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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.59 n.1 São Paulo ene./mar. 2007

     

     

    AS CIÊNICAS DA MENTE E A CRÍTICA GENÉTICA

    Philippe Willemart

     

    Manuscritos e disquetes do escritor, esboços e croquis do artista testemunham de uma maneira privilegiada o trabalho da mente. Poucas publicações relacionam as ciências da mente com a crítica genética. No entanto, a incidência dos significantes «pensamento» e «processo de criação» nas revistas Manuscrítica da Associação dos Pesquisadores do Manuscrito Literário (1990) e Gênesis (1992) do Instituto de Manuscritos Modernos do CNRS (França), nas obras e teses citadas na bibliografia deste dossiê, indica que a crítica genética se preocupa indiretamente com o trabalho sutil do pensamento e se interroga implicitamente sobre as ciências da mente.

    Como funciona a mente ? Quem domina o outro? O cérebro e sua base biológica ou a estrutura psíquica ? Um câncer é provocado por uma desregulação das células ou pela morte de um ente querido ? Qual é a causa real e original ? Esse dilema é objeto de debates acirrados entre cientistas, psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. Todos, de qualquer modo, reconhecem as numerosas interferências entre corpo e psique, mas se repartem mesmo assim entre dualistas, que como Descartes sustentam a separação do corpo e da alma ou do espírito, e monistas, que defendem a união estreita do corpo com a mente. Esses últimos, cada vez mais numerosos, não apostam numa separação estanque nem atribuem mais influência a uma parte do que a outra: "Se a mente não é outra coisa do que o corpo em movimento", não há porque separar o cérebro da mente, salienta o cognitivista Varela(1). Merleau-Ponty dizia o mesmo: "nosso corpo não é um objeto para um 'eu penso': ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu equilíbrio" (2).

    Para entender o funcionamento da mente ligado ao surgimento da palavra ou da escrita, há pelo menos três pistas: a psicanálise, as ciências cognitivas e o estudo do manuscrito ou dos esboços de qualquer artista.

    A PSICANÁLISE A escuta psicanalítica no divã é a primeira e supõe um não pensamento identificado ao inconsciente como origem do pensamento(3). Embora não trate explicitamente dessa pista aqui, não deixarei de mencioná-la nas entrelinhas, já que tem muito a ver com o nascimento da escritura(4).

    AS CIÊNCIAS COGNITIVAS O estudo do cérebro elaborado por cognitivistas e neurolingüistas é a segunda pista. Entretanto, as abordagens dessa ciência são várias e às vezes antagônicas. Os progressos da ciência na descrição do cérebro por várias técnicas e a possibilidade de testar os efeitos de um remédio em uma deficiência localizada (5) levaram alguns cientistas a achar que assim chegarão à origem do pensamento. Mas, apesar das técnicas de medida ou de captação bastante fina dos movimentos do cérebro ou das tentativas de identificação de um neurônio a uma imagem, a complexidade do cérebro é tanta que a passagem do neural ao mental continua um mistério. O estudo por imagens confirma o funcionamento holístico do cérebro e permitiu aos cientistas um distanciamento da localização e da identificação entre uma zona do cérebro e uma atividade humana, como acreditavam estudiosos do século XIX como Broca (1859) e outros. Mas, se o cérebro é cada vez mais conhecido, como mostram estudos recentes (6), nenhum aparelho pode até hoje nos dizer como funciona o pensamento (7).

    Não é também assimilando "o cérebro à caixa preta da primeira cibernética de Norbert Wiener" (8) nem a um computador ou a uma rede de computadores (9) que entenderemos o pensamento.

    A corrente do cognitivismo sintetizada por Jean Petitot e Francisco Varela defende a naturalizarão da fenomenologia (10). Partem da hipótese de que a filosofia desenvolvida por Husserl tem uma base natural e biológica. É a embodied cognition ou a "cognição enactiva" (11) ou encarnada. As várias camadas que constituem o ser humano, desde o psíquico até o biológico, interagem umas com as outras (12) e se auto-organizam nos dois sentidos, ascendente e descendente. A cognição enactiva não se choca necessariamente com a teoria psicanalítica, já que admite o não pensamento ou o inconsciente que inclui o corpo de pulsões como uma das camadas que, como as outras, interferem constantemente no conjunto. Em segundo lugar, esse novo saber não procura uma equivalência biológica com uma ação cognitiva determinada, já que admite "uma infinidade potencial de representações" para um elemento biológico e acentua seu nível metafórico e metonímico. Assim, "o problema filosófico tradicional da relação entre o espírito e o corpo é transformado em um problema cientificamente solúvel: a chave da relação reside precisamente nos processos que dão nascimento ao mental, qualquer que seja a matéria com a qual se prefere concebê-los" (13).

    O MANUSCRITO Essa última vertente do cognitivismo ajuda a entender indiretamente o que se passa nas manifestações da mente visíveis no manuscrito, na inserção da criança na língua ou na aprendizagem de uma língua estrangeira, que constituem a terceira pista (14). Além de não supor uma equivalência entre uma localização no cérebro detectável pelos métodos mencionados acima e uma atividade cognitiva, o conexionismo encarnado sustenta que qualquer atividade engloba as várias regiões da mente.

    TRÊS HIPÓTESES LITERÁRIAS Antes de abordar a crítica genética, devo lembrar três hipóteses não mais cognitivas, mas literárias, a respeito do trabalho da mente.

    A primeira é dos surrealistas, que acharam ter descoberto o funcionamento do pensamento na escritura automática, mas seus manuscritos curiosamente revelam rasuras e uma submissão à sintaxe.

    A segunda é da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop. Ela assimilava a mente a um universo no qual se posicionavam corredores, galerias sussurrantes e trilhas que supõem um espaço ordenado misturado com outros, sem arquiteturas aparentes (15), universo que não está longe dos módulos e dos não-módulos de Fodor (16).

    A terceira é de Celina Borges Teixeira. Estudando os rascunhos de L'Ange de Valéry (17), ela sugeriu que as versões se olhavam, se falavam na mente do escritor como as peças dos móbiles de Calder empurradas pelo vento. Esses movimentos teriam criado versões intermediárias não transcritas, o que teria perturbado os arquivistas que não podiam estabelecer uma ligação entre duas versões A e C, por exemplo, ignorando a versão B não transcrita.

    UMA ARTICULAÇÃO DE CONCEITOS Enquanto as reações do cérebro podem ser visualizadas, os caminhos do pensamento se revelam até hoje misteriosos. Só nos resta criar um arsenal simbólico ou um quadro de conceitos, o que torna mais inteligível o trabalho do pensamento. Embora muito pobre em relação ao que se passa realmente (18), este enquadramento do pensamento pelos conceitos, facilita a compreensão.

    À pergunta sobre a origem da escritura ou o que desencadeia o trabalho da criação, Proust sugere uma pista no Caminho de Swann (19). Encantado com a pequena frase de Vinteuil ligada a seu amor por sua amante Odette, Swann ouvia além dessa felicidade momentânea, um Outro, ele mesmo no passado, que gozava (é o "j’ouis jouir" de Lacan), mas não queria saber desse gozo que lembrava um sofrimento do passado.

    A atitude de Swann leva a pensar que toda atividade humana é baseada no binômio gozo/sofrimento dos quais poucos querem saber por que dói. Por que não elaborar um conceito que define a relação necessária entre o gozo e o fazer artístico particularmente ?

    Todo romance, poesia, drama ou obra em geral é acionado por um pedaço ou um grão de gozo que inclui a dor. O manuscrito exibe esse movimento. À medida que o texto se constrói e se desfaz pelas rasuras, as supressões e os acréscimos, ele passa pela representação e pelo grão de gozo. Chamei esse movimento texto móvel, a mobilidade sendo ligada ao texto instável que se faz e o texto se referindo ao mesmo tempo ao grão de gozo estável e à escritura parada enquanto não revista pelo autor. Nessa conceituação, suponho um grão de gozo idêntico durante a escritura da obra, que desaparece na entrega ao editor porque não excita mais o escritor.

    O grão de gozo ou o pedaço de Real como dirá Lacan, conduz o jogo levando o escritor a se dizer, a desubjectivar-se para renascer como autor.

    Em outras palavras, bloqueado pelo «texto móvel» – conjunto de impressões, de sensações aliado às chamadas do grande Outro – um convite, a pressão dos amigos, a tradição literária e crítica, etc., o desejo do escritor dá partida à «pulsão de escrever». Rascunhando páginas e páginas, o escritor encontra novas solicitações que surgem nos silêncios, nas rasuras e na invenção da escritura. Ele se torna então «scriptor» ou instrumento dessas chamadas e solicitações e, em seguida, «leitor» de sua escritura. Assim, ele constrói «a memória da escritura».

    O escritor Flaubert de São-Julião não é exatamente o de Um coração simples ou de Herodias. Não porque faz ressurgir elementos recalcados como reza a teoria freudiana, mas porque pela escritura, faz significar elementos que, antes, não tinham a menor importância, ou ainda, porque inclui no mundo, elementos até então ignorados. As personagens-chave de Guimarães Rosa são exemplos desse acréscimo ao conhecimento universal e assim, para todos os grandes autores. O aporte da literatura e das artes à compreensão do ser humano, reconhecido por Freud desde o início, é inegável.

    Num último movimento, de scriptor e leitor, o escritor se torna autor na mesma página rasurada quando não volta mais atrás e passa ao parágrafo ou à página seguinte. Ele vê emergir assim, aos poucos, um texto novo, original e significativo que tem a vantagem de trabalhar a relação com o seu inconsciente e com o de seus leitores.

    O conceito de texto móvel escapa às coações kantianas do tempo e do espaço, demais dependentes da geometria euclidiana. O gozo de Swann é extratemporal e não se situa em algum lugar senão nas dobras da língua. Da mesma maneira, o grão de gozo que desencadeia a escritura, lembra algo de minúsculo comparável à corda dos físicos, infinitamente pequena com mais de quatro dimensões (20).

    Isolado e esquecido, o texto-corda esconde suas riquezas como o grão de gozo. Mas, uma vez agarrado pelo escritor atento ao que lhe vem pela mão e ao que se escreve – o «se» pronominal indicando o instrumento que ele se tornou, um scriptor –, «o texto móvel» que inclui o texto-corda e seu gozo, desenrola suas múltiplas dimensões, lineares e não-lineares, caóticas ou não, e gera a escritura nos manuscrito (21).

    O texto móvel aliado ao desejo do escritor desencadeia a constituição da «memória da escritura» de determinado conto, romance ou poema. Como surge o primeiro momento da constituição da memória da escritura ou do baú de determinado conto, romance ou poema?

    Jean Starobinsky falava de "uma origem trágica anterior ao poema" a respeito de Pierre-Jean Jouve (22) e Paul Ricoeur, da « obra de arte (que) […] na sua origem não é o produto do artesão das palavras,(mas que) nos antecede (e que) deve ser descoberta; (e, retomando Proust, escreve:) "nesse nível, criar, é traduzir » (23) . Gilles Deleuze dizia mais ou menos a mesma coisa a respeito do mesmo autor: "Precisa em primeiro lugar experimentar o efeito violento de um signo e que o pensamento esteja forçado a procurar o sentido do signo" (24). Valéry acrescenta que "todo um trabalho se faz em nós sem nosso conhecimento /…/ nosso estado consciente é um quarto que arrumam em nossa ausência" (25). Henry Bauchau fala de obrigação interna: "eu me choco com uma recusa interior categórica de continuar o romance. Sou obrigado a abandoná-lo e, durante esse verão e os anos que se seguiram, senti-me incitado ou talvez forçado a escrever poemas da coletânea Les deux Antigones" (26).

    Essas declarações manifestam claramente a unidade intrínseca da mente com o corpo e as atividades de escritura. A biologia interfere na psique continuamente e vice-versa, como já pensavam os filósofos sensualistas que, de Locke a Peirce passando por Condillac e Maine de Biran foram retomados por Freud, Proust, Lacan, Petitot e muitos outros.

    A memória da escritura não será definitivamente composta e continuará a juntar informações que, entrando no mesmo espaço e se auto-organizando nos dois sentidos, ascendente e descendente, como já sublinhei (27), transformarão o escritor em instrumento de sua escritura, ou seja, em scriptor. O acúmulo de informações durará até a última rasura e às vezes transbordará o romance, o conto ou o poema do momento. Uma vez na memória, a informação entra no sistema à procura de outras próximas, por caminhos desconhecidos do escritor que, atento a esse jogo, traduz ou transpõe o que lhe convém na página.

    A memória da escritura pode ser comparada a um universo no qual a dinâmica das partículas consegue construir tal ou tal conto ou romance e não tal outro. Esse universo seria, portanto, constituído de milhares de ondas-partículas reais ou virtuais, isto é, observáveis ou não, que formam um campo energético bastante poderoso para resistir à morte ou ao esquecimento, atravessar a mão do escritor (28) segundo a força de atração manifestada pelo escritor escrevendo. A velocidade dos acontecimentos-informações ou dessas partículas-informações chega a se desligar de sua dimensão temporal inicial, facilita sua inserção no manuscrito e lhe dá a dimensão temporal da ficção. Não é durante o deslocamento entre a memória da escritura e o manuscrito que a trajetória se bifurca bruscamente – a cópia ou o plágio confirmam a identidade do ponto de partida ou do ponto de chegada. Flaubert copiou trechos do Étude critique sur la Bible de Nicolas Michel, por exemplo, mas rasurando-os ou transformando-os no decorrer das campanhas de redação. Em outras palavras, ele desligou a trajetória de sua origem e a fez sua. Alexandre Dumas dizia que "L’homme de génie ne vole pas, il conquiert" (29).

     

     

    Assistimos então a uma luta entre o escritor-scriptor e o autor-leitor como testemunham as rasuras. Há dois tipos de informações: as da memória da escritura, que já estão na mente e aquelas que, atraídas pela escritura, explodem de repente, do meio ambiente, das leituras ou da tradição. A transferência atira esses dois tipos de informações que se espalham na página, adquirindo assim uma existência para o escritor.

    As informações insistem ou desistem e, sob a pressão da lógica do autor que as ama ou as destrói, ou, em linguagem de informação, que as trate ou não, elas são integradas ou rejeitadas, e ganham uma existência para o autor.

    Seis conceitos formam a rede até agora: o texto móvel, a memória da escritura, a existência para o escritor e a existência para o autor, o escritor-scriptor e o autor-leitor.

    UM NÃO SABIDO GENÉTICO A esses seis conceitos se acrescenta um sétimo, ao mesmo tempo próximo e distante da teoria psicanalítica, que eu havia chamado de inconsciente genético, mas cujo conteúdo se encaixa melhor no conceito de não sabido genético.

    Alguns fatos levantados e analisados nos cento e cinco fólios do manuscrito do primeiro capítulo do conto Herodias ilustram o conceito de não sabido (30): a pluralidade religiosa do tetrarca e sua hesitação entre as crenças árabes, judias ou romanas, a pouca distinção das personagens Antipas e Herodias visível nos lapsos de escrita, as relações amorosas de caráter divino entre Iaokanann e Antipas, a nova genealogia traçada entre Josué, Amos, Iaokanann e Antipas, o anagrama quase perfeito entre Amasias, o sacerdote de Jeroboão II que expulsou Amos e o primeiro nome do carrasco, Amasaí, que matará Iaokanann, a denegação da angústia em Antipas, a condensação Amos-Josué, a posição irreligiosa do narrador, isto é, o saber que decorre da fascinação do escritor pela Bíblia e o Estudo crítico sobre a Bíblia de Nicolas Michel, etc.

    Dispersos no manuscrito, esses feitos, subtraídos do texto editado, decorrem de seu não sabido genético. Fazem parte de um não sabido para o leitor, mas não de um impensado para o escritor, que os conhece, condensa ou elimina, nem para o crítico genético que decifra os manuscritos. Parecidos com os elementos latentes do sonho, ignorados do sonhador, mas pensados pelo agenciamento onírico, eles são ativos, desencadeiam o sonho narrado e, aqui, o texto publicado. O manuscrito se torna assim similar ao sonho em estado latente, se não levarmos em conta o seu fácil acesso e sua possibilidade de interpretação para o crítico.

    O não sabido genético é, no entanto, diferente da memória da escritura porque já fez parte da narrativa.

    Se, por um lado, tocamos nas ciências cognitivas que se interrogam sobre o funcionamento do cérebro e da mente, por outro lado, mergulhamos na crítica genética que estuda essencialmente os múltiplos circuitos que rasgam o manuscrito para desembocar na constelação estelar da escritura.

    Assim, o não sabido genético, parte da memória da escritura, contribui para formar um universo aberto e sensível às milhares de informações que irradiam o mundo, sem limite, portanto, para a sensibilidade do escritor. Em expansão contínua, esse verdadeiro universo encontra seu limiar nas dimensões da página ou do capítulo no final da trajetória, mas enquanto dura o processo, as informações vindas de toda parte ultrapassarão de longe o número daquelas contidas no texto publicado. O gênio do escritor, em grande parte inconsciente, se mede por sua capacidade de sair de suas estruturas para aceitar o imprevisto que se confunde muitas vezes com a caída das fronteiras entre dois campos; por exemplo: o da história e da literatura para Flaubert, da gramática e da escritura para Mário de Andrade (31), das ciências e técnicas e da ficção para Proust.

    No entanto, toda a escritura não é pensada pelo escritor. Há zonas de escrituras suscitadas pelo impensado que explicam um pouco mais o trabalho da mente.

    O NÃO SABIDO OU O IMPENSADO DA LÍNGUA O impensado se confunde com "o texto móvel" que coloquei ao nível das sensações ou do afeto e ao redor do qual nasce esse novo saber que aparece no manuscrito. As expressões "ao redor de" ou "à beira de", lembram a descrição lacaniana do inconsciente, que se caracteriza pela falha que conduz e leva o sujeito, mas não aparece nos rascunhos nem no texto publicado. Esse impensado aparece nitidamente na excelente obra em sete volumes na qual o filólogo Jacques Damourette e seu sobrinho, psiquiatra e psicanalista, Edouard Pichon, tentam discernir os mecanismos e as idéias da língua francesa que constituem o impensado da língua (32). Falamos sem saber, isto é, sem conhecer o impensado da gramática que modela nossa fala.

    Entretanto, devemos distinguir esse impensado social do impensado do "texto móvel", singular e não mais comum a todos, decorrente também de um afeto, mas que na maior parte do tempo ficará desconhecido. Paradoxalmente, os dois impensados se aliam na sua dimensão social. O primeiro pela língua, como o demonstram suficientemente Damourette e Pichon e o segundo pelo viés do leitor ou do público receptor. O prazer da leitura não é somente devido a uma cultura reencontrada, como definia Barthes, mas também a uma comunidade de desejos e de afetos entre o autor e seu leitor. Esbarramos novamente no gênio do escritor que, com as antenas atentas, ultrapassa os horizontes do homem comum, abre-se além e aquém do tempo presente e pode reunir seus contemporâneos e, muitas vezes, as gerações futuras, em um conjunto de aspirações que atravessam os homens, mas que ele verbalizará, como os gramáticos fazem com a língua. […] Podemos dizer que o impensado, sublinhado por Damourette e Pichon, associa-se ao passado do inconsciente freudiano, ao passo que aquele anunciado pelos escritores se aproxima do imprevisto lacaniano, dado fundamental de sua concepção do inconsciente.

    Oito conceitos compõem assim a rede inteligível do manuscrito, cercam o nascimento da escritura e ajudam a entender como funciona o pensamento: o texto móvel; a memória da escritura; a existência para o escritor e a existência para o autor; o escritor-scriptor e o autor-leitor; o não sabido genético e o impensado da língua.

     

    Philippe Willemart, é professor titular de literatura francesa e coordenador científico do Laboratório do Manuscrito Literário e do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética na Universidade de São Paulo (USP). Em 1985, participou da fundação da Associação dos Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML). Ver suas publicações no site: http://planeta.terra.com.br/arte/ms_psicanalise/

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Réda Benkirane.Autopoïese e émergence. Entretien avec Franscico Varela. La complexité, vertiges et promesses. Paris: Le Pommier, p.174. 2002.

    2. Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, p.22, 1996. citado por Safatle. A paixão do negativo. São Paulo, Unesp, p.76. 2005.

    3. Lacan. Le séminaire.Livre XIV. D'un autre à l'autre. Paris: Seuil, p.13. 2006.

    4. Ver os romances de Pascal Quignard e Willemart. Além da psicanálise, as artes e a literatura. São Paulo: ed.Nova Alexandria. 1995 e Crítica genética e psicanálise. São Paulo: ed. Perspectiva. 2005.

    5. Determinar a quantidade de energia usada pelo cérebro pela emissão de positron (TEP) ou perceber as partes do cérebro que trabalham durante uma atividade pela ressonância magnética (RMN) ou pela magnetoencefalografia (MEG).

    6. Mariluce Moura. "Visões intimas do cérebro". Pesquisa FAPESP. São Paulo, agosto 2006. 126. p.38.

    7. Changeux, Pellegrin, Asher, Jeannerod. Le cerveau. Emissões de França Cultura dos 4. 11. 18 e 25 de março de 2004.

    8. Destacamos também o aviso de Jean-Louis Deneubourg no mesmo volume em que ele se opõe aos neo-lamarkistas ou anti-darwinistas: "é preciso desmistificar o aspecto milagroso da auto-organização, pois de fato, houve uma série de tentativas e de erros que antecederam este acerto sobre a identificação das condições ideais [...] a seleção natural teve seu papel". Emergence et insectes sociaux. p.113.

    9. Stevens Kastrup Rehen: Poderíamos comparar o cérebro a uma sala repleta de computadores, onde cada neurônio é uma determinada máquina. [...] Cada computador – ou grupo de computadores – tem sua própria individualidade. [...] com diferentes velocidades e capacidade de armazenamento. Sendo assim, numa sala com computadores diferentes é muito mais difícil prever a resposta a um determinado problema. Agência Fapesp 24/03/2005 . Entrevistado por Washington Castilhos. Essa posição do cérebro-rede reflete a segunda hipótese dos conexionistas.

    10. Sob a direção de Jean Petitot, Francisco Varela, Bernard Pachoud, et Jean-Michel Roy. Naturaliser la phénoménologie. Essais sur la phénoménologie contemporaine et les sciences cognitives .Paris: CNRS, 2002.

    11. "É a imagem do poema de Machado que diz que não há caminho e que o caminho se faz andando".Réda Benkirane.Id., p.173.

    12. "A ciência cognitiva faz igualmente a hipótese crucial que os processos que sub-entendem o comportamento cognitivo podem ser explicados a níveis diferentes e a graus variáveis de instrução, cada um deles correspondendo a uma disciplina ou a um grupo de disciplinas específicas. Ao nível mais concreto, a explicação é biológica, enquanto que ao nível mais abstrato, ela é somente funcional [...] este nível funcional de explicações é assimilado ao nível psicológico e mental. Em outros termos, a ciência cognitiva mantém que não há diferença essencial entre o fato de dar uma explicação funcional da atividade do tratamento da informação responsável do comportamento cognitivo de um organismo, e o de explicar este comportamento em termos mentais. É somente pelo viés dessa hipótese suplementar que a ciência cognitiva se torna stricto sensu uma nova forma de teoria do espírito". Naturaliser la phénoménologie. Essais sur la phénoménologie contemporaine et les sciences cognitives . Sous la direction de Jean Petitot, Francisco Varela, Bernard Pachoud, et Jean-Michel Roy. Paris: CNRS éditions. 2002.(1999) p.6.

    13. Idem., p.7.

    14. Para a inserção na língua materna ou numa língua estrangeira, reenviarei os interessados ao artigo de Cristina Casadei Pietraroia : « (Re) lendo a escrita : em que as pesquisas cognitivas sobre a leitura podem ajudar na compreensão da criação literária ?. Manuscrítica. São Paulo: ed.Annablume, 6 - p.123. 1996.

    15. Silvia Maria Guerra Anastácio. O jogo das imagens no universo da criação de Elizabeth Bishop. São Paulo : ed. Annablume. 1999.

    16. J.Fodor. La modularité de l'esprit. (trad.A.Gerschenfeld). Paris: Minuit. 1986.

    17. Celina Borges Teixeira. "Leituras em movimento", in Manuscrítica. 9. São Paulo: ed. Annablume, p.119. 2001.

    18. Alain Berthoz . Le sens du mouvement. Paris: Odile Jacob. 1997 in Petitot. Op.cit. p.463.

    19. Proust. No caminho de Swann. Em busca do tempo perdido. São Paulo: Ed.Globo S.A,18ª edição, s/d. p.206.

    20. "Nas teorias das cordas, o que se pensava anteriormente em termos de partículas é agora representado como ondas de uma corda de papagaio em vibração. [...] Quanto às múltiplas dimensões, é como a superfície de uma laranja: olhada de perto, ela é toda curva e enrugada [ ...]. É assim mesmo para o espaço-tempo: na pequena escala, ele tem dez dimensões e é muito curvo." Stephen Hawking, em Une brève histoire du temps.Paris: Flammarion. p.198 e p.201. 1988.

    21. Willemart. Além da psicanálise: a literatura e as artes. São Paulo: ed. Nova Alexandria, p.101. 1995.

    22. La Quinzaine Littéraire, p.16. 15 de janeiro de 1988.

    23. Paul Ricoeur. Temps et récit. II. La configuração du temps dans le récit de ficção. p.214.

    24. Gilles Deleuze. Proust et les signes. Paris, PUF, p.32. 1983.

    25. Valéry. Cahiers.(Organizados por Nicole Ceylerette-Pietri e Judith Robinson-Valéry).Paris: Gallimard, II, p.355. 1988.

    26. Henry Bauchau. L'ecriture et la circonstance repris dans Oedipe sur la route. Paris: Babel, p.403. 1992.

    27. Benkirane. Autopoïese et émergence. Entretien avec Franscico Varela. Op.cit. p.166.

    28. Paul Sporn. Physique moderne et critique contemporaine. Poétique. Paris: Seuil. sept.1986. 67. p.321.

    29. Michel Schneider.Voleur de mots, p.117. 1985.

    30. Willemart. Universo da Criação Literária. São Paulo, Edusp, 1993

    31. Mário de Andrade. Macunaíma. in Télê Ancona Lopez.Vontade,Variante-II Encontro de edição crítica e crítica genética.p.323.

    32. "Le style d’un individu n’est rien d’autre que l’histoire de son âme et la grammaire donne la description de l’histoire de ce style". Edouard Pichon et Jacques Damourette. Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française. In Roudinesco. Histoire de la psychanalyse en France. Paris: Seuil . 1986. T. 1. p.314.