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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.58 no.3 São Paulo July/Sept. 2006

     

     

     

    AQUECIMENTO GLOBAL

    Vento de furacão esquenta debate sobre mudança climática

     

    Mudanças climáticas globais não só estão aquecendo a Terra. Política e debate científico também estão inflamados pelo efeito estufa. E, nos últimos meses, ventos de furacão também se abateram na comunidade dos climatologistas.

    Que ciclones e furacões possam ter altíssimo poder de destruição, nunca foi mistério. Uma ligeira lista do que aconteceu nas últimas décadas fala por si. Em 1970, um ciclone no delta do rio Gange causou uma das maiores tragédias registradas na história: cerca de 300 mil vítimas em Bangladesh. Em 1974, o furacão Fifi matou 8 mil pessoas no Honduras. No ano seguinte, na China, tempestades mataram 85 mil. Em 1991, as inundações causadas por um ciclone em Bangladesh deixaram mais de 130 mil mortos, enquanto um ano depois, nos EUA, o furacão Andrew, causava 58 vítimas e dezenas de bilhões de dólares de danos. Em 1998, o furacão Mitch se abateu sobre Honduras, Nicarágua, Guatemala e Salvador, causando entre 10 e 20 mil vítimas e 2 milhões de pessoas sem teto. Em 2004, Catarina, ciclone com características de furacão, nasceu onde nunca se imaginava: foi o primeiro observado no sul do Oceano Atlântico, atingindo o litoral do estado de Santa Catarina. Em agosto do ano passado, o furacão Katrina causou 1,6 mil vítimas e danos de US$ 75 bilhões em Nova Orleans, nos Estados Unidos.

     

     

    Será que furacões de alto poder de destruição se tornaram fenômenos menos raros? De acordo com recentes pesquisas, tudo parece indicar que sim. O culpado é o aquecimento global? A resposta é: talvez. O debate sobre o tema esquentou recentemente bem mais que a temperatura do planeta. "É altamente improvável que o aquecimento global contribuiu ou contribuirá para uma mudança drástica em número ou intensidade dos furacões", afirma o site oficial da National Oceanic and Atmospheric Administration (Noaa), uma das maiores instituições de meteorologia dos EUA. O que foi contestado em julho do ano passado por Kerry Emanuel, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology, em carta à revista Nature: "meus estudos sugerem que um aquecimento futuro pode levar a uma tendência crescente no potencial destrutivo dos ciclones tropicais". Pouco depois, pesquisadores liderados por Peter Webster, professor do Georgia Institute of Technology, publicavam artigo na revista Science que, após analisar intensidade e número de ciclones dos últimos 35 anos, concluía: "foi observado um grande aumento em número e proporção de furacões chegando à categoria 4 e 5" (os graus mais altos na escala de Saffir-Simpson).

    Esse debate acarreta potenciais conseqüências políticas e midiáticas. Quando o Katrina destruiu New Orleans, muitos indagaram se não seria um sinal do aquecimento global. O jornalista Ross Gelbspan, logo após o desastre, escreveu no Boston Globe: "deram ao furacão de ontem o apelido de Katrina… Seu verdadeiro nome é aquecimento global". E acrescentou, polemicamente: "infelizmente, pouquíssimas pessoas na América conhecem o verdadeiro nome do furacão, porque as indústrias de carvão e petróleo gastaram milhões de dólares para manter a opinião pública em dúvida sobre o assunto". Em abril passado, outro artigo foi publicado pelo grupo do Webster e de Judith Curry na Science, afirmando que a tendência ao aumento de furacões intensos "é diretamente ligada ao andamento da temperatura da superfície do mar".

     

     

    DEBATE RETÓRICO "Na verdade, este debate é, em certa medida, retórico", comenta Carlos Afonso Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), "porque a correlação entre furacões e temperatura da superfície dos oceanos já está provada. A dúvida, apenas, é se já estamos assistindo aos efeitos do aquecimento global sobre os furacões, ou se isso acontecerá somente nos próximos anos". Nesse último trabalho – em que Webster e seus colegas analisaram furacões entre 1970 e 2004 –, descobriu-se que o número total de furacões não mudou sensivelmente. O que aumentou é a proporção dos furacões mais fortes.

    Os recentes furacões podem já ser atribuídos ao aquecimento global? Webster e colegas dizem que sim, o instituto de meteorologia americano diz que não, porque este tipo de fenômeno tem uma ciclicidade de 20-25 anos. A questão, talvez, não seja tanto sobre o que acontecerá, mas sobre o que fazer.

    COTAS DE CA RBONO Em 1990, a pedido das Nações Unidas, 2 mil especialistas indicaram num documento conjunto, que era preciso cortar as emissões de dióxido de carbono de 50 a 70%. Significava dizer adeus a carvão e petróleo, um negócio de US$ 3 trilhões anuais. Seguiram complexas negociações. Em 1992, na conferência do Rio de Janeiro, aprovava-se o chamado princípio de precaução: "quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental". Mais de 170 países assinaram. George Bush, então presidente dos EUA e pai do atual, se recusou: "o estilo de vida americano não é negociável", declarou.

    Cinco anos depois, a maioria dos governos do planeta estabeleceu em Kyoto o que era "economicamente viável": o máximo era tentar diminuir as emissões até 2012, mas em 5,2% do nível acordado em 1990: como apagar um incêndio com conta-gotas. "Mesmo assim, Kyoto representa um importante avanço. Não só do ponto de vista simbólico, mas também prático, porque incentiva pesquisas tecnológicas em busca de alternativas energéticas e de uso sustentável dos recursos", diz Nobre.

    O Protocolo de Kyoto entrou em vigor em fevereiro de 2005. Os Estados Unidos não assinaram, novamente, sob a mesma alegação: "não colocar em risco o estilo de vida americano". Embora muitos estados daquele país venham tentando pôr em prática a diminuição das emissões, a evidência, porém, é que a temperatura do planeta e os furacões, assim como o nível de vida, não parecem ser negociáveis.

     

    Yurij Castelfranchi