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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.57 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2005
ADRIANA LISBOA
ARRUMAR AS MALAS
Lá estão elas, abertas, no chão do quarto. Com toda a doçura e a obstinação de páginas em branco para as quais é preciso escolher a cor, a palavra. As malas são coisinhas recém-nascidas, perguntando: Para onde? Como? Quando? Com quem?
Arrumar as malas é sempre uma dobradiça entre dois instantes mágicos (e perigosos): partir, chegar. Sem partir, não se chega. Para se chegar, foi necessário um dia o gesto e o gosto de partir. Nem sempre simples. Nem sempre festivos. Necessariamente: você parte de algum lugar e chega a algum outro.
Podem ser casas distintas dentro de uma mesma cidade. Um mesmo bairro, até: a porta da primeira se tranca, você entrega a chave, não está em absoluto fazendo turismo. Precisa pisar firme no chão onde chega, como o bicho que ganha território. Olhe-se no espelho, se houver um espelho. Tem um sorriso ali? Guarde, dá sorte.
Ou talvez seja uma noite de briga e chuva e você arrume as malas com a pele trêmula, com idéias de granizo debaixo dos cabelos desalinhados (os cabelos sempre estão desalinhados nessas horas, é claro, o que não tem a menor importância). Pense numa piada. Pode ser de humor negro provavelmente vai ser. Guarde, dá sorte.
Talvez você esteja indo para uma outra cidade, um outro país. Nesse caso, precisa saber como está o clima desse lugar. Se tiver amigos por lá, escreva, telefone, pergunte. Leve um guarda-chuva, pelo sim, pelo não. O mundo é traiçoeiro de formas distintas: como é que é o verão de lá? O inverno é seco. Te queima. O verão chove. Te decepciona. As sandálias deviam ser botas. O agasalho, o cachecol que se esqueceu. Mas no meio de tudo olha só! está a candura solar de uma praia imprevista. Areia entre os seus dedos, vento passeando no seu corpo, em segredo.
Você precisa identificar suas malas, caso elas optem por se perder e ganhar o mundo. Mesmo para quem vai apenas dobrar a esquina e, na proteção do primeiro hotel, começar a se fazer perguntas já velhas de tanto esperar. Uma esquina é suficiente para ficar sem suas malas, para perder aqueles pedaços mais preciosos de você que vêm sendo colecionados desde lembra-se desde quando?
Tudo depende também do tempo de que você dispõe para arrumar as malas. Talvez o processo tenha de ser muito rápido, e só haja os poucos minutos em que o inimigo está rosnando ao telefone, no cômodo ao lado, ou ressonando na cama/na rede/no sofá. Se esse for o caso, é preciso ser ágil e eficaz. Controle seus movimentos. A mala é um pouco uma toca. Ou uma janelinha onde colocar a cabeça e respirar. O que vai nela nem é tão relevante. Basta saber que ela vai.
Mas pode ser que o tempo seja uma esteira comprida, e as malas, quase-desertos na travessia por vir. Longas malas, de dias e noites se ultrapassando sem pressa. Neste caso, é possível travar um outro tipo de amizade uma coisa mais maturada. Mais decantada. Com todas as miragens sutis dos desertos.
As malas surgem, então, com subdivisões, como se fossem quartos: aqui cabem os presentes escolhidos com cuidado, pequenos nichos de saudade. Para a menina que ainda não lê. Para a irmã que se separou. Para o amigo que gosta de música. Para o que engordou, para o que cresceu, para o que envelheceu. Para a pessoa que te aguarda com mais expectativa do que as outras. Cabem as peças de roupa escolhidas a dedo, lavadas antes, e passadas, perfumadas. O verde que cai bem com o branco. Um azul que convida o outro. O terno que não se usa desde o casamento. O salto que lembra aquela noite de festa. O chapéu (não acredito que você ainda tenha esse chapéu).
Também conta: se você vai ou se volta. Às vezes isso se mistura na cabeça da gente. A tal da dobradiça oscila para um lado e para o outro porque um vento suspeito soprou. Vou, pode ser que volte, pode ser que não. Estou, na verdade, voltando. Vou, e isso equivale a voltar (para o lugar de onde nunca deveria ter saído). Vou, e isso equivale a ir mesmo (oxalá para sempre). Vou, mas me espere que eu volto já não me confunda com o cara que saiu para comprar cigarros e nunca mais apareceu.
As malas podem ser duas, três. Ou uma só. Pequenina. Minimalista. Os olhos te espiam de dentro do fundo escuro e vazio. Repetem as perguntas: Para onde? Como? Quando? Com quem? Depois acrescentam, baixinho: se você não souber as respostas, deixa estar. Também é uma viagem não saber em que viagem se vai.
Adriana Lisboa nasceu em 1970 no Rio de Janeiro. Escritora e tradutora, é graduada em música e pós-graduada em letras. Publicou, sempre pela Editora Rocco, os romances Os fios da memória (1999), Sinfonia em branco (2001) e Um beijo de colombina (2003), os minicontos de Caligrafias (2003) e, para crianças, Língua de trapos (2005). É co-autora do roteiro do filme Bodas de papel, de André Sturm, a ser lançado em 2006. Por Sinfonia em branco recebeu, em Portugal, o Prêmio José Saramago. Em 2005 foi contemplada com o Prêmio Fundação Bunge / Romance (categoria juventude). Seus livros foram publicados em Portugal e na Suécia.