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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./sep. 2006

     

     

     

     

    LANÇAMENTO

    Livro faz relato autobiográfico de um "assassino" econômico

     

    John Perkins foi por bastante tempo uma figura respeitada dentro da iniciativa privada estadunidense. Funcionário de influente empresa de logística especializada em cálculos e projeções de infra-estrutura, ele viajou o mundo prestando assessoria a governos diversos, vendendo as maravilhas que gastos com estradas, sistemas elétricos e barragens poderiam fazer para o desenvolvimento de nações pobres. Um tipo de executivo que muitos veriam como comum nesse tipo de negócio. Perkins, porém, discorda – para ele, sua qualificação mais exata seria "assassino econômico".

    John Perkins é autor de Confissões de um assassino econômico (Cultrix, 272 páginas), livro autobiográfico que expõe, de maneira assustadoramente crua, os esquemas subterrâneos através dos quais se entrelaçam os interesses e métodos do governo dos EUA, das grandes corporações e de instituições financeiras multilaterais.

    ENDIVIDAR, MAIS E MAIS Economista de formação, Perkins teve uma carreira meteórica. Ex-aspirante ao serviço secreto dos EUA e veterano de uma temporada na Amazônia junto ao Corpo de Paz do exército, ele foi contratado, em fins dos anos 1960, pela Chas T. Main Inc. (MAIN), empresa especializada em logística e infra-estrutura – ramo de companhias como a Halliburton ou a Bechtel, que atuam hoje na reconstrução do Iraque. Seu trabalho, porém, ia além da simples busca por lucros. Perkins era o que, no mundo da espionagem, costuma-se designar "assassino econômico" (AE). Seu objetivo era garantir, através da manipulação de dados macroeconômicos, o endividamento deliberado de nações subdesenvolvidas.

    O jogo funcionaria assim: a MAIN ofereceria a certo país um plano para a modernização de sua infra-estrutura. Os técnicos da companhia manipulariam suas projeções (inflando estatísticas de crescimento no setor elétrico e outros), e garantiriam que a empresa contratada fosse norte-americana. Para bancar o investimento, facilitariam linhas de crédito com instituições financeiras multilaterais sob forte influência dos EUA, como o Banco Mundial.

    Inflando as necessidades de investimento em infra-estrutura, e condicionando sua realização a empresas estadunidenses, a MAIN mataria dois coelhos com uma só cajadada – o dinheiro nunca chegaria a sair dos EUA, e o país contratante se veria enredado num débito alto demais para ser pago. Uma vez que a divída chegasse ao insustentável o credor poderia, então, reclamar, como contrapartida, a instalação de bases militares no território do devedor, seus recursos naturais ou seus votos em processos decisórios de organismos multilaterais. Ou ainda, mais recentemente, a aceitação de acordos de livre-comércio e privatização de empresas públicas.

    CORPORATOCRACIA Essa correlação de forças entre corporações, governo dos EUA e organismos financeiros internacionais – batizada "Corporatocracia" por Perkins – não seria, defende o livro, fruto de mero acaso. Para o autor, tratar-se-ia de uma azeitada máquina, um sistema que abrangeria universidades, grupos econômicos, políticos, organismos multilaterais, militares e a comunidade de espionagem/informação.

    Corporações como a MAIN, garante o autor, teriam vínculos estreitos com as agências de espionagem e o alto escalão do governo dos EUA, servindo, em muitos casos, como testas-de-ferro da política estadunidense junto a países em desenvolvimento – condicionando serviços ou projetos de infra-estrutura a certo alinhamento político, por exemplo.

    Para Perkins, sua contratação pela MAIN e rápida ascensão na empresa – ele chegou a ser ser o mais jovem sócio da história da companhia – seriam o resultado de sua experiência no exército e de seu flerte junto à comunidade de inteligência – seu nome teria sido, ele acredita, indicado por agências governamentais. Para além disso, ele garante, no livro, que seu treinamento na corporação foi bancado pelo serviço secreto estadunidense, que teria designado uma misteriosa agente, Claudine, como responsável por sua formação como AE.

    Por conta disso tudo, um AE funcionaria como uma espécie de linha de frente da política externa estadunidense. Eles trabalham em corporações influentes, circulam pelo mundo acadêmico, escrevem livros, têm espaço garantido na imprensa. Sua missão seria a de, infiltrados em círculos de influência diversos, alinhar a política e a economia dos países em desenvolvimento aos interesses do governo dos EUA e de grandes grupos econômicos.

    CHACAIS E SOLDADOS Os AEs não estariam, porém, sozinhos em sua missão. Se mal-sucedidos em seu trabalho, entrariam em cena outros protagonistas: os chacais. Estes são os assassinos do serviço secreto, gente que, garante Perkins, seria responsável pela morte de políticos como Salvador Allende (presidente do Chile), Jaime Roldós (presidente do Equador), Jacobo Arbenz Guzmán (presidente deposto da Guatemala), do general Omar Torrijos (ex-chefe de estado do Panamá).

    Subornando guarda-costas e promovendo atentados, os métodos dos chacais são um tanto menos sutis que os dos AEs. E, como estes, os chacais também falham às vezes. Neste caso, uma última e truculenta medida é tomada: é hora de chamar o exército. O Iraque, velho alvo da política externa dos EUA, aponta o autor, seria um caso clássico dessa dinâmica intervencionista: apesar dos AEs, Saddam nunca foi seduzido pelas propostas das corporações norte-americana. Seus guarda-costas, dos mais bem treinados do mundo, teriam debelado não poucos atentados contra sua vida. Restaria o exército, terceira opção. E todos sabemos o que aconteceu por lá...

    JUNTANDO PONTAS SOLTAS Apesar de narrado em primeira pessoa, cheio de passagens amarradas apenas pela memória do autor, com fatos polêmicos desfiados sem nomes dados aos bois, Confissões de um assassino econômico impressiona. Afinal, ainda que o leitor possa ficar com a pulga atrás da orelha em uma ou outra passagem mais polêmica, o currículo de Perkins o gabarita como profundo conhecedor da zona cinzenta onde governos, corporações e organismos financeiros se encontram.

    O livro não faz muito mais que colocar sob outra perspectiva eventos que, hoje, são tratados como a ordem natural das coisas. A crença no crescimento econômico puro e simples como panacéia, prestidigitações macroeconômicas, a relação promíscua entre iniciativa privada, organismos multilaterais e governos, a pressão de grupos econômicos e governos de países ricos sobre nações endividadas pela privatização de bens públicos e a assinatura de acordos de livre-comércio – Perkins amarra as pontas de fatos que sempre estiveram à vista. Não à toa, ele comenta que a obra maior dos AEs da velha guarda, como ele, foi justamente a transformação de suas diretrizes econômicas macetadas em fundamentos acadêmicos.

    ENTRE IDAS E VINDAS Confissões de um assassino econômico levou mais de uma década para ser gestado. Perkins admite ter aceitado suborno para abandonar o livro em meados da década de 1980. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, resolveu terminar a obra e procurar uma editora. Após negativas de vários grupos editoriais, o livro foi finalmente lançado, em 2004, pela independente Berrett-Koehler Publishers.

    Tiago Soares