SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.58 número3 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./set. 2006

     

     

    LUCI COLLIN

     

     

    NAVÍFRAGO

     

    Ah, pelo que eu tô entendendo você quer que eu diga a verdade? Tá bom, quer saber eu falo: Eu acho, Kara, que você tá passando dos limites e a gente tá perdendo o rumo. É, é isso mesmo que eu penso, me desculpe mas é isso. E se é pra atacar direto a questão é isso: agora você com esta coisa de só pensar na linguadoque1, que coisa ridícula. Me desculpe, mas pediu pra falar eu falei. Pô, Kara, você não acha que é meio impossível manter um relacionamento um relacionamento que se preze um relacionamento equilibrado um relacionamento com introdução desenvolvimento conclusão um relacionamento de qualquer tipo como mãe e filho vô e neta marido e mulher amigo e amigo amiga e amiga amigo e amiga amigo do amigo e amiga do amigo mestre e discípulo yin e yang cachorro e gato se uma das partes interessadas fica o tempo inteiro pensando em outra língua? E ainda mais linguadoque que é tão complicada tem umas palavras que parecem uma coisa e são na verdade outra e tem umas palavras compridíssimas assim emendadas uma na outra e as declinações eu embaralho tudo todas aquelas regras, pensa que já não comprei e já não olhei num manual? E mais os tempos modais. E depois vem o Alceníades com aquele papinho: Ah, não é tão difícil assim, desconsiderando os falsos cognatos e as reverberações fásicas, é um idioma perfeitamente produzível, do ponto e vista dos linguagistas, quer dizer, da psicolingüíce é sim. Quer saber, eu tô me abrindo: Kara, eu bem queria ficar com você pro resto da minha vida quer dizer pro resto das nossas vidas mas tô a ponto de desistir. Calma, Karinha, deixa eu explicar, não é que eu já não goste de você, gosto igual, te adoro, é que até eu aprender a tal língua e depois traduzir tudo (que a gente sempre domina melhor na língua da gente mesmo e fica tentando traduzir, o Alce me explicou) e aí entender o que você quer vai levar um tempo. Vai levar muito tempo, tá entendendo? Tem que dominar as quatro habilidades ler falar escrever e não lembro a última habilidade e tem uns malucos que querem dizer que são cinco habilidades. Deve ser conjugar. E se eu tiver que parar pra procurar as coisas quer dizer os significados o caráter denotativo das coisas no dicionário vai ficar difícil quer dizer vai ficar demorado. Já pensou, Kara, nós num restaurante eu ouço você fazer o pedido e o garçon fica olhando senão a garçonete e eu tenho que pedir Espera um pouquinho por favor, é linguadoque. Aí eu tenho que procurar como se fala steik o poavre, senão, carpaccio alla girandonella, senão fritas mesmo?! Vai demorar uma eternidade. Pode até que eles chamem aquele garçon especial de terno preto ou um supervisor lá da cozinha ou o caixa do restaurante, na falta de alguém mais capacitado pra ocasião, ou até a mulher do gerente que já foi pra Europa, tá percebendo que turundundum2? E as pessoas em volta da gente olhando olhando tentando ser discretos mas rindo por dentro rindo da gente quer dizer de mim, lógico, porque eu é que vou ter que carregar o dicionário! E vai ter que ser um daqueles ilustrados por causa dos objetos, como vou falar rosca da mangueirinha ou estreptococo ou raspada na lateral ou macambúzio? Vai ter que ser em dois volumes, no mínimo, tá sentindo? E se tiver um zeugma, uma seqüência de aliterações uma sinédoque uma metonímia um pleonasmo – vão ficar perdidos, não é triste? Bom, é só isso que tá anuviando o nosso relacionamento. No mais eu continuo te adorando, você sabe, Kara, como sempre adorei. Mas eu acho engraçado você vir com essa de que eu não faço nada que eu não me esforço nem um pingo que eu não dou a mínima que eu não movo uma palha pra manter o nosso amor pra manter o nosso relacionamento. Quer saber, o Alceníades disse que conhecia um professor particular desta língua aí e eu fui lá no mesmo dia e não deu certo porque o professor nem bem abriu a porta já ficava direto falando coisas e coisas sem nem dar uma introdução e eu não voltei. Pra dizer a verdade eu até peguei birra do palavreado todo esquisito mas nem deu chance de reclamar pro homem e tive que pagar a aula do mesmo jeito. Ah, Kara, você sabe, eu juro que pensei que a gente fosse ficar junto até o fim da vida fazer coisas divertidas rir assistir filme deitado escrever lista de compras trocar um tênis que aperta no dedinho olhar o cometa Hellay junto ligar pro disk pizza ligar pro disk pizza ligar pro disk pizza e dá ocupado paciência deixa pra lá vamos comer ovo frito e passar uns momentos difíceis que sempre tem uns momentos difíceis pra passar e você ia dizer pra mim: É só uma fase. Eu queria que alguém dissesse pra mim É só uma fase mas já pensou se você, ainda que tenha uma boa uma ótima intenção, fala É só uma fase nesta língua que eu não domino? Tá entendendo, Kara? Eu ia me sentir uma correntinha enferrujada uma corda desafinada um carro com a vela suja um aparelho de som que não abre o eject um cachorro que não consegue atravessar a avenida uma tesoura sem fio uma esculturinha de barro destas que as crianças fazem na escola na aula de artes e depois ainda pintam com guache um ralo entupido com cabelo uma revista de turfe com os páreos do ano passado um cd riscado que fica pulando aquele pedaço de bolo cortado fininho que despenca antes de chegar no prato da visita uma telha trincada um penico. Ah, Kara, eu gosto tanto de você mas é um momento de sinceridade. Pode olhar fundo nos olhos pode fazer uma pupiloscopia – te juro, é sinceridade: a coisa tá afundando. E agora você vai tentar salvar o nosso amor o nosso relacionamento vai falar falar dar razões explicar por meio de uma abordagem dinâmica e interativa dizer Não é bem assim vai lembrar dos momentos maravilhosos que passamos juntos das noites fantásticas que passamos juntos das coisas incríveis que passamos juntos das promessas belíssimas que prometemos juntos e vai justificar vai detalhar vai me fazer ver vai esmiuçar didaticamente lentamente enfaticamente objetivamente pluralisticamente a questão fartamente ilustrada com exemplos e fotos surpreendentes e eu vou continuar sem entender o dogma da canoa furada. Acho até que dava pra salvar o nosso amor, dava pra reconsiderar dizer Vamos tentar vamos começar do zero vamos deletar vamos passar uma borracha mercur de boa qualidade vamos nos dar mais uma chance. Talvez desse mas deixa pra lá. Talvez desse. Eu vejo o teu esforço. Eu reconheço. Que pena, Kara, tô achando tudo muito triste: eu esqueci de trazer o dicionário.

     

    TRADUÇÃO: WANDAL SOARES

     

     

    Luci Collin é graduada no curso superior de piano, em letras e no curso superior de percussão clássica; doutora em letras pela USP. Recebeu premiações em concursos de literatura no Brasil e nos EUA. Representou o Brasil no projeto literário da Xpo 2000 em Hannover. Participa de antologias nacionais, com destaque para Geração 90 – os transgressores (Boitempo:2002) e 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Record:2004), e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai e Argentina). Leciona literaturas de língua inglesa e tradução na UFPR. Tem livros publicados de poesia – Estarrecer (1984), Espelhar (1991), Esvazio (1991), Ondas e azuis (1992), Poesia reunida (1996), Todo implícito (1998) – e os contos Lição invisível (1997), Precioso impreciso (2001), Inescritos (2004).
    1 A linguadoque (língua de oc) é uma língua muito falada pelos habitantes da região do Linguadócio, ao sul de Guiena e ao Norte do Rossilhão. Por volta do século XIII o Linguadoque compreendia o Gévaudan, o Velay, o Vivarais, etc. Em 1791 o Linguadoque formou os departamentos do Alto Garona, do Aude, do Tarn, do Herault, do Gard, do Ardèche, do Lozère e do Alto Liger. (nota do tradutor)
    2 Este termo é aqui empregado no sentido de gangolina, choldraboldra, acracia ou esbregue. Contudo, gostaríamos de registrar que o vocábulo original pode também remeter a vavavá, no sentido de chacotina, destampatório, estrafuna ou babaréu. (nota do tradutor)