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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.58 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2006

     

     

     

    CINEMA

    Desemprego: como a vida pode perder o eixo

     

    O noticiário sobre o desemprego é farto em índices, gráficos, tabelas e números em geral. Poucas vezes, mesmo ao lado de uma matéria de análise conjuntural ou estrutural da questão do emprego, o foco é o desempregado. O impacto que a falta de trabalho provoca em sua vida, na construção de sua identidade social e auto-estima são temas pouco abordados na imprensa em geral.

    Na arte, porém, a humanização do tema é mais freqüente. E o cinema é um dos gêneros que melhor tem focado a situação. Existem os clássicos – como Ladrões de bicicleta e Tempos modernos – reconhecidos marcos na abordagem do pós-guerra e da industrialização. Existe, porém, uma filmografia recente que tem conseguido representar a desorganização da vida do trabalhador a partir da perda de postos de trabalho, principal desdobramento da globalização e da informatização nos meios de produção.

    Um deles é o espanhol Segunda-feira ao sol, dirigido por Fernando León de Aranoa, que retrata a cotidiano de operários após o fechamento de um estaleiro naval na região da Galícia, adquirido por investidores coreanos. Mais do que a difícil sobrevivência material desses metalúrgicos, a maior devastação decorrente da ausência de trabalho é tirar o eixo da vida dessas pessoas. Eles repetem a rotina do encontro, agora num bar chamado Aurora, onde os problemas pessoais, antes latentes, tomam proporções sem controle: quem apenas bebia regularmente, caminha para o alcoolismo; aquele com tendência à depressão, busca o suicídio; problemas de relacionamento chegam ao divórcio. Ao concentrar-se no drama pessoal de cada um, Segunda-feira ao sol sintetiza um mal maior que afeta o continente europeu.

    O DISCURSO DO DESEMPREGADO Para a socióloga da Universidade de São Paulo (USP), Nadya Araújo Guimarães, as formas como as pessoas lidam com o desemprego variam bastante. Ao fazer uma pesquisa comparativa entre três regiões metropolitanas do mundo – São Paulo, Paris e Tóquio – ela observou que os discursos e os dramas vividos pelos desempregados são diferentes. "Quanto mais fraca é a institucionalização do trabalho, mais dificuldade as pessoas têm de assumir que estão desempregadas", diz.

    Em Tóquio e Paris, onde os sistemas de proteção ao trabalhador são fortes, os desempregados recorrem às instituições de amparo que auxiliam na procura de outro emprego, além de oferecerem um seguro-desemprego. Já em São Paulo, a situação é diferente. "Como não há proteção, o trabalhador precisa rapidamente buscar alguma fonte de renda, submetendo-se a ocupações temporárias e subemprego", diz. Desse modo, muitas pessoas não se assumem na condição de desempregadas. A socióloga entrevistou 7 mil pessoas em São Paulo e percebeu que esse discurso de não assumir o desemprego é muito recorrente. "As pessoas costumam dizer que estão 'se virando'", diz.

    Outra situação percebida durante a pesquisa foi a mudança constante de emprego ou o desemprego recorrente. Para Nadya Guimarães, com a fraca institucionalização do trabalho o fluxo de indivíduos dentro do mercado de trabalho é grande, é comum que um trabalhador passe por diferentes áreas. Um filme que ilustra bem a situação é o inglês Ou tudo ou nada (The full monty), dirigido por Peter Cattaneo. Pela via do humor, o filme expõe o drama de seis operários desempregados, que vivem em Sheffield, outrora centro industrial do aço na Inglaterra, que, após várias tentativas frustradas de busca de emprego, encaram como último recurso protagonizar um show de strip-tease masculino. A comédia centra-se na perda da identidade subjetiva do trabalhador e as conseqüências em sua vida

    FUGA DA REALIDADE Em alguns casos, o aparecimento de distúrbios e doenças transforma a situação, que já é difícil, em completa desorganização da vida. É o que retrata o filme francês A agenda, de Laurente Cantet. O medo de assumir, frente à família, a perda do emprego, leva o personagem central a manter sua rotina inalterada. Todos os dias ele sai para trabalhar e inventa histórias para sustentar a farsa. Essa situação, retratada nas telas, é mais comum do que se imagina, diz Vanilda Paiva, pedagoga e socióloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), assim como o surgimento, também, de outros distúrbios como a depressão, angústia e baixa auto-estima.

    "Os problemas se agravam à medida que o desemprego perdura por longo tempo. Além das questões de ordem econômica, o sofrimento psíquico que, não raro, acompanha esse processo, é um dos aspectos mais duros do desemprego. A idade também é um fator de extrema importância. Um jovem pode, ainda, voltar para a casa dos pais, devolver algo comprado a prestação e manter elevada a expectativa de conseguir outro trabalho. Pessoas com mais idade e com carreiras anteriores encontram mais dificuldades, freqüentemente por serem consideradas menos flexíveis no desempenho das novas tarefas, por pretenderem empregos protegidos socialmente", diz Vanilda.

    Nadya Guimarães acrescenta que problemas de relacionamento podem ser realçados com o desemprego. Em um dos casos pesquisados, um casal trabalhava em uma mesma empresa até o marido ser despedido. Como não aceitava o fato da mulher ter ficado, o marido pressionou a esposa até ela pedir demissão.

    Casos extremos, presentes no cotidiano real, também são bem retratados na ficção. É o caso do recente O corte, filme do grego Costa-Gavras, que conta a história de um executivo francês que após ficar por dois anos desempregado, decide matar o ocupante de seu antigo cargo e todos os que se candidatarem ao posto que deseja recuperar. Uma situação limite que está presente como possibilidade sempre que o noticiário retrata, de forma impessoal, os índices de desemprego.

     

    Cauê Nunes