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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.4 São Paulo out./dez. 2006

     

     

    O TRABALHO EM TRÊS TEMPOS

    Marcio Pochmann

     

    De maneira geral, a perspectiva do trabalho traz consigo uma visão pouco otimista. Não há dúvidas que existem justificativas para isso, embora seja justamente nos momentos históricos de maior instabilidade no capitalismo, que surgem as oportunidades de transformação do trabalho.

    Por conta disso, apresentam-se, a seguir, três tempos distintos e possíveis para o trabalho que se está consolidando no mundo. A partir daí, pode-se considerar melhor as oportunidades e os limites do trabalho do futuro.

    NOVIDADES DO TRABALHO DO FUTURO Frente ao considerável avanço do que se reconhece cada dia mais por sociedade pós-industrial, acumulam-se novas e importantes perspectivas acerca do trabalho do futuro não tão distante, muito mais como dúvidas que necessariamente certezas. Um bloco dessas novidades pode ser descrito brevemente a seguir, objetivando lançar algumas luzes sobre as possibilidades de escolhas políticas, sociais e econômicas a cada país, que podem ou não resultar na transformação profunda do atual mundo do trabalho.

    Em primeiro lugar, cabe mencionar a fantástica ampliação da expectativa média de vida. Há mais de cem anos, ainda durante o predomínio da sociedade agrária, a esperança de vida ao nascer não superava, por exemplo, os 40 anos de idade.

    Ao longo do século XX, com o apogeu da sociedade industrial, a longevidade da vida humana praticamente dobrou para os 80 anos de idade, em média. Na sociedade pós-industrial, os mais de 100 anos de esperança de vida ao nascer não mais parecem distantes.

    A partir disso, adicionam-se ainda mais três significativas novidades no trabalho do futuro. Uma primeira relaciona o comprometimento do trabalho com o ciclo da vida humana. Na sociedade agrária, o trabalho era exercido a partir dos 5 a 6 anos de idade para se prolongar até praticamente a morte, com jornadas de trabalho extremamente longas (14 a 16 horas por dia) e sem descanso, férias, aposentadorias e pensões.

    Para alguém que conseguisse chegar aos 40 anos de idade, tendo começado a trabalhar aos 6 anos, por exemplo, o tempo comprometido somente com as atividades laborais absorvia cerca de 75% de toda a vida. Em síntese, viver, naquela época, era fundamentalmente trabalhar.

    Na sociedade industrial, o ingresso no mercado laboral foi postergado para 14 ou 16 anos de idade, garantindo aos ocupados, a partir daí, o acesso ao descanso semanal, férias, pensões e aposentadorias provenientes da regulação pública do trabalho. Com isso, alguém que ingressava no mercado de trabalho aos 15 anos de idade e permanecia ativo até os 60 anos, teria absorvido, por exemplo, cerca de 50% do tempo de sua vida com o exercício do trabalho heterônomo. Nesse sentido, viver já não seria mais somente trabalhar.

    Para a nova sociedade pós-industrial, a inserção no mercado de trabalho está sendo gradualmente postergada ainda mais, possivelmente para após a conclusão do ensino superior, com idade acima dos 23 anos de idade, bem como sincronizada com a saída do mercado de trabalho a partir dos 70 anos. Frente a isso, o trabalho heterônomo deve corresponder a não mais do que 25% do tempo da vida humana. A parte restante da vida não se constituirá, necessariamente, em tempo livre, pois deve corresponder aos deslocamentos espaciais e aos compromissos burocráticos exigidos pela nova organização social.

    A segunda novidade proveniente da maior longevidade da vida decorre da concentração do trabalho no setor terciário, que poderá representar cerca de 90% do total das ocupações. Nesse sentido, o terciário tende não apenas a assumir uma posição predominante tal como representou a agropecuária até o século XIX, com a indústria respondendo por não mais de 10% do emprego total, como passar a exigir, por conseqüência, novas formas de organização e de representação dos interesses num mundo do trabalho muito heterogêneo. Nos Estados Unidos, por exemplo, a indústria emprega atualmente apenas 13% do total dos ocupados, com a agropecuária respondendo por menos de 5% do total da ocupação.

    A terceira novidade a ser ressaltada decorre da profunda alteração na relação da educação com o exercício do trabalho. Até o século XIX, o ensino era somente para uma elite. No século XX, o acesso à educação foi generalizado amplamente pela sociedade industrial, passando a atender diretamente às faixas etárias mais precoces como requisito de preparação para o trabalho. Na sociedade pós-industrial, a educação tende a acompanhar continuamente o longo ciclo da vida humana, não somente como elemento de ingresso e continuidade no exercício do trabalho heterônomo, mas também como condição de cidadania ampliada.

    Por fim, mais duas outras novidades do trabalho. Uma delas encontra-se associada à crescente luta entre fundo público – único que pode sustentar as novidades do trabalho na sociedade pós-industrial – e capital virtual, conforme já enunciado pelo presidente Bush no seu discurso de posse (a revolução da propriedade que altere a titularidade da riqueza no futuro).

    A outra novidade refere-se à nova Divisão Internacional do Trabalho, em que as nações portadoras do futuro e geradoras de postos de trabalho de concepção, com maior qualidade e remuneração, são aquelas que ampliam os investimentos em tecnologia e em bens e serviços de maior valor agregado. Os demais países tendem a se conformar com as disputas pelo menor custo de produção na feira mundial do trabalho precário e de execução, protagonizando a volta ao passado, com elevadas jornadas de trabalho, reduzida remuneração e forte instabilidade contratual.

    Essa situação já é real em vários países, inclusive no Brasil. Num mundo repleto de novidades, algumas nações voltam a expressar a velha forma de inserção periférica que submete o trabalho ao piso do porão, enquanto as elites continuam a apreciar a valorização financeira de sua riqueza. As escolhas de hoje asfaltam, inexoravelmente, o caminho de amanhã.

    OBSTÁCULOS À DEMOCRATIZAÇÃO DOS SABERES DO TRABALHO A nova sociedade pós-industrial também tem sido identificada com a do conhecimento. Inegavelmente, o acesso às informações parece maior, mas não necessariamente mais democrático.

    Nos dias de hoje, o acesso à produção do conhecimento, bem como aos chamados bem culturais (música, filmes, literatura, entre outras), se vê diante de uma inédita possibilidade histórica, por decorrência dos constantes avanços da internet e da proliferação de softwares livres. Isso representa uma verdadeira revolução inimaginável na propriedade intelectual e comercial, que afeta diretamente grandes interesses econômicos e políticos.

    Não sem motivo, os termos – pouco declarados – de uma guerra quase surda entre a velha forma de apropriação privada de produção cultural e do conhecimento e as novas formas livres estão em curso no mundo, tendo o Brasil ocupado um certo espaço privilegiado, seja pela expressiva comercialização de cd’s piratas e da intervenção espontânea dos hackers, seja pela ação organizada de várias esferas dos governos (municipal, estadual e federal) de utilização dos softwares livres e da proliferação de telecentros que disponibilizam a linguagem e os produtos da informática, especialmente a internet.

    Mesmo que o Brasil não disponha, até o momento, de uma política industrial, todos sabem que sem a resolução do tema da propriedade intelectual e das patentes, dificilmente países não produtores de tecnologia poderão alçar uma melhor posição na nova Divisão Internacional do Trabalho. Seu entendimento é essencial para entender as possibilidades que o país possui para deixar a condição de economia especializada na produção e exportação de bens primários, de baixo valor agregado e conteúdo tecnológico.

    Em certa medida e guardada a devida proporção, assiste-se hoje ao curso de uma tentativa organizada de ruptura à apropriação monopólica do conhecimento, talvez somente comparável ao que aconteceu durante a Idade Média. Naquela época, por exemplo, os monastérios funcionavam como verdadeiras ilhas do conhecimento existente.

    Eram verdadeiros monopólios dos saberes até então existentes, com os escribas dominando o alfabeto e controlando privadamente as escrituras. O sistema operativo da produção de tecnologia utilizada e a formação da mão-de-obra especializada eram propriedades não disponibilizadas livremente ao conjunto da população.

    Com toda essa centralização do sistema operativo, os monastérios eram centros de riqueza e fartura que se contrapunham à escassez e pobreza do conjunto da população. O livro O nome da rosa, de Humberto Eco, é bem emblemático do que representou, num certo momento histórico, o poder econômico e político concentrado pela apropriação não pública do conhecimento.

    Em outros termos, o uso não democrático do conhecimento e da informação representou a composição e a prática do exercício do poder econômico e político vigente na época. Somente com o aparecimento dos Estados nacionais e a proliferação das organizações populares é que se tornou viável o abandono da escrita e do conhecimento situado no estágio privado e comercial da apropriação e uso dos saberes.

    Um dos componentes estratégicos do avanço da democracia de massa em pleno século XX passou fundamentalmente pela constituição de uma nova forma de disponibilização do conhecimento. De um lado, houve uma certa socialização do conhecimento básico por intermédio das escolas públicas, que contaram não apenas com financiamento público, mas com diversos softwares produzidos na organização e sistematização dos saberes viabilizados por políticas públicas nacionais, entre elas as industriais.

    De outro lado, a regulação pública das economias nacionais a partir do segundo pós-guerra possibilitou o contingenciamento da concorrência oligopólica entre os grandes grupos econômicos na produção e difusão tecnológica. Nesse sentido, a mercantilização dos saberes e dos chamados bens culturais se generalizou, tendo muitas vezes a moeda como condição de acesso.

     

     

    A democratização do conhecimento e a socialização dos saberes estão em jogo. Sua viabilização é possível, porém depende fundamentalmente da resolução dos seus obstáculos pendentes aos interesses econômicos e políticos associados às velhas formas de produção e controle do século passado.

    ENTRAVES AO MUNDO DO TRABALHO NA ECONOMIA GLOBAL Crescem as insatisfações frente às possibilidades de exercício do trabalho na atual etapa da economia global. Assiste-se, de um lado, à ampliação do descolamento entre a elevação dos ganhos de produtividade e o estancamento do padrão geral de vida da população e, de outro, ao maior comércio internacional assentado no acirramento da competição intercapitalista que generaliza o rebaixamento das condições de trabalho.

    Mais do que as variadas denúncias a respeito das distintas ações empresariais, que se viabilizam com a deslocalização e o estímulo dos fluxos migratórios e se orientam como medidas clássicas na redução de salários e na piora das condições de trabalho, ganharam corpo também as visões de resistência e de reorganização de lutas em torno da sociedade civil. Prevaleceu, todavia, a percepção acerca de certa fragilidade que se tem instaura-se no conjunto dos atores do mundo do trabalho diante da ausência de perspectiva imediata para uma convergência política aglutinadora.

    O diagnóstico praticamente comum acerca do mal estar social que decorre de um capitalismo globalizado ainda não parece ter sido o suficiente para levar a constituição de uma nova maioria política, capaz de apontar para o caminho do amplo avanço social, muito mais além da simples negação do atual curso do projeto econômico neoliberal de dominação mundial. Esse tende a ser um dos principais entraves ao desenlace de um novo mundo possível para o trabalho.

    Enquanto perdurar o desenvolvimento de uma nova Divisão Internacional do Trabalho polarizado justamente entre os países capitalistas centrais em torno do avanço das inovações tecnológicas, demandantes do trabalho de concepção, mais qualificada e melhor remunerada, haverá atração de fluxos migratórios. De um lado, o fluxo das migrações humanas provém dos países com mão-de-obra de alta qualificação e sem expectativa de geração de postos e trabalho, o que se constitui a fuga de cérebros qualificados nos países não desenvolvidos. Esse parece ser o caso do Brasil, com a emigração anual estimada em cerca de 150 mil jovens formados e que buscam em outras nações as possibilidades que não encontram após a formação universitária.

    De outro lado, há uma pressão migratória de pessoas com baixa qualificação proveniente de países pobres, praticamente excluídos da economia global. Na região do Mediterrâneo isso é especialmente constatado, nas relações entre Espanha e Marrocos, Itália e Líbia, entre outros,

    Da mesma forma, deslocam-se para as nações com grande excedente de mão-de-obra as empresas oriundas dos países desenvolvidos, atraídas cada vez mais pela inovação das novas técnicas de gestão da produção que permite operar com empregados de menor custo. Assim, os grupos industriais e cada vez mais os de serviços, como call center, por exemplo, transferem plantas empresariais para países que praticam os menores custos do trabalho.

    Por conta disso, a empresa que se desloca deixa no antigo país uma grande leva de desempregos estruturais. Esses se tornam parte da demografia descartada pelo avanço da competição intercapitalista desregulada, mesmo tendo elevada qualificação escolar ou profissional. Os postos de trabalho restantes terminam servindo de base como uma espécie de chantagem a ser adotada crescentemente pelos patrões visando diminuir custos laborais nos momentos de renovação dos contratos coletivos de trabalho.

    Em síntese, os tempos distintos e possíveis para o trabalho do futuro refletem o curso das decisões tomadas pelos capitalistas, governos e trabalhadores. Inegavelmente, o homem continua fazendo história, determinando possibilidades e limites para a sociedade do trabalho no mundo.

     

    Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).