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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.4 São Paulo oct./dic. 2006

     

    CENTENÁRIO

    A PINTURA DE CÉZANNE: VIDA SIMPLES, ARTISTA PRIMOROSO

     

    Cézanne ocupa um lugar máximo na história da arte. Não é, dentre seus grandes contemporâneos, o mais popular: Renoir, Monet, van Gogh têm uma audiência maior. Porém, além de todos, Cézanne tem um lugar inabalável, tanto no seu papel histórico, quanto na qualidade altíssima e sem desníveis de sua produção: é assim uma espécie de Johann Sebastian Bach da pintura. Pouco reconhecido em seu tempo, viveu o suficiente, no entanto, para perceber que sua obra se impunha. Em 1895, o marchand Ambroise Vollard organizou a primeira grande exposição que o revelou aos contemporâneos. Foram artistas jovens, Émile Bernard ou Maurice Denis, que viram nele ao mesmo tempo um mestre e um precursor. Vieram as críticas perspicazes, inteligentes, poéticas de Gustave Geoffroy, Claude Roger Marx, Heine. Os colecionadores iniciais também ajudaram a confirmar a estatura do artista.

    Um dos problemas na abordagem de Cézanne é o fato de que ele não se insere no fluxo de um movimento (sua participação junto aos impressionistas é secundária) e de que ele se dispõe como articulação entre o século XIX (Courbet) e XX (cubistas); ou entre o romantismo de Delacroix e a serenidade de Poussin.

    Sobretudo a relação com o cubismo, por mais valorizadora que seja, é um instrumento de perturbação para se perceber sua obra. Cézanne não pode ser reduzido ao papel de precursor: Cézanne é Cézanne, um pintor com soluções prodigiosamente novas e estáveis, para uma obra cujo princípio repousa na beleza de um equilíbrio que se descobre em cada quadro como novo problema a ser resolvido. Ele próprio certamente não gostaria dessa situação, temeroso que era de qualquer recuperação, de qualquer explicação que se encontrasse fora de seus próprios quadros.

     

     

    A pintura foi para Cézanne um trabalho de operário, um trabalho solitário, praticado quotidianamente, com esforço, com constância, e sem a efervescência da inspiração romântica. A arte, para ele, tinha o papel de uma missão exemplar: queria fazer quadros "que sejam uma lição", como escreveu. Quanto mais avançava em idade, mais suas telas tornavam-se frutos amadurecidos longamente pela reflexão. Submetia-se à natureza, mas para tratá-la como um jogo de tensões a ser exasperado até o equilíbrio mais alto.

    Sua vida correu no oposto dos dramas aventurosos, no oposto da trajetória de um van Gogh ou Gauguin. Nasceu e viveu na Provença, em Aix, teve poucas passagens por Paris e pela região da Île-de-France. Teve amizades fortes, mas que se rompiam com freqüência – o mais espetacular e radical sendo o corte que ele impôs às relações com Zola, seu colega de escola, quando este último publicou A obra, romance no qual Cézanne se reconheceu como o protagonista Claude Lantier. Poucas relações no quotidiano, família reduzida: esposa, filho, pais, irmã e cunhado. Suficientemente rico para viver de rendas, para não se preocupar com o pão de cada dia, não teve que lutar por sua carreira de pintor. Contentou-se em fazer o que queria, sem dar satisfações nem ao público, nem à crítica. Não participava dos ambientes intelectuais de sua época, não cultivava as mundanidades. Quando a notoriedade, bem tardia, começou, temia e evitava os importunos. Poucas confidências em matéria de arte, e muito menos em matéria pessoal.

     

     

    Sua vida não foi excepcional em nada: ela apoiava-se na rotina e na introspecção que ofereciam tranqüilidade para o trabalho artístico. Começou a se formar na Escola de Desenho municipal de Aix-en-Provence, freqüentava o museu da cidade. Foi para Paris, fez estudos de nus na Académie Suisse, que dispunha modelos para jovens artistas, sem um ensino efetivo. Sua arte, nesse momento, parte de Courbet, como testemunha o notável Negro Cipião, do Masp. Fascina-se pelos venezianos, por Delacroix, por Daumier. Entra em contato com os impressionistas. Desde 1863 tenta, sistematicamente, expor no Salão oficial, conseguindo ser aceito apenas uma única vez, com um retrato, em 1882.

    QUADROS SEM DATAS Os especialistas com freqüência divergem sobre os momentos e locais de execução de muitas telas. É difícil estabelecer uma evolução precisa; as divisões em períodos que os historiadores da arte praticaram são bastante grosseiras. A primeira época de sua obra, parisiense, que ele chamava de "peinture couillarde" (o que pode ser traduzido livremente por "pintura de bundão"), mostra uma pincelada violenta, empastada, trabalhada com a espátula, numa matéria pictural generosa, em que os negros são muito presentes, sem evitar os efeitos cromáticos contrastantes.

    Mas o trabalho vai se tornando cada vez mais reflexivo e lento (Cézanne submetia seus modelos à tortura de horas em imobilidade, e dezenas de sessões de pose). Clareia e ilumina sua paleta progresssivamente ("as sombras são azuis", dizia). Nos anos de 1880, percorre, a pé, muitos quilômetros diários no entorno de Aix-en-Provence consagrando-se sobretudo à pintura da montanha de Santa Vitória, enorme rochedo claro, que se destaca na terra vermelha. Com ela atinge o que se poderia chamar de um classicismo do equilíbrio. É com os retratos, com as naturezas-mortas e com a paisagem que esse domínio pictural se instala. Na consciência do pintor esse domínio, no entanto, nunca existiu. Pintar para ele sempre foi doloroso e frustrante. Pouco antes de morrer, em 1906, escreve a seu filho: "Enfim, eu te diria que me torno, como pintor, mais lúcido diante da natureza, mas que em mim, a realização das sensações é sempre muito penosa. Não consigo chegar à intensidade que se desenvolve diante dos meus sentidos, não tenho essa magnífica riqueza de coloração que anima a natureza".

     

    Jorge Coli

     

    Jorge Coli é crítico de arte e professor de história da arte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Unicamp.