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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2007

     

    LITERATURA

    DEU A LOUCA NA NARRATIVA INFANTIL?

     

    Diversas gerações dos mais diferentes lugares do mundo têm em comum a memória de cenas clássicas dos grandes contos infantis, como aquela em que Chapeuzinho Vermelho chega à casa de sua avó com uma cesta de doces e encontra o lobo, na cama, disfarçado de vovozinha. O diálogo que se segue, com algumas variações, indaga sobre as mãos e as orelhas grandes dessa estranha vovó; e a perseguição que o lobo faz à Chapeuzinho inquietou crianças de todas as épocas. Porém, se de repente a verdadeira vovó sai de dentro do armário toda enrolada em cordas e, em seguida, surge um lenhador – equivalente ao caçador das versões mais tradicionais do conto – e os quatro se põem a gritar? E se essa cena é interrompida e a narrativa recomeça com a casa da vovó cercada pela polícia e um interrogatório em que cada um dos quatro personagens principais (Chapeuzinho, lobo, lenhador e vovó) é suspeito do roubo das receitas de doces da floresta. Você diria:- "Deu a louca na Chapeuzinho"?

    Este é o título da versão brasileira do filme de animação Hoodwinked, da Blue Yonder Films, dirigido por Cory Edwards, a mais recente adaptação do tema. Embora a caracterização das personagens em Hoodwinked dê comicidade ao conto clássico – o lobo é um cínico repórter investigativo e a vovó, além de excelente doceira, também pratica esportes radicais –, o filme mantém os conflitos humanos e sua capacidade de simbolizar anseios, medos e necessidades das crianças, o que é próprio das narrativas infantis. Essa é a opinião da psicopedagoga paulista Andrea Magnanelli, que viu o filme e gostou. Ela critica desenhos da Disney que tentam ser "fiéis" aos contos infantis "originais", mas amenizam ou suprimem situações mais dramáticas, para evitar chocar a criança. Esta opção, porém, retira a força que os contos infantis têm que é justamente elaborar soluções para conflitos internos existentes na infância.

     

     

    Mesmo a cena inicial de Hoodwinked sendo facilmente associada à história clássica, é apenas mais uma das diferentes versões do conto da Chapeuzinho Vermelho: o historiador norte-americano Robert Darnton descobriu 35 diferentes versões que circularam somente no norte da França, durante a Idade Média. A maioria era de relatos orais da tradição popular, que Charles Perrault recolheu e alterou em alguns pontos, publicando em 1697 sua versão com o final trágico em que a avó e a Chapeuzinho são devoradas pelo lobo. No século XIX, surge a versão dos irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm, com o final em que o caçador salva a menina, tira a avó da barriga do lobo e coloca pedras no lugar. Esta se tornou a versão mais famosa do conto, a partir da qual o compositor brasileiro Braguinha fez a versão mais conhecida por aqui, com cantigas da Chapeuzinho, do lobo e do caçador.

    As versões possibilitam diferentes leituras: "varia de criança para criança, de lugar para lugar", diz a psicopedagoga. "E a criança não cria raiz num papel só, não precisa se identificar com uma só personagem, mas pode relacionar com a sua realidade a imagem de uma avó que não é só aquela que faz tricô e doces", continua. Andrea destaca em Hoodwinked o fato de cada um dos quatro principais personagens dar a sua versão da história. Isso permite trabalhar com a criança a idéia de que as pessoas andam por variados caminhos, cada um com sua história e pontos de vista diferentes.

    "Essa idéia também aparece na literatura, em A verdadeira história dos três porquinhos", lembra Andrea, referindo-se à versão de Jon Scieszka para outro clássico infantil, cujo personagem principal é o lobo, que bate na porta de um porquinho e pede uma xícara de açúcar para fazer um bolo de aniversário para a sua avó; mas o lobo espirra, porque está resfriado, e acaba derrubando a casa de palha do porquinho. Assim como Hoodwinked, essa história também tem elementos jornalísticos: os repórteres acharam que essa versão do lobo não daria boas manchetes e não venderia os jornais e, por isso, decidiram alterar a notícia, criando a versão em que o lobo tenta comer os porquinhos, o que possibilita mostrar às crianças que além de existirem diferentes pontos de vista, eles não são imparciais.

     

     

    Essas narrativas que dialogam com os clássicos, parecendo subvertê-los, na verdade abordam conflitos, medos e anseios que muitas pessoas trazem desde a infância e com os quais podem conviver mesmo na fase adulta. No cinema, o filme Shrek, que é apontado nas resenhas como o maior exemplo de ironização de contos infantis, também traz conflitos humanos. O protagonista, um ogro que vive isolado em um pântano, teve seu sossego interrompido, porque os personagens de contos de fadas foram banidos de um feudo e condenados a viver ali. Para se livrar deles, o ogro precisa libertar uma princesa para ela se casar com um nobre. O isolamento de um sujeito feio e a descoberta de que ele pode ter amigos e até mesmo se apaixonar e ser correspondido são elementos desse filme que tocam diretamente em conflitos infanto-juvenis.

    O mesmo pode-se dizer para Hoodwinked que, embora pareça ter virado a narrativa infantil de cabeça para baixo, como sugere o título da animação em português, aborda conflitos como o desejo de Chapeuzinho de ser independente e de conhecer outros lugares, ou o da avó, que quer ser algo mais do que a melhor doceira da floresta.

     

    Rodrigo Cunha