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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2007

     

     

    A CRÍTICA GENÉTICA E OS ACERVOS DE MÚSICOS BRASILEIROS

    Flávia Camargo Toni

     

    A música brasileira de concerto tem, na crítica genética, campo vasto de trabalho em função de certas características da própria área de música, bem como do fazer musical. No entanto, nossos acervos musicais têm sido contemplados, principalmente, com obras que se valeram de notação musical tradicional, ou seja, aquela grafada sobre pentagramas – os conjuntos de cinco linhas paralelas – e assentada sobre papel. Ainda que repletas de grafismos e anotadas com escrita aparentemente hermética, as partituras são documentos textuais e, como eles, possuem metodologia conhecida para o estabelecimento do texto musical, seja para se alcançar uma edição crítica ou genética. Entre os pentagramas desenhados a bico de pena por J. Sebastian Bach ou as "bulas" poéticas de Willy Corrêa de Oliveira para seu Miserere para piano, inúmeros recursos especiais têm sido empregados para indicar de que forma se pretende a produção de determinado som – aquilo que de "tangível" chega a nossos ouvidos – embora, em termos numéricos, a maior parte da música escrita até hoje obedeça a fórmulas tradicionais de grafia e leitura de códigos. Algumas obras do século XX, inclusive, integram imagens a suas narrativas, à semelhança dos argumentos poéticos usados pelos compositores românticos, criando ambientes extra-musicais para o intérprete, caso de Sports et Divertissements, de Erik Satie, com desenhos de Charles Martin e textos do próprio compositor (1). E a questão torna-se bem mais complexa ao tratarmos da música eletroacústica, do teatro musical ou, ainda, de combinações dessas formas de expressão e registro musicais.

    O compositor alemão Karlheinz Stockhausen sintetizou a problemática da questão ao explicar a um repórter que método seguia para trabalhar, em entrevista concedida no final da década de 1970.

    "Não existe um método de trabalho. Depende do material e da concepção específica de cada obra. Tive de me acostumar, nos últimos vinte anos, a utilizar um método novo para cada obra. […] Quando trabalho no estúdio e estou unicamente ocupado com sons sintéticos, os métodos são naturalmente muito diferentes dos utilizados quando interpretamos música intuitiva, com músicos escolhidos especialmente."(2)

    Em seguida, narra a concepção de Inori, obra que consumiu cinco meses e meio de trabalho para a busca de certa maneira de expor movimentos atrelados a sons, em oposição a Ceylon, peça que consiste num único ritmo e num texto curto, para cinco instrumentistas que obedecem a uma organização formal genérica. Logo, conclui não ser possível eleger um único método de trabalho, o que pode ser tomado como uma constante na produção dos compositores do século XX que não se ativeram à forma padrão de grafia da notação musical que dominou, por exemplo, todo o século XIX.

    Mas, ainda que se delimite o tema em torno da notação clássica sobre o papel, é necessário diferenciar aquela produzida antes dos programas para computador, ou seja, a obra produzida até cerca de dez anos atrás, do registro manual, muitas vezes de cunho autoral. Isto porque o emprego de software específico elimina fase importante do registro do pensamento criador na música, registro que tantas vezes é traduzido no arte-fazer da escrita musical.

    Antes da comercialização de papéis impressos para a notação musical, especiais porque trazem estampados os conjuntos de pentagramas, os compositores preparavam seus papéis desenhando as cinco linhas com penas de canetas e tinta nanquim ou comum. No entanto, devido às convenções da grafia, há multiplicidade de tipos de papéis porque o espaço planejado para assentar o texto musical para vinte e dois instrumentos diversos é bastante diferente daquele empregado para o teclado de um piano. Logo, era comum o planejamento do trabalho através de esboços ou esquemas sintetizando as principais idéias e condução de temas.

    Mesmo na fase da construção da peça sobre o papel adequado, a maior parte dos compositores utilizava-se do lápis comum, uma vez que anular os registros a tinta implicava em rasurar o próprio pentagrama. Só a partir daí "cobria-se" o lápis com a tinta, ou seja, escrevia-se à tinta sobre o lápis. No entanto, a música que ficou fora do circuito comercial precisava, com freqüência, ser duplicada para que os diversos instrumentistas pudessem executá-la, exceção feita às obras para piano, por exemplo. A tarefa geralmente cabia aos compositores que, na cópia, podiam abrir mão da fase de preparação com o lápis. Cópia autógrafa ou de terceiro, estava assim criada a primeira situação oficial para o aparecimento de variantes de um texto que, não raro, traz diferenças na grafia em relação ao modelo que lhe dá origem. Esta é uma das principais características dos acervos de nossos compositores que escreveram até meados do século XX, vale dizer, coleções onde não raro são encontradas peças de música de câmara com as partes individuais dos músicos do grupo copiadas ou pelo autor ou por terceiro, conjuntos nem sempre completos porque ao circularem entre vários intérpretes, era comum que algumas das partes se extraviassem.

    Com a popularização da cópia heliográfica, processo de cópia com vapor de amônia, o artesanato da escrita musical se altera bastante e dá origem a variantes de textos com outras características. Isto porque o preparo do material tem que ser feito sobre papel vegetal, ainda mais difícil de se lidar do que aquele de fibra de celulose. Neste caso, de forma mais nítida que no processo anterior, a existência de um esboço registrando parcialmente as principais idéias é importante porque mesmo o lápis, quando apagado, deixa marcas que podem comprometer o resultado final. Réguas, penas, tinta nanquim e lâmina gilete ou de bisturi passaram a decorar as mesas de trabalho porque os erros só podiam ser reparados às custas de raspagens do que se assentara a tinta e a posterior recomposição do pentagrama danificado. Tendo em vista as limitações para a revisão dos textos estabelecidos sobre o papel vegetal, as cópias heliográficas passam a acolher as marcas do repensar do autor, ou apenas da confrontação entre a idéia matriz e sua realização sobre o papel vegetal.

    Certos músicos que, a exemplo de Camargo Guarnieri, tiveram longa vida produtiva durante os anos de 1930 a 1980, trazem em seus acervos exemplos das duas fases descritas e proliferação de testemunhos suficientes para a composição de dossiês genéticos. Eis o caso de seu Choro para piano e orquestra, do qual se dispõe de:

    I) Para a parte geral do maestro (grade):
    a) Cópia heliográfica do autógrafo com poucos acréscimos a lápis preto, também autógrafos;
    b) Cópia heliográfica de terceiro, com acréscimos e supressões a lápis preto e caneta vermelha, além das marcas da regência.

    II) Da redução para dois pianos:
    c) Cópia heliográfica do autógrafo, sem marcas;
    d) Cópia heliográfica do autógrafo com poucas marcas a lápis, principalmente ligaduras e dinâmicas;

    III) Das partes individuais da orquestra:
    e) cópia heliográfica assinada "Rapeca del Fraceli 1957" onde há material das cordas crivadas de sinais ou as mesmas partes, sem marcas e, finalmente,
    f) cópia heliográfica assinada por Ricardo Tupi, sem marcas.

    Com catálogo de obras registrando mais de seiscentos títulos de composições, acervo de tal importância e com tamanha complexidade é laboratório privilegiado para o conhecimento do pensamento criador de Camargo Guarnieri.

     

    Flávia Camargo Toni é musicóloga, livre-docente na área de música do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Musicologia do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes(ECA) da mesma universidade.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Raro exemplar da obra editada em 1926 figura na biblioteca que pertenceu a Mário de Andrade, acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo.

    2. Biblioteca Salvat, p. 27, 1979. Entrevista provavelmente concedida a Montserrat Albet, editor do volume.

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Biblioteca Salvat de grandes temas: A música contemporânea. Barcelona, Salvat Editores, 1979, p. 27.

    Grier, James. The critical editing of music. New York: Cambridge University Press. 1996.

    Roland-Manuel (org.) Histoire de la musique. Vol. II. Paris, Gallimard. 1963.

    Salles, Cecília A. Gesto inacabado: Processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998.

    Szendy, Peter. Écoute: une histoire de nos oreilles. Paris: Les Éditions de Minuit. 2001.

    Idem (Ed.) Genesis: Écritures musicales aujourd’hui. 4, 1993.