observados em alguns filmes: Desde que Otar partiu, de Julie Bertucelli; Questão de imagem, de Agnès Jaoui; Coisas que você pode dizer só de olhar para elas, de Rodrigo Garcia. Neste filme, protagonizado por mulheres, solidão, angústia, ansiedade, desejos reprimidos e solidariedade se manifestam em pequenas histórias que se entrecruzam. O diretor é homem, mas a temática, claramente, é feminina, como também se dá com As horas, dirigido por Michael Cunningham, que tem como uma das personagens a escritora Virgínia Wolf.

     

     

    NA LITERATURA A hora da estrela, filme dirigido por Suzana Amaral a partir do livro homônimo de Clarice Lispector, costuma ser citado como exemplo do feminino no cinema e na literatura. Haveria, então, uma pulsação peculiar nos textos de Clarice ou de Virgínia Wolf, Adélia Prado, Lygia Fagundes Telles? "Ou: o que uma certa ‘experiência coletiva’ do íntimo, do privado, do doméstico teria produzido na escrita de mulheres?", indaga Loponte. Para Lélia Almeida, escritora e especialista em literatura hispano-americana da Universidade de Santa Cruz do Sul, há temas que se fazem mais ou menos femininos, mais ou menos feministas. Romances, contos, dramas teatrais, folhetins que tratam do aborto, da opção por ter ou não filhos, da sexualidade da mulher. E há tentativas, por parte de escritoras contemporâneas, de estabelecer uma tradição literária, inserindo suas produções em "linhagens" que remontam a escritoras consagradas.

    Procurar por uma "essência" feminina nas escritas ou uma suposta delicadeza e sensibilidade feminina em contraposição a uma racionalidade e objetividade masculinas faz cair num binarismo dicotômico perigoso, adverte Luciana Loponte. "Se seguíssemos essa busca, o que explicaria a autoria feminina de Mary Shelley do primeiro romance de horror de que se tem notícia, o famoso Frankenstein, de 1817?", questiona.

    Yara Frateschi e Berta Waldman, do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas, afirmam ter dificuldade em precisar o que seria uma escrita feminina. "Notamos, porém, que, em geral, quando se usa essa expressão, ela aplica-se a uma mistura entre tema, ambiência feminina, comportamento feminino etc., justamente porque essa modalidade da escrita não está definida", afirmam. Segundo elas, caso a definição de uma escrita feminina requeira marcas discursivas como léxico ou sintaxe que seriam próprios das mulheres, ou usadas preferencialmente por elas, essas marcas, se existem, não foram até o momento detectadas nem estudadas.

    AUTORIA Caso o critério recaia sobre a autoria, ele a princípio é falho. Afinal, como o compositor Chico Buarque em diversas canções, o autor de uma história pode ser homem e adotar um ponto de vista feminino. "É o que ocorre, por exemplo, nos romances de Manuel Puig; em Nelson Rodrigues, que assina Susana Flag em vários romances folhetins; em Menina e moça", de Bernardim Ribeiro; nas ‘cantigas de amigo’, compostas por trovadores da Idade Média, com o ponto de vista da mulher. Dessa perspectiva, poderíamos dizer que ‘escrita feminina’ é aquela cujo ponto de vista ‘pretende’ corresponder ao ponto de vista feminino – independentemente do fato de o autor ser um homem ou uma mulher", concluem as pesquisadoras da Unicamp.

     

    Flávia Natércia