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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.58 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2006

     

     

    CENAS DO TRABALHO NA TELA

    Ricardo Amorim

     

    Sair, ver um bom filme... Observar a vida que passa na tela... Esses poderiam ser pensamentos de alguém que gosta de cinema e decide sobre qual filme assistirá hoje. Talvez pense também em relaxar, distrair-se do cotidiano, das pressões, do trabalho rotineiro e cansativo. Desde que o homem moderno separou o trabalho das demais esferas da vida, em mundos excludentes, conseguir momentos de fuga se afiguram como um oásis em meio a um deserto de aborrecimento, cotidianos repetitivos e necessidade de autocontrole.

    Realmente, então, não faria sentido ir a um cinema e procurar lá mais uma mostra do cotidiano, mais exemplos de horários massacrantes, metas opressivas e do medo de perder o emprego. Lá, dentro de uma sala escura, a sensação de fugir a realidade, de viver por uma hora e meia outra vida — cheia de aventuras, cores e amores — é uma ilusão tão perfeita hoje, realizada com tal esmero técnico, que poucos deixariam de acreditar que aquele filme é um legítimo instrumento de diversão, sem maiores pretensões.

    Essa mágica só é possível porque o cinema possui duas características que fazem dele uma inigualável "fábrica de sonhos": primeiro, as imagens apresentadas nas telas têm forte poder de sedução sobre os sentidos e velocidade tão vertiginosa que a platéia, incapaz de solicitar uma pausa, torna-se refém da "verdade" apresentada. Em outras palavras, o espectador de cinema, enquanto assiste a um filme, tem uma forte impressão de que a cena mostrada é uma realidade. Cria-se uma ilusão tão perfeita aos sentidos e numa velocidade de informações tão formidável que qualquer questionamento instantâneo torna-se virtualmente impossível. O que fica é a impressão de realidade. Segundo, essa tremenda capacidade de ilusão do cinema é enormemente facilitada pela linguagem dominante construída ao longo dos pouco mais de cem anos dessa arte. Exceção feita aos cineastas que contestam o main-stream, esta linguagem conta estórias onde o narrador passa despercebido, onde as trocas de câmera, de ângulos, de planos amplos para restritos, de personagem para personagem, são suaves, quase naturais, colocando sobre o espectador a impressão de que essas seriam as cenas olhadas por quem curiosamente observa o acontecimento.

    Contudo, essas técnicas "inocentes" em favor da diversão são apenas uma parte pequena do papel da indústria cinematográfica. Em cada filme, na verdade, de acordo com a narrativa, a impressão de realidade infiltra na cabeça do espectador sensações a favor ou contra determinados comportamentos, grupos e idéias que facilmente tornam-se posições acerca desses mesmos comportamentos, grupos e idéias. Em outras palavras, busca-se imprimir, mesmo involuntariamente, valores e éticas sobre os assistentes de cinema a cada nova sessão.

    Todavia, mais importante do que descobrir essa potência da imagem projetada, é perceber que valores e éticas são esses transmitidos todos os dias em todas as partes do mundo. Para tanto, é preciso lembrar que o cinematógrafo nasceu no momento em que a burguesia consolidou-se como grupo social dominante, porém sem que, ainda, seu domínio cultural, estético e ideológico fosse hegemônico. Para que isso acontecesse, o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa foi fundamental. Só quando a ideologia burguesa passou a ser partilhada pelas pessoas comuns e o domínio burguês pôde prescindir do uso constante da violência, sua hegemonia completou-se. E o cinema tem papel de destaque nesse processo.

    Desde que os EUA organizaram a linguagem moderna do cinema, esta baseou-se no contar estórias de heróis individuais, mocinhas frágeis e outros vários preconceitos que reforçaram os valores ascendentes daquele grupo. A questão é que o cinema não nasceu apenas como uma manifestação cultural e sim como um negócio até transformar-se em uma poderosa indústria e, como tal, sempre buscou rentabilidade em seus investimentos. Logo, seus filmes precisavam agradar ao espectador, levando-o as salas de exibição. Desde então — e ainda mais hoje numa cultura pós-moderna e, assim, fragmentada, individualista e pouco crítica — o sucesso veio de estórias de heróis, fáceis, bem contadas, com belos efeitos especiais e, de preferência, capazes de fornecer uma fuga da realidade cotidiana. Filmes, portanto, que reforçaram e reforçam mais a cultura fragmentada, acrítica e de valores éticos burgueses.

    Mas dentre todos esses temas de valorização do indivíduo, um espinhoso precisou ser tratado pelo cinema: o trabalho. Seria perigoso abordá-lo de maneira clara e objetiva, pois traria a baila assuntos como exploração, pobreza e desemprego. Então qual foi a saída? Dois foram os caminhos adotados. O primeiro, glorifica o trabalho em sua forma abstrata, traduzido em esforço, disciplina e dedicação que gera produtos capazes de trazer a riqueza à luz. Não analisa o trabalho em si, porém faz uso dele como apologia. De outra forma, não discute o dia-a-dia dos homens e mulheres em sua faina cotidiana, apenas enobrece o esforço, a disciplina e louva o indivíduo que o executa. Esse herói individual cai como uma luva a temática fácil do cinema tradicional: esconde o asfixiante dia-a-dia, permite a inclusão de estorietas paralelas de aventura e amor, fornece a fuga da realidade e, por fim, coloca em meios tons os conflitos típicos da sociedade de classes. O segundo, procura penetrar as reais formas de trabalho e, mesmo utilizado a linguagem dominante do cinema, esforça-se para mostrar que o dia-a-dia é desgastante e as relações que se estabelecem entre o trabalho e o capital são, na verdade, relações de poder e este se concentra nas mãos dos donos das fábricas, dos navios e das finanças.

    Um bom exemplo de filme do primeiro grupo é o ótimo Sindicato de ladrões (EUA, 1954). Nele há um herói, interpretado por Marlon Brando, que vence, depois de vários conflitos e do surgimento do amor, uma máfia que havia se apoderado do sindicato dos portuários. A relação capital-trabalho e a exploração da mão-de-obra não aparecem. O capitalista vem ao final personificado em um armador de aparência séria, alheio aos conflitos que se desenrolavam entre os próprios trabalhadores. Pode-se afirmar que este cinema esconde as razões e a lógica das relações de trabalho, mistificando as relações de produção. Ou seja, por meio de imagens e mensagens reforça os valores de sucesso individual através do trabalho e do caráter bem adaptado do bom homem.

     

     

    No segundo caminho aparece o clássico Tempos modernos (EUA, 1936) de Charlie Chaplin. Este filme, ainda mudo e em preto e branco, foca problemas ainda pouco abordados no cinema de então: a exploração do trabalho, as linhas de montagem e suas consequências sobre os operários, a fraqueza destes frente à máquina, o tratamento dispensado pelo capitalista ao trabalhador e a precariedade material vivida pela população mais pobre. Sua forma poética de apresentar o problema, no entanto, emociona as platéias há décadas, indo além da cólera e do panfleto, e apontando para a igualdade real entre poderosos e desvalidos. O filme é, sem dúvida, um dos pontos mais altos da história do cinema mundial.

    Contudo, exceção feita a Chaplin, muito poucos filmes dessa linha alcançaram amplas platéias e foram capazes de emergir do mar de lixo comercial hollywoodiano que inunda as salas de cinema. Não por acaso, quase todos vêm da Europa, alguns da Ásia e mesmo outros da América Latina. Veja-se, por exemplo, o emocionante Daens – Um grito de justiça (Bélgica, 1992). O filme narra a transformação de um padre católico que, chegado a uma cidade industrial belga do século XIX, choca-se com o grau de pobreza e exploração a que são submetidos os operários da região. Sua luta para vencer a exploração, a cumplicidade da igreja para com os industriais e a própria apatia e ignorância política dos trabalhadores dão o rumo da estória. Aqui, não só as relações de trabalho são postas a nu, mas também as trocas de interesse e poder entre os grupos dominantes aparecem vivamente para indignação do público.

    Outro filme primoroso, mas sem o impacto de um Warner ou MGM, é Ladrões de bicicleta (Itália, 1949) de Vittorio de Sica. A película retrata os problemas causados pelo desemprego e pobreza sobre uma família pobre na cidade de Roma no pós-guerra. O pai, que finalmente consegue um emprego de colador de cartazes, vê seu instrumento de trabalho, uma bicicleta, ser roubada. A partir disso, buscando ter de volta sua bicicleta, o desespero leva-o a ser pilhado roubando outra. O mesmo ocorre com outro clássico: A greve (URSS, 1925) de Sergei Eisenstein, o mesmo diretor de O encouraçado Potenkin. Este, mais panfletário do que os anteriores, mostra a força bruta policial sendo exercida sobre trabalhadores da Rússia czarista. Entre suas cenas mais fortes está o momento em que policiais atiram sobre operários que buscam refugiar-se em vão. Em ambos, o pouco valor do homem na sociedade moderna espanta ao ser figurado na tela grande.

    As causas do pequeno alcance desses bons filmes, no entanto, não podem ser creditadas apenas ao estranhamento do público frente a filmes mais complexos, críticos e esteticamente menos convencionais. Destarte, a cada novo blockbuster, aciona-se, por meio de bilhões de dólares, uma rede poderosa de propaganda e distribuição que seduz a curiosidade de todos. E é lógico que os filmes do segundo grupo não têm qualquer chance de concorrer por salas e público.

    Aqui, no Brasil, nada disso poderia passar em brancas nuvens. Os filmes nacionais também abordaram o tema, contudo, a questão trabalho é assunto muito mais visível em documentários do que em filmes contadores de estórias. Ver, por exemplo, a série de mostras anuais É tudo verdade. Nesse gênero, o assunto trabalho aparece geralmente embaralhado sob temas mais centrais como a pobreza e a precariedade das condições de vida da população mais carente. Um bom representante é o filme Fala tu (Brasil, 2004) que reconstrói o drama de rappers pobres da periferia buscando uma vida melhor e sem muita chance para isso. Enquanto sonham, suas vidas são moldadas pelo trabalho penoso e mal remunerado.

    Dentre os filmes narrativos brasileiros sobre o trabalho, o mais divertido talvez seja o Domésticas (Brasil, 2002). Nele são retratadas as desventuras de empregadas domésticas e suas contratantes. Fica explícito lá o preconceito, o trabalho pesado sem reconhecimento e também os sonhos desse grupo de trabalhadores. Já na categoria drama, Eles não usam black-tie (Brasil, 1981) de Leon Hirszman, aponta para o operariado que começa a se organizar e os problemas que envolvem uma luta por melhores condições de trabalho em meio a um regime político fechado. As questões individuais funcionam aqui como peças de um brinquedo de armar, sempre apontando para o conjunto dos trabalhadores e suas mazelas.

    Em todos esses casos, percebe-se que a realidade é revista de acordo com o cineasta. Mais importante do que o trabalho em si e as relações que se estabelecem a partir dele são, no cinema, as conexões que o diretor estabelece entre fatos, pessoas e sentimentos, formando um discurso cujo significado é jamais isento. Todavia, ainda mais grave do que isso, é que o sucesso ou a fragilidade desse discurso não será julgado pela qualidade de sua argumentação ou a profundidade da análise, mas sim pela capacidade de entreter e, se pode afirmar, distanciar as mentes dos problemas centrais da sociedade moderna. Assim, quando o tema é trabalho, algo tão basilar na vida das pessoas, o dilema entre esconder a questão ou abordá-la de frente está relacionada a opções claras: esconder o mundo atrás da fantasia e do glamour de poucos ou debater para reformar o mundo. Parece não haver meias tintas: ou se procura viver o "bom- mocismo" cooptado e tolo, pois num país como o Brasil os problemas sociais não permitem que sejam ignorados, ou enfrenta-se a realidade, a vida como ela é. E, é óbvio, não há soluções ou caminhos se não se reconhece o problema. Mas ainda assim e por isso mesmo, a opção também é sua, senhor espectador.

     

    Ricardo Luiz Chagas Amorim é economista e cinéfilo. Professor da Universidade Mackenzie, realiza pesquisas junto ao Núcleo de Estudos em Qualidade de Vida (NEQV/Mackenzie). É doutorando em teoria econômica pelo Instituto de Economia da Unicamp.

     

     

    BIBLIOGRAFIA SUGERIDA

    Bernardet, J-C. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006.

    Amorim, R.. "Comentários sobre a racionalidade no capitalismo contemporâneo". São Paulo: FCECA/Mackenzie, 2006. 22p. (Texto para discussão 01/B06 – no prelo).

    Mészaros, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

    Canetti, E.. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    Sartre, J.-P. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Editora Ática, 1994.

     

    CINEMATOGRAFIA SUGERIDA

    Comer, beber e viver (Yinshi nan nu) – Gênero: drama; Direção: Ang Lee; País: Taiwan; Ano: 1994; Duração: 123 min.

    Daens – um grito de justiça (Daens) – Gênero: drama; Direção: Stijn Coninx; País: Bélgica; Ano: 1992; Duração: 132 min.

    Domésticas – o filme – Gênero: comédia; Direção: Fernando Meirelles e Nando Olival; País: Brasil; Ano: 2002; Duração: 90 min.

    Dançando no escuro (Dancer in the dark) – Gênero: drama; Direção: Lars Von Trier; País: França; Ano: 2000; Duração: 139 min.

    Eles não usam black-tie – Gênero: drama; Direção: Leon Hirszman; País: Brasil; Ano: 1981; Duração: 134 min.

    Fala tu – Gênero: documentário; Direção: Guilherme Coelho; País: Brasil; Ano: 2004; Duração: 74 min.

    Garotas do ABC – Gênero: drama; Direção: Carlos Reichenbach; País: Brasil; Ano: 2004; Duração: 124 min.

    A greve – Gênero: drama; Direção: Sergei Eisenstein; País: URSS; Ano: 1925; Duração: 82 min.

    Ladrões de bicicleta ( Ladri di biciclette) – Gênero: drama; Direção: Vittorio di Sica; País: Itália; Ano: 1948; Duração: 90 min.

    Sindicato de ladrões (On the waterfront) – Gênero: drama; Direção: Elia Kazan; País: EUA; Ano: 1954; Duração: 108 min.

    Tempos modernos (Modern times) – Gênero: comédia; Direção: Charlie Chaplin; País: EUA; Ano: 1936; Duração: 87 min.