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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.58 n.4 São Paulo out./dez. 2006

     

     

    PRISCA AGUSTONI

     

     

    NARRATIVAS

     

    LAPSO

    Ela sempre foi, para mim, aquela mulher sobre os sessenta, sem grandes traumas e sem sombras no passado, exceto nos dias em que precipitavam-lhe as avalanches da infância, os desabamentos de neve e gelo que a seqüestravam. Os olhos permaneciam imóveis, sem bater os cílios, mas pareciam cavar no tempo, quase a querer alertar sobre a tragédia iminente. Pareciam engessados pelo pânico que invadira outrora o povoado e todos aqueles que, raspando na neve à procura de algum sobrevivente, viram seus dedos se tornarem roxos de frio. A neve, dura como pedra, na qual espargiu-se o sangue a manchar sua inocência.
    Logo, pouco a pouco, os olhos reagiam à pulsação normal dos minutos e ao invólucro veludo da pálpebra, como uma cortina que fecha o mundo dentro de um quarto.

     

    O BOSQUE

    O cachecol era marrom, disso ela tinha certeza.
    Foi em novembro, talvez final de outubro, pois o céu já dava sinais de desamparo total.
    E disso também dependia a excitação do inverno. A excitação do escuro e do alheio.
    A expectativa do aconchego para ser conquistado, lutando contra as adversidades.
    Lembrou-se disso ao olhar para o rio, o mesmo rio que os olhos de Borges deviam ter amado, em cada uma de suas identidades.
    O cachecol era marrom, de cetim. Sentia-se uma dama naquele fetiche de beleza feminina. Uma dama passeando com seu cavaleiro.
    «Vem », ele dizia, « vem, que o cavalo ficou amarrado no bosque ».
    Os dois entraram na senda, beirando altas árvores nuas, os dedos nus, entrelaçados.
    A singeleza da mão nunca lhe parecera tão austera.
    Ao sair do bosque, pouco depois, ele tinha a certeza de que algo suficientemente importante tinha ocorrido, lá dentro, para abrir o coração de sua mulher.
    Ela, no entanto, não só não lhe deu a mão na saída, como sumiu da região, não deixando atrás de si nenhum rastro, a não ser o longo silêncio do rio olhado pelos olhos de Borges.
    O cachecol era marrom, disso ela tinha certeza, e talvez ainda estivesse em algum recanto do armário.

     

    BÉSAME MUCHO

    Apesar da fuligem, as ruas conservavam uma luz que só uma ilha poderia suportar e dosar de acordo com a contração das ondas.
    Eu achava aquele ritmo semi-molhado, aqueles dias todos iguais, quase um vício, como uma mosca zumbindo ao redor da mesma idéia. A umidade e as plantas, lá fora, atravessavam em cheio o cerne da juventude.
    Foram os dias em que o amarelo escorreu pelos cantos da boca. Ainda não levava jeito com a faca e a fruta, por isso o suco escorreu pelo pescoço, uma vez, mais vezes, descendo peito abaixo, percorrendo os anos que separavam o iniciado da iniciação. Também havia, é verdade, aqueles olhos a me vigiar, em qualquer canto da casa.
    No entanto, quando os livros perfuraram o círculo de fogo no qual me joguei, sem perceber, eles começaram a levar vantagem, e não teve mais jeito para nada. Eles cercearam a mesa, calaram as vozes e se tornaram um enclave de traição entre nós dois. Ou um paraíso antecipado para a perdição. Um paraíso de papel e de redemoinhos no fundo da página.
    Dizem que as melhores coisas não acontecem por acaso. Não sei dizer por certo, mas se isso for verdade, o destino não podia ser mais generoso comigo, pois me deixou como herança daquele esconderijo na memória a faca, a fruta e a livraria, cuja janela lateral dava para a casa de Lezama Lima.

     

     

    Prisca Agustoni nasceu na Suíça, em 1975. Formou-se em letras hispânicas e filosofia pela Universidade de Genebra, onde também obteve o título de mestre. Atualmente mora no Brasil, e prepara um doutorado em letras na PUC-Minas. É tradutora e poeta. Tem, no prelo, seu primeiro livro de contos, A neve ilícita, que será publicado pela Nankin Editora em parceria com a Funalfa, de Juiz de Fora.