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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.2 São Paulo abr./jun. 2006

     

    HANNAH ARENDT

    UMA APÁTRIDA DA CULTURA E DA POLÍTICA

     

    Hannah Arendt (1906-75) é uma das figuras intelectuais mais significativas e complexas da cultura do século XX. Judia, fugitiva, se definiu sempre como uma apátrida, desenraizada, uma pária tanto na política quanto na cultura. Testemunha consciente e sensível dos eventos e da tragédia de sua época, estudou na universidade alemã do período de Weimar, com Heidegger e Karl Jaspers. Fugiu da Alemanha em 1933, na ascensão de Hitler, indo residir em Paris. Conheceu Walter Benjamin, Bertolt Brecht e Raymond Aron. Quando os alemães invadem a França, é detida como suspeita; solta, foge para Nova York, onde passa a segunda metade da vida.

    Para Alberto Martinelli, as referências de Hannah Arendt estão simultaneamente em três culturas: a alemã, a hebraica e a norte-americana, sem, entretanto, identificar-se plenamente com nenhuma delas, nem com as nações que lhes correspondem. A Alemanha era a língua-mãe, a filosofia e a poesia, mas dela veio a indelével experiência de anti-semitismo. Sua relação com o judaísmo e com Israel foi mais complexa. Afirmou ter sido "educada com esforço e tormento na experiência judaica", num processo de reapropriação histórica e política das próprias origens, mas com plena autonomia com relação à religião hebraica que, como qualquer religião, não lhe dizia nada. Sua relação com os Estados Unidos foi menos tensa: encontrou em sua época um país multinacional e aberto aos estrangeiros. Não foi cega, entretanto, às tendências políticas daquela sociedade, que produziam a caça às bruxas do macartismo, a intolerância racial, a delinqüência juvenil, a vocação para a degradação.

    Arendt não foi apenas uma mulher de idéias, mas um indivíduo atuante no mundo. Colaborou com organizações sionistas que organizavam a fuga de judeus da Alemanha e recolheu fundos para formar um exército judeu que combatesse ao lado dos aliados contra os nazistas. Logo depois da guerra, sustentou a tese de que a paz no Oriente Médio e a sobrevivência de Israel dependeriam da constituição de um estado não-confessional que oferecesse a cidadania política aos árabes. Essa posição, que a salvava do oportunismo, valeu-lhe violentas críticas da comunidade hebraica internacional.

    O MAL É BANAL Em 1947 foi como enviada especial do New Yorker cobrir o julgamento, em Jerusalém, do oficial nazista Adolf Eichmann, encarregado pela logística de extermínio do holocausto. Com grande coragem, denunciou as reticências acerca do fenômeno do colaboracionismo judaico com os nazistas e o tom teatral do processo, que poderia obscurecer aquilo que era o ponto central, isto é, a banalidade do mal. A figura de Eichmann era, na sua atroz normalidade, a expressão mais inquietante do nazismo. O tipo social característico do totalitarismo é o do indivíduo atomizado da sociedade de massas, incapaz de participação na vida civil, que encontra seu lugarzinho numa organização que lhe anula o juízo. No totalitarismo, esses indivíduos – muitas vezes bons chefes de família - podem inclusive fazer parte de uma máquina de extermínio. Essa posição de Hannah Arendt valeu-lhe, por dois anos, uma profunda campanha difamatória: de Israel, que queria fazer do processo um evento exemplar útil para a legitimação do novo Estado, e da Alemanha, que preferia a imagem de excepcionalidade do mal perpetrado pelos nazistas.

     

     

    AS ORIGENS DO TOTALITARISMO No pós guerra, Arendt pôs-se a escrever uma de suas obras mais instigantes: The origin of totalitarism (1951). Sua tese central é que o totalitarismo é uma forma política radicalmente nova e, na essência, diferente das outras formas historicamente comparáveis de poder pessoal: o despotismo, a tirania, a ditadura. Onde se implantou, o totalitarismo destruiu todas as tradições sociais, políticas e jurídicas, substituindo-as por formas completamente novas. Um dos resultados dessa operação, tão ao gosto da apologética modernista, é a criação da sociedade de massas, que transforma as populações em multidões de indivíduos intercambiáveis; os partidos são substituídos por movimentos de massas; a subordinação política das pessoas amplia-se até a invasão da esfera privada; o centro do poder é transferido para a polícia e o exército.

    A CONDIÇÃO HUMANA A produção científica da Hannah Arendt é rica e multiforme, abarcando ensaios de crítica literária, obras filosóficas e importantes contribuições na teoria política. Em The human condition (1958) reconstrói a degradação da idéia grega de politéia, isto é, do Estado e da cidadania no sentido de direito de todos os cidadãos. Essa obra indaga: nas condições de bem estar econômico e paz civil, qual é a condição da liberdade política? Qual é o espaço consentido para a ação política que não seja apenas a defesa dos interesses materiais ou mero comportamento exterior para o ritual eleitoral? Nas suas respostas, Arendt indica uma teoria libertária da ação na época do conformismo social.

    Hannah Arendt foi lealmente criticada por alguns filósofos marxistas, que viram na sua crítica ao totalitarismo um apagamento das diferenças entre nazismo e socialismo. Os acontecimentos políticos posteriores, entretanto, puderam mostrar que esses dois regimes possuíam natureza comum, sendo formas esdrúxulas de acumulação de capital em sociedades historicamente atrasadas. A história parece dar razão ao seu pensamento.

    Hannah Arendt morreu em 1975: foi poupada das formas finiseculares da estupidez das massas, de Sabra e Chatila, da nossa obscena miséria cultural, do infinito retorno das guerras étnicas.

     

    Carlos Eduardo O. Berriel
    é professor do Instituto de Estudos
    da Linguagem, da Unicamp.