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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.59 n.1 São Paulo ene./mar. 2007

     

     

    CRÍTICA GENÉTICA E CRÍTICA LITERÁRIA

    Verónica Galíndez-Jorge

     

    Apesar da complementaridade que implica a conjunção, desprende-se do binômio acima uma alteridade, uma oposição. Ao propormos esta seção, fica claro, portanto, que a crítica genética ainda não é – ou não se sente – parte integrante da crítica literária. Meu esforço concentrar-se-á então na enumeração de interfaces de diálogo que pretendem situar a crítica genética, sobretudo, como prática crítica dos estudos literários.

    Ao estudar os manuscritos de Gustave Flaubert (1), deparei-me com várias questões que me obrigaram a estabelecer um diálogo mais explícito entre as duas práticas críticas e que apresento aqui de forma reduzida.

    Uma das primeiras questões que iniciaram esse diálogo foi a da escritura. Ainda que haja divergências na crítica literária quanto às correntes que se interessam por esse aspecto da produção literária, temos em comum o interesse pelos processos envolvidos na constituição da matéria literária propriamente dita. No caso específico de Flaubert, abundam os estudos acerca de como se configura a "estranha mecânica" através da qual o escritor, em sua correspondência, diz chegar à elaboração da frase.

    A crítica genética acabou não só se aprofundando na questão pontualmente flaubertiana, mas estendeu-a para o estudo dos manuscritos de vários outros escritores. O interesse pela escritura em crítica genética é muitas vezes sinônimo de estudo da criação literária de um determinado autor ou obra. O que foi instituído na crítica como questão a ser estudada a partir de determinado tipo e momento de produção literária passou a ser recorte possível de estudos de manuscritos. O acesso aos rascunhos de trabalho permite, em grande medida, que o crítico desenvolva hipóteses a respeito da construção ou da constituição de um procedimento literário que pode ser associado a estudos de estilística, de história da literatura, entre outros.

    Outro ponto incontornável de diálogo é a relação que a crítica genética tem com o estruturalismo francês e com a estética da recepção. No entanto, o ponto já foi bastante desenvolvido por Claudia Amigo Pino em A ficção da escrita (2) e retomado com Roberto Zular em Escrever sobre escrever (3). A autora trata ainda das relações existentes entre um determinado tipo de produção literária, sobretudo a partir dos anos 1950, e a vertente crítica que se interessa pelo processo de criação da literatura.

    Escolhi ater-me aqui a um dos procedimentos metodológicos praticados em crítica genética, que mais sutilmente dialoga com a crítica literária, que não incorpora os manuscritos em suas análises: a escolha de um recorte.

    Os anos de formação literária haviam-me ensinado, dentre outras possibilidades, a efetuar leituras de detalhes que pudessem ser relacionadas, durante a análise do texto, ao todo e vice-versa, completando formalmente o que conhecemos por círculo hermenêutico. Apesar das críticas a tal proceder, sempre me perguntei o que me atraía tanto nas leituras teóricas encabeçadas por Spitzer (4) e Auerbach (5), para – já que se trata de escolhas – citar apenas alguns. Compreendo as ressalvas feitas ao longo do tempo ao ilusório encerramento interpretativo que tal proceder acabava impondo ao texto, mas nunca consegui desvincular-me de seu motor: a leitura ou, posto que se trata de crítica, a releitura do trecho cuidadosamente selecionado, da parte revisitada.

     

     

    Começo a retomar essa questão pelo já clássico texto de Auerbach (6), o leitor é guiado didaticamente pelos caminhos trilhados pelo ensaio: a questão do realismo como grande tema geral, a partir da análise de um trecho que nada tem de particular, apesar de o autor alegar tratar-se de um ponto culminante na descrição de um dos grandes temas de Madame Bovary, o tédio, mas que poderia ter sido substituído por qualquer outro. Sem discutir, aqui, a questão da mimese – que julgo muito atrelada à própria forma teórica escolhida – reconheço algumas etapas essenciais desse percurso teórico que, como veremos, não faz mais do que confirmar a ficção que o próprio escritor cria, a posteriori, em sua correspondência sobre seu processo escritural.

    Primeiramente, destaco a total subordinação, tanto temática como narrativa, do trecho em relação ao todo. Cada recorte temático pode ser "justificado" pelas partes, sejam elas os personagens, as cenas, os diálogos, as descrições. Depois de estabelecida essa relação, a análise do trecho, tanto no tocante ao procedimento narrativo como ao tema, pode representar a análise da obra como um todo. Auerbach passa, então, a questões teóricas como o foco narrativo e a construção de um discurso indireto livre.

    Uma vantagem de tal procedimento, no contexto da própria obra teórica, é a possibilidade de estabelecimento de uma espécie de cânone da literatura ocidental, já que ao efetuar esse tipo de relação entre a parte e o todo de vários autores, o crítico pode colocá-los lado a lado. Outra é, indubitavelmente, a maior facilidade de se pensarem elementos de teoria literária de forma comparativa e geral. Contudo, e já adentro as desvantagens, perde-se um pouco da riqueza do detalhe, privilegiando a leitura geral, que deve ser inserida em um paradigma de produção mesmo que para indicar a sua quebra – como é o caso de Flaubert em relação a Stendhal ou Balzac e a representação no âmbito do que o crítico chama de "realismo moderno".

    De qualquer forma, mesmo se através do emprego teórico da figura, o crítico apresenta primeiramente um trecho do texto que será lido. O propósito é de, a partir do recorte oferecido ao leitor, este possa já intuir do que se pretende tratar, sem uma apresentação teórica prévia. Seria então possível desprender, do recorte, as características do texto que seriam posteriormente abordadas pelo crítico a partir dos elementos já mencionados: representação realista séria manifestada pelo uso da figura. Alega, ainda, ter-se deixado levar pelo jogo de leitura do texto para chegar a um método interpretativo, e que a escolha dos textos não visava amparar um a priori teórico, o que pode – e já foi – ser amplamente discutido, mas que ignorarei aqui.

    Já Spitzer, ficou conhecido como o crítico da leitura estilística, colocando-nos diante do detalhe com outros objetivos. Ao longo de seu capítulo sobre Rabelais, o crítico aponta para características do caminho teórico que está desenvolvendo, a partir, principalmente, de suas reflexões sobre a lingüística. A questão que se deve colocar ao crítico é de "ir da superfície em direção ao ‘centro vital interno’ da obra de arte: observar primeiramente os detalhes na superfície visível de cada obra em particular (e as ‘idéias’ expressadas pelo escritor, são apenas um dos traços superficiais da obra); em seguida agrupar esses detalhes e tentar integrá-los ao princípio criador que deve ter estado presente na mente do artista; e finalmente retornar a todos os outros campos de observação para ver se a ‘forma interna’ que se tentou construir dá conta da totalidade."(7). Em seguida, integra o procedimento ao que chama de "círculo filológico", procedimento comum às ciências humanas, que consiste em partir da análise de detalhes para chegar ao todo e poder, mais uma vez, analisar outros detalhes constitutivos da obra de arte.

    É necessário, ainda, ressaltar que ambos os críticos, a partir da entrada imediata no texto, incitam o leitor a retornar ao texto literário propriamente dito, em vez de ater-se aos comentários, à literatura secundária. Trata-se, portanto, e em ambos os casos, de exercícios críticos de construção de leitura.

    Se observarmos os trabalhos desenvolvidos ao longo dos anos em crítica genética, perceberemos que os críticos, de forma geral, queixam-se do abundante objeto de pesquisa. E isso tanto para aqueles que têm acesso a uma suposta "totalidade" do corpus, como para os que sabem de antemão que estão diante de corpora incompletos ou mutilados, ente outros. No caso de Flaubert, trata-se de um corpus manuscrito geralmente dez vezes mais numeroso do que o número de páginas publicadas, posto que reescrevia, em média, dez vezes cada página; para Paul Valéry, trata-se praticamente da maior parte de sua produção, já que passou anos escrevendo cadernos sem publicá-los; Georges Perec acumulava, variava, reproduzia listas; Milton Hatoum, que chegou a levar dez anos escrevendo um de seus romances, vai imprimindo suas versões…

    Essa enumeração tem por objetivo mostrar problemas comuns ao objeto de estudo da crítica genética e que, inevitavelmente, a coloca diante da questão desde sempre desenvolvida pela crítica literária e rapidamente citada aqui: o recorte. Ao apresentar os dois críticos acima, pretendi apenas sensibilizar o leitor para um procedimento metodológico já bastante intrínseco da atividade crítica e que também determina, ainda que o termo seja forte, a atividade em crítica genética.

    Depois de reunir, classificar, eventualmente ordenar, descrever e transcrever os manuscritos dá-se início à atividade crítica propriamente dita que pouco, ou nada, difere da atividade desde sempre praticada pela crítica literária. Sobretudo em seu fazer, em sua mobilização metodológica.

    Por outro lado, abre-se o espaço para a contribuição que a crítica genética tem dado e deve continuar dando para a crítica literária, no sentido de sensibilizá-la à identificação, leitura e interpretação de movimentos que caracterizam a criação literária e que estão para além da descrição de sua cronologia ou das estruturas que os compõem. É no intervalo entre essas duas práticas, permitindo-nos atentar para o detalhe, mas ao mesmo tempo permitindo que a instabilidade dos manuscritos se instale, que reside boa parte das possibilidades de diálogo frutífero entre crítica literária e crítica genética. Isso significa que nós críticos podemos nos interessar por um determinado movimento de criação literária – por exemplo, espaços escriturais, movimentos de escritura – para lê-los em sua profundidade. Podemos tentar compreender como se relacionam com o restante da produção literária; com os demais manuscritos do mesmo autor; de outros autores; com a obra na qual se insere; enfim, com o momento de produção crítica implicado na atividade do próprio crítico.

     

    Verónica Galíndez-Jorge é docente do DLM-FFLCH-USP; membro do Laboratório do Manuscrito Literário e diretora científica do Grupo de Estudos Literatura Loucura Escritura

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Galíndez-Jorge, Verónica. "Como as mil peças de um jogo de escritura nos manuscritos de Gustave Flaubert". Tese de doutorado defendida em 2003, FFLCH-USP. (revisão no prelo na Editora Ateliê Editorial sem título).

    2. Amigo Pino, Claudia. A ficção da escrita. São Paulo: Ateliê, 2004.

    3. Amigo Pino, Claudia e Zular, Roberto. Escrever sobre escrever. São Paulo: Martins Fontes, no prelo.

    4. Spitzer, Leo. Études de style. Paris: Gallimard-Tel, 1970.

    5. Auerbach, Eric. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1994 [1929].

    6. "Na mansão de La Mole". In Mimesis. São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 405-441. Apontamos, contudo o problema que pode gerar o cotejamento entre esse texto e o seguinte, "Germinie Lacerteux", que vai no sentido diametralmente oposto do primeiro, desqualificando, de certa forma, Flaubert devido à falta de um comprometimento histórico social, como também veremos em Lukács.

    7. Spitzer, Leo. Études de style. Paris: Gallimard-Tel, 1970.