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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.58 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2006

     

     

     

    INCLUSÃO SOCIAL

    Legenda e áudio-descrição na televisão garantem acessibilidade a deficientes

     

    Na sociedade globalizada de hoje, a palavra de ordem é acessibilidade. No debate que a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) suscitou, em nenhum momento se faz referência a cegos e surdos, como integrantes de um público que é privado da cultura audiovisual brasileira. O problema está, em primeiro lugar, na exclusão social e intelectual.

    Quando falamos em línguas, geralmente pensamos em idiomas, e no ato da fala ou da escrita que os expressa. No meio audiovisual, e mais precisamente, na televisão brasileira (no cinema e teatro, nem se fala!), raramente lembramos daqueles que não escutam e que não vêem. Portanto, aqueles que usam outras formas de comunicação, outras línguas. Chegamos até a subestimá-los, confundindo nossa ignorância com uma suposta desvantagem intelectual deles. Custa-nos entender, por exemplo, que os surdos brasileiros têm a sua língua, eles falam a Língua Brasileira de Sinais (Libras), e que o português é sua segunda língua, como uma língua estrangeira. Parece óbvio, mas o fato só ficou claro através de uma pesquisa – publicada na Europa em 2003 – sobre a recepção da legenda fechada por um grupo de surdos de Fortaleza, realizada em parceria com Vera L.S.Araújo, da Uece. Justifica-se aí a dificuldade do surdo com a leitura do português, e da verborrágica e dessincronizada legenda fechada – closed caption – que é disponibilizada em poucos programas da Rede Globo. O fato nada tem a ver com a emissora ou seus tradutores, mas com uma política protecionista e pretensiosa do audiovisual, que define o quê, quando e como surdos terão acesso ao meio. A pesquisa demonstrou que a legenda fechada disponibilizada atualmente – seja ela do tipo roll up (para programas de não-ficção), ou pop on (para programas de ficção) – pouco tem a ver com as necessidades, preferências ou expectativas dos surdos.

     

     

    Com os cegos, o problema é ainda pior porque, até o momento, nenhum suporte de representação visual é disponibilizado para complementar o áudio. Apesar de já ter sido demonstrado pela psicóloga Maria Eduarda S. Leme (Unicamp, 2003), que o cego consegue construir imagens lógicas através de seu ouvido apurado e do conhecimento facilitado pelo convívio social, o que fazer com cenas silenciosas, imagens distorcidas, letreiros, placas, onde as informações se manifestam visualmente? Há alguns projetos de lei na Câmara que tentam assegurar uns poucos direitos aos portadores de necessidades especiais, inclusive no que se refere ao meio audiovisual. A intenção é boa, mas não garante a acessibilidade desejada aos 12 milhões de cidadãos com problemas auditivos e aos 5 milhões de cegos no país.

    Mas há luz no fim do túnel, até para os cegos. Pesquisando os anais do Fórum de Barcelona 2004 (www.barcelona 2004.org), encontramos no resumo do debate sobre Comunicação Audiovisual Global, Diversidade Cultural e Regulamentação, a seguinte afirmação: "Se o direito à comunicação e à informação também é um direito universal, a mídia pública e privada também deveria cumprir com a obrigação de fortalecer valores democráticos, elevar a diversidade e qualidade de seu conteúdo (especialmente no que se refere às crianças), ajudar as pessoas com deficiências físicas a ganhar acesso ao conteúdo, e garantir a normalidade nas suas descrições de minorias sociais".

    A Europa, sem dúvida nenhuma, é exemplo a ser seguido. Em primeiro lugar, pela prática pioneira da legenda fechada para surdos e da descrição em áudio para cegos. Tradutores e pesquisadores do mundo todo vão à Europa para aprender. Em outubro de 2004, foi realizada, em Berlim, uma oficina sobre descrição em áudio com um de seus maiores especialistas, o alemão Bernd Benecke, que não dispensa a ajuda de seu consultor Elmar Dosh, cidadão cego. Além de indicar como se seleciona a informação visual que realmente importa, algumas regras fundamentais para satisfazer o espectador com deficiência visual foram transmitidas, tais como:

    a. não resumir o que acontece (por exemplo,. não falar "eles brigam", mas descrever a cena "o homem alto dá um soco no homem com um chapéu de palha");

    b. não interpretar o que acontece ( não falar "ele está doente", mas "ele põe a mão sobre a testa e respira fundo");

    c. não dar a informação muito cedo ( "há um homem atrás da porta"), para não estragar o suspense.

    Parece fácil, mas tente colocar essas regras no espaço de tempo entre ruídos e falas. O mais importante, porém, foi descobrir que pouco sabemos sobre o universo do cego.

    LEGENDA FECHADA O desafio é conseguir expressar na escrita aquilo que é falado, os sons locais (risos, telefone tocando) e de efeito (como a música), além de outras complexidades, sem desvincular o texto à imagem que é transmitida. Qualquer tradutor audiovisual sabe que a regra número um da legenda é a condensação do discurso, já que o número de caracteres na tela é extremamente limitado. Junte-se a esse fato a dificuldade de leitura dos surdos, e de identificação do falante com vários atores em cena, ou quando este está fora da tela. Num modelo de legenda fechada que deu certo, como o europeu, vemos uma maior edição, que não acontece aqui, e outras soluções criativas, como o uso de cores e posições das legendas para diferenciar os falantes, e de símbolos gráficos previamente aprovados pelos surdos para representar sinais acústicos. Assim como na descrição em áudio, os surdos também são contratados como consultores ou revisores das legendas fechadas. É o caso da tradução da novela Mulheres apaixonadas em Portugal pela atual especialista no assunto, Josélia Neves, que conta com seu grupo de consultores surdos.

    NA EUROPA O exemplo europeu também deve ser seguido em relação à evidência que dá à questão da acessibilidade em conferências sobre tradução audiovisual. No programa da última conferência na área, realizada em junho passado na Universidade Autônoma de Barcelona, o tema esteve presente na maioria das exposições. É claro que há um interesse comercial forte na questão da acessibilidade pelo mercado tradutório. Mas, por que não usar isso em prol da inclusão social? O que fazer com o conhecimento adquirido na Europa por pesquisadores brasileiros da área? Na espera de recursos tecnológicos que promovam efetivamente o acesso ao audiovisual de surdos e cegos, o negócio é fazer pesquisa, interdisciplinar, inter-universitária.

    Recentemente, unindo pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) formou-se um grupo em tradução. Apoiado por dois especialistas na área de educação física e saúde coletiva para cegos – Admilson Santos (UFBA/UEFS) e Sandra Rosa Farias (UEFS) – a equipe pretende promover sessões audiovisuais com áudio-descrição em instituições de apoio ao deficiente visual, com o intuito de estabelecer critérios para o desempenho dessa atividade tradutória baseados em preferências reais do espectador cego. Já há algumas instituições no Brasil que apresentam algumas sessões de filmes narrados como parte de sua atividade cultural. Contudo, essa narração é feita in loco, e depende da boa vontade de profissionais, pois não há auxílio tecnológico necessário para torná-la parte da programação audiovisual regular. Há um longo caminho a ser percorrido para que a indústria audiovisual brasileira entenda o real significado de acessibilidade. O mais espantoso é que ela parece ainda não ter percebido a potencialidade do público cego e surdo enquanto consumidor de produtos audiovisuais. O exercício da acessibilidade ao audiovisual só será pleno quando houver a inclusão desses cidadãos brasileiros.

     

    Eliana P. C. Franco
    Doutora em letras pela Universidade Católica
    de Leuven, na Bélgica. É professora do curso de
    graduação em letras (inglês) e de pós graduação
    em letras e lingüística da UFBA.