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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.1 São Paulo jan./mar. 2006

     

    FRONTEIRAS

    A ARTE DIANTE DO LIMITE DO ESPAÇO FÍSICO

     

    Literatura e cinema encontram grande fonte de inspiração em confrontos territoriais de fronteiras e situações de exceção: campos de refugiados, cidades sitiadas, guerras. A obra de Manuel Scorza, escritor peruano auto-exilado em Paris, é um bom exemplo: na década de 1970, compôs um conjunto de cinco livros dedicado aos quéchuas e a sua luta contra a invisibilidade a que as autoridades locais, regionais e nacionais os relegam. Numa linguagem marcada pela ironia, Scorza se valeu de uma mitologia em larga medida inventada – apenas dois mitos apresentados pertencem à cultura quéchua – para abordar, com originalidade, fatos que realmente aconteceram e personagens de carne-e-osso.

    Ele adota o gênero literário do realismo mágico, no qual o insólito, o sobrenatural é incorporado ao real, e que celebrizou diversos escritores latino-americanos, como o colombiano Gabriel García Márquez e o mexicano Juan Rulfo.

    Scorza criou e desenvolveu metáforas que pretendiam iluminar o poder desmedido, fosse ele político, exercido pelo governo, fosse ele econômico, exercido pela empresa transnacional norte-americana Cerro de Pasco Corporation. Para ele, "os mitos são sempre para mostrar a gravidade da situação", ou seja, prestam-se à desmistificação do poder. Assim é que na primeira balada, também o primeiro livro do autor, Bom dia para os defuntos, à altura do décimo capítulo, uma cerca, a "lagarta de arame", "parida" pela noite, em uma das paredes do cemitério do vilarejo de Yanacancha, vizinho de Rancas, se detém, medita, se divide, rasteja, pernoita; não acaba, quer "cercar o mundo"; não parece coisa de gente, teria vida própria: "Às seis da tarde tinha uma idade de cinco quilômetros".

     

     

    Fortunato, um dos heróis do livro, dispensa qualquer explicação mítica para o fenômeno e diz à outra personagem: "Uma cerca é uma cerca. Uma cerca significa um dono, Dom Marcelino". E, se não é coisa de gente, tampouco a cerca é de Deus, diz Pis-Pis, que tem amigos motoristas que circulam para além do que os habitantes locais alcançam a pé ou a cavalo: "Não é Deus, paizinhos, é a Cerro de Pasco Corporation". Mais que uma simples cerca que demarca uma propriedade, tornada mítica, esta é uma revelação da presença da transnacional. As autoridades não a vêem, como não vêem a causa indígena, nem Garabombo, o invisível, personagem principal e título da segunda balada.

    Ele se torna "vítima" de uma moléstia que o faz invisível para as autoridades e só se curará no dia em que os comuneiros forem "valentes" e ele puder assumir o comando de sua cavalaria. No entanto, ao longo das cinco baladas, os elementos míticos perdem importância no projeto do autor, a conscientização e o amadurecimento político dos quéchuas. A "operação", segundo Scorza, é clara, e "tende justamente ao abandono do mito", que servira inicialmente como resistência. Quando os quéchuas lutam, de fato, e fazem-se vítimas de mais um massacre, o mito deixa de valer como abordagem. Tampouco é uma resposta ou solução possível. Despido de metáforas, o último livro chega a ser quase um panfleto.

    A CERCA CINEMATOGRÁFICA Uma cerca também simboliza em parte a opressão e o conflito na co-produção franco-libanesa Sob o céu do Líbano. O filme recebeu o Leão de Prata (Prêmio Especial do Júri) na Mostra de Veneza de 2003. Seu título original, Le cerf-volant, faz referência à pipa que a protagonista Lamia resgata, correndo risco de vida, ao ultrapassar a fronteira que apartou sua família. Para trocar informações e manter os laços afetivos, as mulheres se valem de alto-falantes. Suas conversas, públicas, respondem por quase toda a graça e a leveza do filme. O pano de fundo é um conflito cuja solução é incerta. Lamia é apaixonada pelo soldado que vigia a fronteira, mas será obrigada pelos parentes mais velhos, a fim de aplacar sua inquietação adolescente, a se casar com o primo Samy. Ele vive na parte anexada por Israel, onde os costumes são mais permeados pelos valores ocidentais. A travessia requer salvo-conduto militar. Deixando para trás sua mãe e seu irmão mais novo, a quem é muito ligada, para se casar, tem de atravessar a terra de ninguém. E não se adapta. Saída, o filme só encontra na fábula.

    Terra de ninguém é o título do filme do diretor bósnio Danis Tanovic, no qual convivência e conflito se encerram numa trincheira. Recusando-se a contar uma história de guerra tradicional, Tanovic opta por narrar uma situação de forma tragicômica. Em 1993, depois de um denso nevoeiro, soldados bósnios se perdem e são bombardeados por sérvios. Quando amanhece, um bósnio, Ciki, e um sérvio, Nino, se vêem obrigados a dividir uma trincheira na "terra de ninguém" que divide os dois territórios. Tentam repetidas vezes matar um ao outro, sem sucesso, até que descobrem que suas vidas estão sob risco.

    Um terceiro soldado, Cera, bósnio, ferido, foi considerado morto e colocado sobre uma mina que pode explodir a qualquer momento, a qualquer movimento. Em cima, fogo cruzado, a Organização das Nações Unidas (ONU) orientada a não intervir, a televisão em busca de imagens e fatos chocantes. Embaixo, um ódio atávico ou alimentado pelos conflitos recentes, que as circunstâncias extremas atenuam, mas não aplacam totalmente. O filme foi premiado com o Oscar e o Globo de Ouro de filme estrangeiro em 2002 e ganhou o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes (2001).

     

     

    INTERDIÇÃO Minas são outra forma de impedir o uso de um território. Um dos problemas que o protagonista do filme Tartarugas podem voar, do diretor curdo Bhaman Ghobadi, tem de enfrentar. Ele não passa de um menino e é conhecido como Satélite (chamado de "sateláit", conforme a pronúncia árabe da palavra anglo-saxônica), porque sabe instalar antenas, tanto as comuns quanto as parabólicas. Apaixonado pela cultura norte-americana, seu inglês é parco, mas os anciãos curdos esperam ter notícias do conflito que se arma entre os EUA e o Iraque e contam, para tanto, com o menino. Assistem à televisão como quem consulta um oráculo. A possível chegada dos soldados dos EUA é fonte de alguma esperança.

    Satelait comanda as outras crianças e adolescentes do campo de refugiados – alguns deles mutilados, sem braços ou pernas – na retirada de minas, que desativam e vendem para sobreviver, e representam as tartarugas do título. Por ironia do destino, ele quase morre tentando salvar o filho renegado de sua outra paixão, uma quase-menina curda, Agrin, estuprada por um soldado americano. O ano é 2003 e o cenário não pode ser mais desolador: um campo de refugiados na fronteira iraquiana. Qualquer esperança, ali, resulta vã.

     

    Flávia Natércia