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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./set. 2006

     

     

    A invenção científica segundo o modelo da sociologia dos cientistas e os Social Studies of Science*
    Carlos José Saldanha Machado*

     

     

    Ao formular perguntas sobre o meio e as formas de organização social da pesquisa que permitem e favorecem a produção de novos conhecimentos, e sobre o porque da prática científica ter se tornado um fenômeno de grande importância, os autores que no século passado criaram, praticaram ou ajudaram a desenvolver a sociologia dos cientistas como Bernard Barber, Bernice Eiduson, Gerard Lemaine, Joseph Ben-David, Norman Storer, Pierre Bourdieu, Robert Merton e Warren Hagström, ofereceram uma tríplice perspectiva sobre a questão da invenção. A primeira, tentou definir o funcionamento ideal e atemporal do mecanismo individual dos cientistas. A segunda, propôs uma focalização normativa baseada na questão de quais são as boas condições para inventar. A terceira, dá ênfase no contexto sociocultural, isto é, nas conjunções temporais favoráveis à emergência das descobertas. Nesse sentido, o modelo da sociologia dos cientistas abriu um campo inexplorado, constitutivo da invenção, que são os tipos de recompensa proposta ao pesquisador, as maneiras pelas quais eles obtêm retribuição, as maneiras de redigir as publicações, as relações sociais de um laboratório e sua motivação. Essa sociologia fez da descoberta o produto de um processo sociocultural. Contudo, ao descrever o comportamento do cientista como sendo o fruto de um sistema de concorrência, do qual ele é parte integrante, a sociologia dos cientistas juntou-se à filosofia clássica da ciência sobre uma das definições que ela dá do indivíduo: se ele não é genial, então, ele passa a ser totalmente absorvido no social. Ambos os modelos definiram as descobertas como acontecimentos surgidos naturalmente, que podiam ser identificadas sem nenhum problema e, uma vez identificadas, podiam ser explicadas ao serem relacionadas a acontecimentos anteriores. Em outras palavras, a invenção – e, com muita freqüência, invenção e descoberta não são diferenciadas, – consiste em revelar noções já objetivamente presentes onde um corpo de conhecimento científico e técnico, relativamente estruturado, num dado momento, permitiu a emergência das mesmas.

    Mas, essa sociologia não nos permite compreender a singularidade da invenção e de um inventor no processo de inovação. Na realidade, a categoria da descoberta como acontecimento possível nunca foi questionada por ser considerada da jurisdição da atividade científica, permanecendo um ponto cego no processo de observação sociológica da inovação. A interpretação do conteúdo científico nunca foi abordada. Ficava-se, então, sem compreender como os cientistas trabalham e como eles decidem sobre se o que têm sob os olhos é novo ou autêntico, em resumo, se é uma descoberta.

    COMO SE CONSTRÓI O SABER Tal problemática será abordada, então, no vasto campo multidisciplinar de pesquisa conhecido, no mundo anglo-saxão e europeu, como Social Studies of Science ou Studies of Science. Trata-se de um campo formado por perspectivas novas sobre a maneira como se constrói o saber, perspectivas que começaram a emergir à partir de meados dos anos 70 do século passado quando historiadores, filósofos, antropólogos e sociólogos passaram a abordar novos problemas, tanto disciplinares quanto interdisciplinares.

    Ao contrário da filosofia clássica da ciência, que se interessava pelo contexto de justificativa por acreditar que o contexto de descoberta tinha uma natureza impura, autores como, por exemplo, Andrew Pickering, August Brannigan, Bruno Latour, Harry Collins, John Law, Karin Knorr-Cetina, Martin Rudwick, Michael Lynch, Michel Callon, Sharon Traweek, Simon Schaffer e Trevor Pinch se voltarão para o contexto de descoberta posto que ele define a natureza da racionalidade científica, isto é, a objetividade, a prova e a verdade. A descoberta passa, então, a ser investigada não mais como um fato estabelecido por filósofos, psicólogos e sociólogos dos cientistas, mas como o fruto de um processo social. A palavra "social" deixa de ser somente sinônimo de organização social da ciência e passa a ocupar um lugar no coração das interpretações e da construção dos fatos científicos. Esse novo campo de pesquisa, pouquíssimo explorado teoricamente por pesquisadores brasileiros, se interessa pelo conteúdo do saber científico, pelas práticas concretas das ciências geograficamente situadas, pela natureza de suas inter-relações e a ligação das ciências com o resto do coletivo. Alguns sociólogos não se perguntarão mais sobre o que faz surgir uma descoberta, mas sobre o que faz com que certos acontecimentos sejam considerados descobertas, isto é, não mais como a idéia vem ao espírito mas como a idéia vem à sociedade. Outros, se apegando às práticas e às suas dinâmicas, mostrarão como a atividade científica produz fatos científicos e cria uma realidade que se torna uma descoberta.

    SOCIOLOGIA DA TRADUÇÃO Dentro do campo dos Social Studies of Science merece destaque a sociologia da tradução de Michel Callon e Bruno Latour. Trata de uma abordagem que rompe com as clássicas polarizações entre natureza e sociedade, contexto de descoberta e contexto da justificação, interno e externo, contexto e conteúdo, centro e periferia, compreendendo os conhecimentos tecnocientíficos como efeitos de uma multiplicidade de interações sociais e técnicas desenvolvendo um novo modelo sobre a descoberta e a invenção. O modelo da tradução se posiciona contra uma concepção amplamente difundida que faz da ciência uma entidade estável no curso do qual emergem ilhas de novidade sob a forma de idéias. Gênios, pela força de suas idéias, são capazes de revolucionar nossa visão do mundo, desvendando uma natureza escondida. Uma idéia se difundiria somente através da força de sua lógica, numa sociedade que só tem a possibilidade de aceitá-la ou recusá-la. A sociologia da tradução irá mostrar, ao contrário, como da desordem nasce a estabilidade, como a natureza torna-se o fato socialmente construído, como a criação é um fenômeno coletivo e material e não o fruto de idéias geniais ou de processos cognitivos específicos, enfim, como a novidade é um resultado e não uma qualidade inscrita nos dados de partida. Revertendo a maneira de colocar os problemas, a questão do motor da descoberta torna-se obsoleto. Ele não está nem na cabeça dos indivíduos, nem nos critérios sociais estabelecidos. Ele está distribuído num coletivo.

    A sociologia da tradução contrapõem-se, portanto, à idéia de uma origem da inovação, à separação entre social, tecnologia e ciência, além da improvisação romântica. E, neste sentido, a sociologia da tradução oferece um novo modelo sobre a descoberta e a invenção. A investigação empírica se apóia no acompanhamento das controvérsias e das práticas de laboratório conduzindo à constatação de que a natureza não é mais a causa do encerramento das controvérsias e, sim, conseqüência. O termo invenção, então, desaparece em proveito de um novo vocábulo, a inovação. Concluindo, com a sociologia da tradução, somos convidados a repensar o papel do ator da invenção.

    Carlos José Saldanha Machado é antropólogo do Departamento de Estudos em Ciência e Tecnologia - Centro de Informação em Ciência e Tecnologia/ da Fundação Oswaldo Cruz.  

     

     

    * Este artigo é fruto da pesquisa exploratória que resultou no projeto "Redes cooperativas e inovação em saúde pública – estudo de caso do processo de construção social, coletivo e local da Rede Vacinas Recombinantes e DNA da Fundação Oswaldo Cruz", de autoria de Carlos José Saldanha Machado e Márcia de Oliveira Teixeira, numa parceria entre o Centro de Informação Científica e Tecnológica e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz, a ser realizado entre 2006 e 2008.