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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2007

     

     

    CRÍTICA DE PROCESSO – UM ESTUDO DE CASO

    Cecilia Almeida Salles; Daniel Ribeiro Cardoso

     

    A teorização, que a crítica de processo (1) oferece, auxilia a compreensão os estudos sobre a história das obras entregues ao público. Ao mesmo tempo, para uma discussão aprofundada de obras processuais, o crítico necessita, como foi dito, de ferramentas que falem de movimento. Muitas dessas obras se dão no estabelecimento de relações, ou seja, na rede em permanente construção que fala de um processo, não mais particular e íntimo. Cada versão da obra pode ser vista de modo isolado, mas se assim for feito, perde-se algo que a natureza da obra exige. São obras que nos colocam, de algum modo, diante da estética do inacabado; nos incitam a seu melhor conhecimento e o conseqüente acompanhamento crítico dessas mutações.

    Como fica claro, para se aproximar, de modo adequado, complexidade dos vínculos entre processo e obra, o crítico precisa de instrumentos teóricos que sejam capazes de discutir obras na complexidade das interações em sua dinamicidade. Uma abordagem que compreenda a criação em sua natureza de rede complexa de interações em permanente mobilidade. Nesses casos, as leituras dos objetos estáticos não são totalmente satisfatórias.

    Uma pergunta pode surgir diante do que está sendo proposto.

    POR QUE ESTUDAR PROCESSO DE CRIAÇÃO? É importante contextualizar essa pergunta na perspectiva teórica adotada. Ao falarmos do processo de criação como um processo sígnico (em termos peirceanos) estamos falando do inacabamento intrínseco a todos os processos, em outras palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse – seja uma fotografia, uma escultura ou um artigo científico – como uma possível versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado. Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe é inerente, há sempre uma diferença entre aquilo que se concretiza e o projeto do artista que está por ser realizado. Sabe-se que onde há qualquer possibilidade de variação contínua, a precisão absoluta é impossível. Nesse contexto, não é possível falarmos do encontro de obras acabadas, completas, perfeitas ou ideais. A busca, no fluxo da continuidade, é sempre incompleta e o próprio projeto que envolve a produção das obras, em sua variação contínua, muda ao longo do tempo. O que move essa busca talvez seja a ilusão do encontro da obra que satisfaça plenamente.

    Nesse contexto, não há uma separação entre processo e obra, a obra entregue ao público é um momento desse processo, que pode teoricamente ser modificada a qualquer momento. Ademais, há muitos artistas contemporâneos que propõem transpor, que incorporam e passam, principalmente através de obras elaboradas com os meios digitais, a experiência vivenciada pelo artista durante o processo de criação, ou seja, a experiência de formação como obra.

    A exposição Investigações: o trabalho do artista no Itaú Cultural São Paulo, ocorrida durante o ano de 2000, lançava luz sobre os modos e processos de criação de vários artistas. Nessa exposição encontrava-se, em especial, um trabalho que chamava a atenção. Tratava-se de uma obra em hipermídia – ad finem – elaborada por Carlos Fadon Vicente, que transpunha, que trazia de algum modo a vivência do artista no processo, propunha ao interactor a arte como experiência.

     

     

    Notava-se que com a produção cada vez mais freqüente de obras que lançam mão dos recursos disponibilizados pelos novos meios, questões emergiam à crítica genética. Como os artistas lidam com as possibilidades e recursos dos meios digitais? Existem vestígios de processo de formação da obra? Qual a natureza e quantidade dos documentos de processo? Qual o caminho da crítica genética? Teorias e conceitos pareciam precisar de ajustes, assim como já se percebia a necessidade de se elaborar metodologias e ferramentas para o tratamento desses novos tipos de documentos com os quais se iria deparar.

    Com essas questões que começavam a aparecer no CECG-PUC/SP e instigados pelo trabalho de Fadon, desenvolveu-se durante os anos de 2001 a 2003, a pesquisa [arte|comunicação]: processos de criação com os meios digitais (2), que se inseria nessa expansão proposta à crítica genética.

    Seguindo a linha metodológica do grupo, procurava-se por uma obra produzida com os meios digitais – problema que se apresentava ao grupo – que pudesse ajustar, corrigir e forçar a formação de uma abordagem adequada. Escolheu-se o processo de criação da obra em hipermídia ad finem, iniciada por Carlos Fadon Vicente no centro de estudos CaiiA-STAR - Reino Unido (3) e re-trabalhada para exposição. O processo de elaboração e a obra ad finem fora selecionada como objeto de pesquisa, não só pela quantidade e diversidade dos vestígios do processo que se apresentavam – o que já era uma resposta a algumas das questões – mas, principalmente, pela continuidade e coerência com todo o projeto poético do artista.

    Na etapa inicial da pesquisa construiu-se um quadro com a história da produção do artista (4), uma abordagem cronológica das exposições, dos projetos classificados por tipo de suporte adotado e duração. Mostra-se, nessa construção gráfica, uma sobreposição de atividades. Muitos dos trabalhos são desenvolvidos simultaneamente e já naquele momento da análise se pôde começar a perceber que havia uma contaminação entre os vários projetos do autor. Uma mistura de idéias, de inquietações e até mesmo de pequenos resultados guardados, vestígios ou memórias das experiências anteriores. Numa outra etapa da pesquisa, após a coleta dos documentos de processo e sua organização em um dossiê, passa-se a interrelacioná-los, buscando-se recompor o percurso de formação da obra estudada. Aqui se teve o entendimento, que o trabalho apresentado em 2000 no Itaú Cultural São Paulo, tem sua gênese em fragmentos e processos estabelecidos nos projetos anteriores. Ademais, com ad finem, Fadon traz sua vivência no processo de geração das imagens para o interactor, é como se este pudesse experienciar o momento de formação da obra, e isto era o interesse da pesquisa, o processo de formação das imagens.

    Não obstante às dúvidas e questões iniciais, a quantidade de registros encontrados, que se relacionavam de algum modo à produção da obra, fôra em tal volume e riqueza de informação (5) que se fez necessário adequar os procedimentos adotados pela crítica genética até então. Estruturou-se um banco de dados (6) para os mais de 1.100 registros, entrevistas e documentários ajuntados. Além de criar uma nova maneira de indexar e arquivar os documentos de processo, o banco de dados – dossiê eletrônico – mostrou-se também uma ferramenta útil à reconstituição das conexões entre os elementos.

    Para análise genética da obra ad finem adotou-se a imagem fotográfica de base química – uma série de 12 fotogramas de 6x6 centímetros cada – realizada em 1995 como o ponto inicial do processo. A partir de 1.999, após ter digitalizado a série completa dos fotogramas, Fadon inicia um conjunto de operações e transformações: seleciona trechos, corta, rotaciona, e altera aleatoriamente as cores. Desse processo duas imagens contíguas na série total, uma com três flores e outra com o relógio de algibeira, são escolhidas, separadas da série total e arquivadas individualmente.

    Para pesquisa, após a seleção desses elementos mais importantes na produção da obra, partiu-se para uma análise da forma das imagens contidas nos fotogramas. Nesse momento, lançou-se mão de conceitos da teoria geral de sistemas. Teoria esta apresentada por Mario Bunge como uma possível ontologia científica que, por ser geral e abrangente, busca características comuns nos sistemas, independentemente de sua natureza. Configurou-se, no momento, uma crítica genética como uma crítica de processo, onde processo define-se como uma série de mudanças de estado (7) do sistema, estas legalmente conectadas. Ou seja, nessa condição legal, se uma imagem – admitida como um sistema coerentemente formado – encontra-se em um estado S1 e passa a S2 a S3 … Sn deve existir uma lei, uma regra, um hábito de formação. Procura-se, então, um modo de descrever essas mudanças e, através dessa representação, é que se pretende chegar a conhecer as regras, os hábitos de formação da obra. Assim, fundamentados nos índices do processo, procurou-se construir uma representação que se aproximasse do pensamento constituidor do hipermídia ad finem.

    Voltando ao momento de produção (8) da obra, após a seleção das duas imagens – flores e relógio – Fadon opera transformações em uma delas. Apenas as flores continuaram a passar por processos de transformações o que gerou, ao final, 17 imagens fragmentadas, perfazendo um todo de 18 imagens, incluindo a imagem inicial.

    A partir destas 18 imagens e suas transformações, foi construída uma série temporal que representava a variação do índice definido como coerência formal (9). Verificou-se, após tratamento das imagens, uma série discreta de pontos que indicava a perda da coerência – tendo como referência a imagem inicial – uma tendência que se estabeleceu durante o processo de criação. Um movimento de desconstrução, de desorganização da forma inicial das flores, mas dentro de limites admitidos pelo artista. Verifica-se, com mais cuidado, que não se trata do autor propor uma desorganização total, de geração de ruído puro, mas o que fora revelado com a construção do espaço de estado é a formação apenas de pequenas áreas ruidosas, de fato mostra-se a criação de outras imagens que, se destacadas da série, podem ser consideras bem formadas. Porém tendo como referência a imagem inicial das flores há uma perda progressiva de organização nas seis primeiras interações e após a sétima o índice estabiliza e passa por pequenas flutuações de recuperação e perda da forma (10). É como se o artista proporcionasse a aceleração de um operador de desorganização, de entropia da imagem, mas que ao atingir determinados limites voltasse a se reorganizar. Fadon propõe esse movimento de reorganização em forma de hipermídia para a exposição, ele propõe a inversão da ordem de surgimento das imagens. Parte da mais ruidosa e recupera a coerência formal das flores, sugerindo ao interactor experienciar o processo de formação da imagem das flores e não o processo de desorganização.

    Como vemos, esse estudo, além de oferecer uma nova abordagem para a obra de Fadon, agora sob a perspectiva de seu processo de produção, proporcionou também uma resposta definitiva à sempre decretada morte dos estudos genéticos no meio digital. Os documentos desse processo, em vez de serem encontrados nas pastas de plástico ou papelão, foram coletados nos arquivos do computador do artista.

     

    Cecilia Almeida Salles é professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Coordenadora o Centro de Estudos de Crítica Genética da PUC/SP e pesquisadora do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética da USP.
    Daniel Ribeiro Cardoso é doutorando em comunicação e semiótica pela PUC/SP. Pesquisador do Centro de Estudos de Crítica Genética da PUC/SP e do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética da USP

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Crítica Genética como abordada pelo Centro de Estudos de Crítica Genética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CECG/SP).

    2. Cardoso, Daniel R. [arte|comunicação] : processos de criação com meios digitais. Dissertação de mestrado inédita. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003.

    3. CAiiA-STAR - Centre for Advanced Inquiry in the Interactive Arts, University of Walles College, Newport & Science, Technology and Art Research Group, University of Plymouth.

    4. Cardoso, Daniel R. op cit. p 129. 2003.

    5. Ao nos depararmos com a quantidade e qualidade dos registros disponibilizados, guardados como cópias de segurança do autor, pôde-se ter acesso a informações precisas tais como: data de criação, data de modificação, duração das operações etc. cf.,Cardoso, Daniel R. op cit. pp 90-91. 2003.

    6. Cardoso, Daniel R. op cit. Anexo III. 2003.

    7. Sistemas mudam de estado ao longo do tempo. Estas mudanças são comunicadas ao ambiente o que define evento. Processos podem ser entendidos como uma série de eventos ao longo do tempo.

    8. Cardoso, Daniel R., op cit. p 91. 2003.

    9. Cardoso, Daniel R., op cit. pp 86 – 94. 2003.

    10. Cardoso, Daniel R., op cit. p 88. 2003.