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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.4 São Paulo out./dez. 2006

     

     

    TRABALHO EM TURNOS

    Na contramão do relógio biológico

     

    "Quando trabalho à noite me sinto mais cansado, irritado e disperso. Tento dormir por 7 ou 8 horas mas acabo dividindo em dois 'blocos', com o almoço e atividades pouco exigentes entre um e outro". Assim vive o petroleiro Waltenir Antonicelli quando trabalha no turno da noite, entre 23h30 e 7h30. Depois de 2 dias de trabalho noturno, ele passa 3 dias de folga e, em seguida, muda de turno. O horário instável para dormir, freqüente para quem tem turnos alternados de trabalho, traz conseqüências à saúde, conforme apontam diversos estudos sobre o tema. Além de sentir cansaço, irritação e dificuldade de concentração, esses trabalhadores tendem a desenvolver problemas gastrointestinais, cardíacos, redução da memória, diabetes, obesidade, osteoporose e depressão. No caso das mulheres, há o agravante de maior propensão a desenvolver disfunções ginecológicas.

     

     

    Diversos tipos de atividades, como controle de transportes, telefonia, produção em processos contínuos e trabalho em hospitais, exigem o sistema de turnos ou noturno. Atividades comuns, como as de supermercados e academias de ginástica, passaram a ser realizadas durante a noite em função da ampliação da oferta de produtos e serviços característica da sociedade moderna. A Constituição Federal, no seu artigo 7º, inciso IX, estabelece que a remuneração do trabalho noturno deve ser superior à do diurno, além de considerar a hora trabalhada equivale a 52,5 minutos ( e não 60), como prevê a Lei para trabalhos noturnos nas cidades. Essas diferenciações legais pretendem compensar os danos que a atividade noturna pode causar à saúde dos trabalhadores. "Não compensam. O sono não é uma moeda de troca", afirma o neurologista e especialista em medicina do sono do Hospital das Clínicas da USP, Flávio Alóe.

     

     

    Ele explica que o corpo possui uma lógica natural que o prepara para a vigília durante o dia e o repouso à noite, como as variações na produção do hormônio cortisol ao longo do dia, e a produção do hormônio melatonina na ausência de luz. A pessoa que fica acordada e exposta à luz durante a noite força seu organismo a alterar o ritmo natural, regido pelo chamado ciclo circadiano, e quase sempre não consegue inverter seus hábitos e as condições que a rodeiam para que haja uma readaptação perfeita. "Além da luz do sol, os barulhos da cidade, o telefone ou a campainha que toca e a rotina da família (ainda mais exigente e barulhenta quando há filhos) atrapalham o sono desse trabalhador", diz Alóe. "Para agravar o quadro, o trabalhador tende a inverter seus hábitos nos finais de semana e nos dias de folga no intuito de resgatar sua vida social, sair com a família e os amigos".

    Cláudia Moreno, professora do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP, compara o trabalho noturno a uma viagem para o outro lado do mundo, que desregula o organismo do viajante (o efeito jet-lag como é conhecido) e exige uma readaptação. "Os efeitos do trabalho noturno durante a semana, com a tentativa de reversão nos dias de folga, equivalem a uma viagem ao Japão a cada semana", diz Cláudia. Uma vez que o tempo para a readaptação do "viajante" é de cerca de 24 dias, o corpo nunca consegue se reequilibrar. Esse desequilíbrio é maior para os trabalhadores em turnos do que para o trabalho fixo noturno, e é ainda pior para casos como o dos caminhoneiros, que recebem pedidos de serviços noturnos com pouca antecedência e não conseguem se preparar dormindo antes.

    RISCOS A pesquisadora da USP estudou os distúrbios do sono em 10.400 caminhoneiros e constatou que 25% têm alto risco de desenvolver apnéia do sono (parada respiratória súbita durante o sono) e 15% já dormiram ao volante. A sonolência pode causar graves acidentes nas estradas. De acordo com Cláudia, embora a proporção de acidentes à noite nas rodovias seja menor do que durante o dia (40% contra 60%), até em função do menor fluxo de veículos de madrugada, a gravidade da maioria dos acidentes noturnos é maior: 60% são fatais.

    A pesquisadora Lúcia Rotenberg, do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde do Departamento de Biologia do Instituto Oswaldo Cruz (RJ), afirma que muitas doenças já têm a relação comprovada com o trabalho noturno e em turnos: maus hábitos alimentares associados à rotina invertida de horários; apnéia, obesidade, depressão, envelhecimento precoce, problemas cardíacos e gastrointestinais. Existem estudos, ainda, que buscam relacionar outro conjunto de doenças, como o surgimento do câncer ginecológico e infertilidade, "mas ainda não há consenso nessa área", informa Lúcia.

    As disfunções decorrentes do trabalho noturno muitas vezes levam ao afastamento do trabalhador. Segundo a professora Frida Marina Fischer, pesquisadora da área de trabalho em turnos e noturno da Faculdade de Saúde Pública da USP, o envelhecimento funcional precoce é uma das causas mais freqüentes desses afastamentos. Ela ressalta que "o trabalhador em turnos ou noturno apresenta redução do desempenho com o passar do tempo além da observada por trabalhadores diurnos, pois as adversidades da atividade noturna somam-se às atividades estressantes habituais do trabalho".

    As mulheres sofrem mais com esse tipo de trabalho. Lúcia, que se especializou no estudo das diferenças de gênero relacionadas às conseqüências do trabalho noturno, verificou que o grande problema das mulheres é o fato de seu sono não ser respeitado como o dos homens. "Quando o marido trabalha à noite, a esposa se ocupa da preservação do seu sono e administra o silêncio da casa. Quando ocorre o inverso, a mulher ainda prioriza a casa e os filhos durante o dia, em detrimento do sono", afirma.

    VANTAGENS Além dos benefícios financeiros, que justificam essa opção do trabalhador, ainda mais em sociedades onde o desemprego atingiu níveis elevados, haveria alguma outra vantagem no trabalho noturno? Cláudia Moreno ressalta algumas conveniências destacadas por trabalhadores noturnos em suas pesquisas, como a maior autonomia decorrente do pouco contato com chefes e superiores, a facilidade de encontrar alguém da família para ficar com os filhos durante a noite e a ausência de trânsito. Lúcia lembra que o grau de sacrifício do trabalho noturno depende do perfil do ritmo biológico de cada pessoa.

    "Diferentemente das pessoas 'matutinas', que têm maior disposição para realizar tarefas pela manhã, as pessoas 'noturnas' sentem menor dificuldade para adaptar-se à vigília durante à noite, sofrendo menos com esse tipo de trabalho", diz. Para Antonicelli, "a maior vantagem é a financeira, mas também é interessante poder aproveitar 3 ou 4 dias de folga para viajar".

    Algumas medidas atenuam os problemas dos trabalhadores noturnos. Alóe aconselha o uso de óculos escuros na volta para casa, pela manhã, para reduzir a exposição à luz; o gerenciamento dos horários, evitando inverter os hábitos no final de semana; atividades físicas em horários adequados, nunca logo após o trabalho, e a não ingestão de álcool e bebidas com cafeína. "Porém, o ideal mesmo seria respeitar as regras naturais do corpo: acordar com a luz do sol e dormir no escuro da noite", conclui.

     

    Flávia Gouveia